{Katherine Adams Kohls}

Henry se emudeceu. Pelo resto do dia, ele passou todo o tempo calado olhando para o nada. Quando ofereci para que ele repousasse, ele não expressou nenhuma reação. Me partia o coração vê-lo daquele jeito. A culpa de trazer Loki para a minha vida me consumia. Como ele pôde ser tão baixo? Controlar a mente de Henry fora demais para mim. Eu sabia que ele tentaria achar algo contra mim depois de eu ter deixado Sigyn tão magoada, porém não imaginei que ele recorresse a meus amigos.

Fiz com que Henry se deitasse no sofá do grande salão da mansão, sua cabeça estava apoiada em minhas coxas enquanto eu acariciava seu cabelo na tentativa de consolá-lo. Ele ficou um longo tempo encarando o teto, sem piscar. Eu não trouxe à tona o subterrâneo. Ele tinha seus segredos, e eu não o obrigaria a revelá-los a mim. Eu esperaria até que nós dois estivéssemos prontos para essa conversa. Se ele resolvesse nunca me contar, eu aceitaria sua escolha sem pressioná-lo. Depois do que Loki fizera a ele, controlá-lo mentalmente... Eu jamais obrigaria Henry a fazer algo contra a sua vontade.

As cores vibrantes do pôr do sol entravam pelas enormes janelas, suas luzes se espalhavam pelos enfeites prateados e lustres de cristais, refletindo nas paredes cor de creme. Observei o enorme brasão no escudo prateado acima da lareira, um corvo de asas abertas segurando uma rosa vermelha. Era maravilhoso. Quando lhe perguntei a que família pertencia aquele brasão, Henry apenas me respondera que o vira num sonho. Para ele, aquela imagem significava paixão, coragem e, em parte, mistério. Eu enxergava um mensageiro de Odin informando um presságio de que sangue seria derramado em breve.

— Ela queria saber sobre sua intimidade. — Disse Henry, um tom mais alto que um sussurro. Me questionei por um instante quem era “ela”, já que eu só via a aparência de Loki. Quando me lembrei que conseguia ver através de sua magia, concluí que ele havia assumido uma forma feminina para se aproximar de Henry. Henry trincou os dentes e agarrou os próprios cabelos com tanta força que pensei que ele os arrancaria. — Eu não queria dizer a ela! Eu juro! — Ele se sentou ao meu lado no sofá, o desespero era perceptível em seus olhos opacos. — Ela me forçou a falar sobre você, Kate! Eu... Sinto muito. — Seus olhos azuis me encaravam, o brilho neles havia se apagado. Aquela pessoa animada, charmosa e confiante... Havia se tornado um covarde acuado. Toquei suavemente seu braço e apoiei minha cabeça em seu ombro. Ele era a única pessoa no mundo que eu não me sentia desconfortável ou ansiosa em tocar, e sabia que ele sentia o mesmo comigo. Não sentíamos nenhuma espécie de atração física um pelo outro, então o toque do outro não era um incômodo ou uma sensação capaz de causar arrepios maravilhosos. O toque de um tinha um efeito acalentador no outro, apenas isso. Ele encostou de leve sua testa em meu cabelo, seus músculos estavam muito tensos.

— Eu não me importo, Henry. O importante é que você está vivo. — Entrelacei meus dedos da mão direita com os de sua mão esquerda. Ele apertou minha mão com força, eu sentia-o tremer. — Não é fácil ter alguém controlando seu corpo contra sua própria vontade. — Engoli em seco e voltei a me sentar mais ereta, meus olhos sempre voltavam para o brasão do escudo. Eu me lembrava de tudo com Tyler. Meu corpo se arrepiava a cada toque, meu ventre ardia em chamas de desejo, a dor ardia como garras de metal arranhando meu ponto mais íntimo, me recordava da sensação de êxtase... Para piorar, era Kitty que controlava meu corpo, enquanto eu assistia, mortificada. Eu jamais teria escolhido Tyler. Jamais. Me lembrava de como minha verdadeira consciência gritava e implorava para que tudo aquilo parasse, eu prometia que faria o que ela quisesse se ela parasse com aquilo...

Henry me abraçou, suas mãos agarravam minha camiseta com tanta força que ela com certeza ficaria amassada. Quando o abracei de volta, seu perfume invadiu minhas narinas e as batidas de seu coração poderiam me ensurdecer de tão rápidas e altas em meus ouvidos, combinadas à sua respiração irregular.

— E-Eu falei coisas muito pessoais suas para a mulher... Eu não queria fazer nada disso!

— Eu sei, Henry. Eu sei. — Passei a afagar suas costas para consolá-lo.

— Acho... Que tenho que te contar sobre o que falei, não? Eu contei sobre como é difícil para você se sentir atraída fisicamente por outra pessoa... Que você tem que sentir uma conexão com a pessoa para sentir isso... E que é por isso que não estamos juntos. E... — O cortei:

— E eu não ligo. Deixe que aquela criatura manipuladora saiba todos os meus segredos, deixe que use tudo o que descobrir contra mim. O que realmente importa é que você está aqui comigo agora, e estamos vivos. — Ele me soltou finalmente, seus olhos claros estavam cravados nos meus.

— Eu estou ficando maluco ou ela se transformou num cara quando foi te atacar?

— Você não está ficando maluco. Ele conseguiu te manipular usando magia, a mesma que o permite mudar de forma.

— Como você o conheceu, Kate? — Henry puxou de leve uma mecha grossa de meu cabelo e começou a trançá-la, distraído. Ele era fascinado por belezas de todas as formas e tamanhos. Quando descobriu maquiagem e acessórios de cabelo, além de opinar sobre os figurinos, ele elevou sua própria fotografia a outro nível. Às vezes ele me usava como cobaia/modelo. Nos divertíamos muito juntos. Porém, claro, aquilo fora antes dele ter sua mente invadida pelo deus da mentira. Seu tique de trançar meus cabelos foi mais uma reação pós-trauma, eu entendia muito bem disso. Você ocupa sua mente, faz de tudo em seu alcance para não pensar no trauma, o enterra o mais fundo possível em seu subconsciente e nunca o traz à tona em prol de ter uma vida “normal”.

— A Sage também é um ser mágico, e os dois são amigos de longa data. Moramos os três sob o mesmo teto por um tempinho. — Wright franziu levemente o cenho:

— Então ele é aquele tal de Thomas? — O analisei cautelosamente, preparada para segurá-lo caso ele caísse aos pedaços bem na minha frente. Eu ajuntaria todos os seus cacos e os colaria de volta no lugar, quantas vezes fosse necessário até que o visse se recompor por completo.

— Ele mesmo. É um nome falso. Eu mesma inventei. — Dei de ombros, tentando disfarçar a leve alteração em meu tom de voz por meu desapontamento em relação ao Loki. — Achei que combinasse com ele. — Ele ergueu as sobrancelhas:

— Você tinha amigos com poderes mágicos e nunca me disse nada?

— Todo mundo tem segredos. Não tenho o direito de revelar aquilo que não me pertence. Respeito à privacidade dos outros está na minha listinha de consensos morais. — Lhe dirigi um meio sorriso. Sabia que ele havia entendido a minha indireta. Ele me contaria sobre o subterrâneo? Ele respirou tão fundo que pensei que fosse o começo de um ataque de asma.

— Está na hora de eu ser honesto com você, Kitty.

— Estou ouvindo, Ricky. Bem atentamente, por sinal.

— Não sei o que você vai pensar de mim, mas, depois de saber que Sage é uma fada e que você sabia disso por um bom tempo, isso meio que me dá esperanças de que você não me ache um monstro. — Henry, um monstro? Eu com certeza já havia conhecido pessoas piores do que ele antes. O próprio deus da mentira, só para começar. Por mim Kitty estaria no topo dessa lista, na verdade.

— Eu ouço primeiro e julgo depois, Henry. Estou disposta a enxergar as coisas pelos seus olhos, e tentar te entender. — Ele se endireitou no sofá e correu os dedos por seus cabelos, em seguida passou a encarar o cinzeiro no formato de caveira da mesinha de centro.

— Meu nome verdadeiro... — Começou ele, observando a paisagem fora da janela. — É Henry Richard Oris Wright.

— Oris? — Franzi o cenho. Eu já ouvira falar naquele sobrenome antes. — Como... Como Oris Dazzling Crystals e Pearls of Oris? — Ele me dirigiu um sorriso triste:

— Quem diria que o império de joias de Corinne cresceria tanto, não? — Arregalei os olhos, quase gritando com ele:

— Você é parente de uma das mais bem-sucedidas CEOs...

— Ela é minha mãe. — Cortou ele. — Corinne Eastwood Oris é uma mulher muito, muito ambiciosa. Ela lutou durante toda a vida para construir um império no mundo das joias. Ou é isso que ela quer que o mundo exterior saiba.

— O que tudo isso tem a ver com você?

— Eu sou o herdeiro daquela merda toda. — Ele já estava alcançando o bolso de seu paletó, tirou um maço de cigarros e um isqueiro dali. Ficar perto de fumantes sempre me fazia torcer o nariz pelo incômodo da fumaça que sopravam, mas, se a nicotina facilitasse o que Henry queria me contar, não me importaria com isso. — Fui treinado, desde criança, para assumir o lugar de Corinne.

— Ah. — Não consegui evitar erguer as sobrancelhas. Ele era filho de uma das empresárias mais ricas do mundo. Henry fora treinado para assumir seu papel de herdeiro. Aquilo era de impressionar qualquer um. — E como o subterrâneo da mansão se encaixa nessa história?

— O que as pessoas de fora vêem não é nem a pontinha do iceberg, minha cara. — Ele soprou a fumaça na direção da lareira. — Tanto a Dazzling Crystals quanto a Pearls varrem toda a sua sujeira para debaixo do tapete das formas mais pérfidas que existem. Corinne sempre se certifica pessoalmente disso. — Franzi o cenho, séria:

— O que te fez não querer participar do negócio da família? — Perguntei,

— Eu não queria isso. — Ele arregalou os olhos para mim, eu via sua fúria lentamente despertando. — Eu nunca quis nada disso. Mas me acostumei com a ideia. Porque era cômodo para mim, afinal, eu sempre tive tudo o que eu pudesse querer, contanto que alcançasse a excelência nas tarefas que Corinne me incumbia de aprender. Eu nunca me questionei sobre suas decisões, afinal, ela é minha mãe, e devia me querer bem, não é? Ela devia me tornar uma pessoa boa. Mas então... Então eu descobri que um grupo de empresas multibilionárias traficam pessoas e fazem uso de trabalho escravo. Já a Corinne... — Uma risada nervosa e desesperada saiu de sua garganta. — Ela se envolveu com a máfia e com organizações secretas a favor da guerra e do caos. Nem sei por onde começar a explicar o meu envolvimento em tudo isso... — Ele tragou o cigarro e soprou a fumaça, seus olhos estavam fixos na paisagem da janela.

— Você apoia tudo isso? — Tentei manter a minha voz o mais neutra possível, mesmo tendo vontade de berrar a pergunta.

— Claro que não, Katherine. Por muito tempo, vivi no piloto automático. Sei fazer vários tipos de papelada, usar pacote Office, espionar com o objetivo de chantagens futuras, hackear sistemas complexos, falar cerca de dez ou quinze línguas diferentes, torturar e matar pessoas... Por muito tempo, joguei sujo sendo comandado por Corinne. Não me orgulho do meu passado, mas continuar lamentando minhas escolhas antigas não vai favorecer em nada o meu presente. — Mais uma tragada, mais um sopro longo e demorado da parte de Henry. – Eu tive contato com a máfia de diferentes países, a HYDRA, as corporações corruptas e fascistas também. Mas então... Eu soube dos escravos.

— A HYDRA? — Sussurrei, com as sobrancelhas. — Você é...? — Senti meu coração martelar em meu peito. Henry era um agente da HYDRA?!

— Quando a Pearls of Oris ainda era um mero projeto, contamos com a ajuda de alguns membros da HYDRA, principalmente na questão da papelada. E assim continua sendo até os dias de hoje. Sujeitinhos desprezíveis, aqueles da HYDRA. Nunca fui com a cara de nenhum deles.

— O que te fez sair do piloto automático? — A tensão que Henry demonstrara anteriormente sumiu. Ele parecia aliviado, na verdade. Talvez por eu estar disposta a ouvir a história toda. Ele olhou por longos dez segundos para seu cigarro, em seguida deixou a nicotina fazer seu trabalho mais uma vez com mais uma tragada.

— O nome dele era Ruwan. — O fantasma de um sorriso cruzou seu rosto, mas seus olhos transmitiam apenas sua dor. — Sabe, o problema com gostar de garotos e garotas igualmente é que...

— Ele não sentia o mesmo por você. — Completei, e Wright assentiu.

— Você sempre consegue me desvendar tão facilmente, não? — Seus olhos se amornaram quando ele me olhou, um pequeno sorriso dirigido a mim.

— Então, Ruwan... Como o conheceu?

— Ele era um dos escravos. Número 3719, tatuado no centro da nuca. Era de Sri Lanka. — Ele apagou o cigarro no cinzeiro de caveira. Ele se esticou no sofá, girou sua cabeça para a direita e para a esquerda, estralando seu pescoço com um gemido baixo. — Quando soube sobre eles, resolvi encontrá-los. Foi... Um impulso. Mas mais sutil. Como... Como um sopro na nuca que te arrepia inteiro. Meu contato com Ruwan me trazia informações de dentro do campo de escravos. Quando vi a oportunidade certa, tirei todos de lá e detonei tudo com explosivos. Joguei as malditas pedras preciosas no oceano. E Ruwan desapareceu. Agora, caço os capangas de Corinne por esporte como os animais que são. — Ele finalizou seu discurso com um enorme sorriso vingativo.

— Você é um assassino. — Afirmei, mais para mim mesma. Eu tinha que dizer em voz alta, para tentar assimilar a informação. Não condenava Henry por nunca ter me contado. O passado dele parecia manchado demais, e ele sentia remorso pelas coisas que havia feito.

— De fato. — Ele concordou, em seguida se levantou. — Andei investigando diversas empresas e corporações. Gostaria de ver? — Inclinei a cabeça para o lado, o observando. Algo no fundo da minha mente pareceu se acender, como uma ideia inflamável e perigosa. Olhei para Henry por um momento, ele parecia ansioso por minha resposta. Eu sabia como ele se sentia. Se eu fosse uma assassina com um passado como o dele e alguém com quem eu realmente me importo descobrisse tudo, faria o possível para me justificar, para dizer que eu não era nenhum monstro.

Porém, é claro, eu não conseguiria fazer isso porque eu era um monstro. Ao menos, me sentia como um. Uma aberração, forçada a esconder a verdadeira natureza para não arruinar minha própria vida de uma vez por todas. Em minha mente, Loki estava certo, afinal.

— Hoje não, Henry. — Me levantei do sofá e segurei sua mão. — Quero que saiba que não te enxergo como um monstro e que acredito em você. Sei que tudo o que me disse é verdade. Obrigada por me contar a sua história. — Fiquei na ponta dos pés e beijei sua bochecha. — Eu tenho que ir agora. Se você não estiver se sentindo bem e quiser conversar, não importa a hora, me ligue, okay? — Ele assentiu, me abraçou e suspirou profundamente:

— Eu me sinto aliviado agora. Fico feliz de poder contar isso para outra pessoa. Obrigado por não sair correndo. — Ele soltou uma risada curta de alívio. Sabia que Wright estava ignorando o trauma e planejava ajudá-lo como pudesse. Mas tinha assuntos mais urgentes e desagradáveis para resolver.

{...}

Respirei fundo com a mão na maçaneta. Eu não podia mais protelar, tinha que agir logo. Se Kitty tinha me oferecido minha própria morte e eu recusasse sua oferta, talvez as coisas entre mim e ela piorassem. Talvez... Talvez ela passasse a tentar me matar. Em todo caso, apesar de odiar a ideia, seres mágicos poderiam realmente ser úteis na minha situação. E então, lá estava eu: forcei a mim mesma engolir o meu orgulho e voltar para o apartamento. Abri a porta e entrei, surpresa por encontrá-lo alterado – as paredes da sala, antes de um verde-claro suave, estavam brancas, sem retratos ou quadros. Caixas de papelão fechadas por toda parte, todos os pequenos objetos estavam dentro delas. Não demorou nem dois segundos para que eu juntasse os pontos.

Senti um aperto no peito. Sigyn estava pronta para se mudar e não mencionara nada sobre aquilo. Ela pretendia desaparecer do mapa, afinal, ela e Loki eram foragidos de Asgard. E jamais manteria contato, nunca mais nos veríamos novamente. Engoli em seco. Meu piano parecia ser a única coisa intocada ali. Sentei-me na banqueta de Cam e toquei a mesma melodia que sempre me acalmava – Bella’s Lullaby. Como havia crescido assistindo e lendo Crepúsculo e aquela era uma das minhas histórias favoritas, algumas coisas pareciam nunca ir embora de verdade. A trilha sonora, essa música em especial, era uma delas.

Imagens surgiam em minha mente, memórias distantes da minha vida, principalmente aquelas em torno de minha amizade com Sigyn. Ela era uma irmã mais velha para mim, que sempre me aconselhou e me apoiou em minhas ideias malucas, e enfrentou minha mãe várias vezes quando percebia que eu ficaria genuinamente feliz se conseguisse fazer minhas vontades virarem realidade. Sem ela, jamais teria entrado no curso de teatro, nem me arriscado em um workshop sobre artesanato e costura, tricô e crochê - que foi um fracasso sem precedentes, já que consegui prender minhas duas mãos em uma bola de lã desengonçada gigante-, nem teria participado do pequeno grupo de adolescentes raivosos que treinavam le parkour e se reuniam no Central Park para fazer alongamentos meio obscenos com roupas coladas e desconfortáveis – que resolvi sair por conta própria depois de conseguir a proeza de torcer os dois pulsos em uma tentativa de salto idiota -, nunca teria me arriscado a cantar na frente do Henry, que estranhamente me renderam os postos de “substituta instrumental” e “vice-vocalista principal”; o último ele tinha inventado na hora.

Sigyn tinha me apoiado em cada uma das minhas ideias, fossem elas idiotas ou não. Sempre tivemos um elo muito forte, ela era muito importante para mim. E, mesmo assim, mesmo depois de todos os anos que havíamos passado juntas, ela estava disposta a ir embora e nunca mais voltar. Sem rastros ou vestígios. E, eu sabia, eu era uma ponta solta em sua história. Ela não me machucaria, mas não arriscaria sua liberdade. Ela sumiria, como num passe de mágica. Como se a minha presença em sua vida não tivesse feito diferença alguma, como se... Eu nunca tivesse existido.

Minha própria voz parecia ecoar em minha mente.

Eu havia dito ao Loki... Que, depois que ele me ajudasse, depois que desvendássemos qual era o meu propósito no Universo, eu queria que ele sumisse. Que minha vida voltasse ao normal, como se ele nunca tivesse existido. Ele... Se sentiria assim quando isso acontecesse? Ele sentiria a minha falta? E se... Nós nunca descobríssemos a verdade?

— Eu tinha certeza de que era você. — Afastei minhas mãos das teclas do piano por reflexo, dando um fim súbito e desconexo à melodia. Sua voz estava estranhamente relaxada, o que me fez virar o rosto para observá-lo. Não pude deixar de reconhecer a cena: Loki de banho recém-tomado, com seu cabelo preto ainda úmido e a camisa medieval verde-escura que caía perfeitamente bem nele. Algumas memórias voltaram à minha mente, a primeira delas fora que o vi pela primeira vez daquela forma. A única diferença era...

— O que aconteceu com o seu rosto? — Perguntei, franzindo o cenho. Havia cortes e hematomas que pareciam seríssimos e deveriam ser tratados imediatamente. Foi quando me recordei de sua luta com Sigyn. Me levantei num impulso e me aproximei dele às pressas, meus olhos analisavam suas feridas enquanto meu cérebro calculava as medidas que precisavam ser tomadas. Não dei brecha para que o deus reagisse — quando dei por mim mesma, minhas mãos já estavam em suas bochechas, avaliando os machucados com cuidado. Ele não fez menção de se afastar de mim. Pelo contrário, parecia até que Loki estava segurando a respiração. Franzi os lábios com uma leve careta de desgosto e segui até a cozinha, para o armário de madeira abaixo do balcão. Havia um kit de remédios, ataduras e primeiros-socorros ali.

— O que você está fazendo aqui? — Sua voz era calma, contida. Loki não parecia mais a criatura descontrolada e furiosa daquela manhã. Eu havia passado o dia todo com Henry, até que resolvi voltar para o apartamento à noite para esclarecer as coisas. Era estranho: quanto mais eu me esforçava para esclarecer tudo, mais tudo parecia cinzento e borrado. Peguei a maleta e a coloquei no balcão de mármore com um baque seco:

— No momento — Abri a maleta rapidamente e comecei a pegar o que precisaria. —, estou cuidando para que essas feridas do seu rosto não infeccionem. — Peguei alguns remédios que poderiam ajudar, assim como antisséptico, pomadas para hematomas, algodão, gaze e esparadrapo. Levei tudo até a cauda do piano e apontei a banqueta dele, que era mais baixa e nos igualaria em altura — Venha, sente-se aqui.

Loki me encarou por uns cinco segundos sem piscar, e cheguei à conclusão de que ele estava bem surpreso com minha atitude. Para ser sincera, eu também estava. Mas uma parte minha, aquela que o meu temperamento irritadiço e vingativo não controlava, sabia que pagar na mesma moeda não levaria minha relação com Loki a lugar algum. Eu tinha que parar com os joguinhos e ser direta — era a única forma que ele não conseguiria me manipular. Fazer jogos era a especialidade dele, então eu tinha que contorná-los a todo custo. Mais um fato sobre os mentirosos e manipuladores: nada surte um efeito tão impactante neles quanto alguém sendo totalmente honesto.

— O que você...? — Ele não sabia ao certo como reagir à minha presença ali. Seus olhos avaliaram minhas feições, até que desceram um pouco e se fixaram em meu pescoço. Eu sabia no que ele estava pensando, afinal, a marca roxa de sua mão ainda estava ali. Sua expressão se tornou mais séria, seus olhos estavam colados na marca roxa que estava desaparecendo com o tempo.

— Eu sei que está feio, e estou brava com você por isso. — Comecei, e o deus ergueu seus olhos para mim, me permitindo admirar aqueles cílios espessos e suas írises verdes hipnotizantes por um segundo. Algo dentro de mim se agitou ao ver sua expressão cautelosa. Não sabia se era algo bom ou ruim, o que me deixava um pouco apreensiva. — Estou furiosa pelo que você fez com o Henry, e decepcionada por ver que você, você, um deus tão inteligente e habilidoso, foi capaz de jogar tão baixo. — Ele endireitou sua postura, mas não manteve sua fachada de “deus superior”, com nariz empinado. Em seus olhos só havia a mais pura curiosidade, revelada apenas pelo suave franzir de seu cenho. — Eu não esperava isso. Sinceramente, eu pensava que você já havia achado um jeito de voltar para Asgard e consertar todas as merdas que você fez. Assim você conseguiria sua coroa de volta, e todos os problemas seriam resolvidos. Poderia até levar Sigyn de volta também e vocês dois seriam o símbolo de uma nova era para Asgard. — Depois de pronunciar a última frase, percebi que tudo o que eu dissera era a mais pura verdade. Eu acreditava mesmo naquilo e queria que se tornasse realidade. Uma Asgard nova e melhorada. Loki e Sigyn eram capazes de fazer isso acontecer. Loki inclinou a cabeça levemente para o lado, suas madeixas úmidas balançaram suavemente com o movimento:

— Você me enxerga como um herói. — Havia um leve tom de surpresa em sua voz. Cruzei os braços:

— Sim, enxergo. — Assenti, em seguida indiquei a banqueta novamente. Ele ignorou meu convite mais uma vez. — Me surpreende que você nunca tenha notado. O fato de eu me inspirar um pouco em você desde os meus cinco anos de idade não foi o suficiente para você perceber isso? — Ergui uma sobrancelha com um meio sorriso para ele. Loki colocou a mão em sua nuca e olhou para baixo, murmurando algo ininteligível. Eu sabia que ele só estava tentando disfarçar o leve rubor de suas bochechas. Ele caminhou lentamente até a banqueta e se sentou de frente para mim, em silêncio. Foi a minha vez de corar quando percebi que ele estava da minha altura, talvez apenas uns três centímetros mais alto que eu. Mesmo assim, foi um pouco impactante para mim olhá-lo de perto. Um silêncio carregado de uma energia misteriosa pairava entre nós dois, e me sentia queimar por dentro, inconscientemente.

— Eu já lavei minhas feridas com água e sabão enquanto tomava banho. — Murmurou Loki, para quebrar o silêncio estranho. Senti a urgência em fazer o mesmo, deixando de lado os acontecimentos graves daquela manhã.

— Bom... — Me virei e peguei o antisséptico, ele tinha uma pazinha na tampa. — Talvez arda um pouco. — Ele apenas assentiu em silêncio, em seguida, comecei a aplicar o antisséptico nos cortes. Seus olhos estavam fixos em meu rosto enquanto eu cuidava de seus ferimentos. Apliquei a pomada de hematomas com cuidado para não pressionar demais, peguei a gaze e o esparadrapo e franzi o cenho, calculando o ângulo certo para que o curativo não ficasse tão estranho...

— Você poderia parar de morder o lábio, por favor? — Levei um susto pelo tom de sua voz, ríspido e grave. A gaze que estava na minha mão caiu no chão. Eu ergui as mãos, dobrando os cotovelos, o coração palpitando quase saindo pela boca:

— Okay, okay, desculpe, eu não percebi que estava fazendo isso. — Os olhos de Loki estavam cravados nos meus com tamanha intensidade que tive que dar um passo para trás para então desviar meu olhar do seu. Minhas bochechas pegavam fogo. Qual era o problema dele?

— Perdoe-me. — Ele segurou minha mão direita. Voltei a encará-lo, sem conseguir esconder minha confusão. Ele era tão irremediavelmente volátil que às vezes era difícil de acompanhar.

— Pelo quê? — Murmurei, voltando a ficar mais próxima dele. Loki aproximou minha mão de seus lábios e beijou minha palma suavemente, com os olhos fechados. Minha palma parecia formigar onde ele havia beijado, mas de uma maneira boa. Loki segurou minha outra mão e me puxou devagar para mais perto dele. A cena seguinte me deixou sem palavras: Loki se curvou, de ombros caídos, e apoiou sua testa em minha barriga, suas mãos seguravam as minhas sem muita força. Incerta do que fazer, ergui minhas mãos, as apoiei em seu cabelo preto úmido. — Pelo quê você está me pedindo perdão, Loki? — Loki apoiou suas mãos em minha cintura e ergueu o rosto, seus olhos estavam brilhando:

— Eu a julguei mal. A subestimei. A feri. Tudo porque não conseguia aceitar que você é diferente, que não consigo desvendá-la. — Ele voltou a sentar ereto e ergueu sua mão, a apoiando em meu colo. Parei de respirar por um instante, tensa. — Não irei machucá-la. — Sua mão deslizou suavemente do meu colo para meu pescoço, e ele a encaixou perfeitamente na marca roxa. — Talvez arda um pouco. — Ele murmurou, em seguida senti como se meu pescoço estivesse congelando e queimando ao mesmo tempo. Fechei os olhos e trinquei os dentes, após gemer de dor. — Você ficará bem, Katherine. Tens a minha palavra. — Abri os olhos e forcei um meio sorriso:

— Isso deveria me tranquilizar, vindo do deus da mentira? — Os olhos do deus estavam vermelhos. Um pequeno sorriso de divertimento surgiu nos lábios de Loki, em seguida, ele tirou sua mão de mim. Ela estava com um tom azulado, com marcas azuis mais escuras. Gigante de Gelo. Logo, sua mão voltou ao tom pálido de sempre e seus olhos voltaram ao tom de verde que já conhecia.

— Melhor? — Perguntou ele. Ergui minha mão e toquei levemente, feliz por notar que não sentia mais dor. Sorri:

— Muito! — Sem conseguir me conter, o abracei, rodeando seu pescoço com meus braços e o puxando para mais perto de mim. — Obrigada!

Loki deu um pulo para trás, se desvencilhando do meu abraço. Seus olhos estavam arregalados:

— Por Yggdrasil, o que foi isso? — Eu ri por sua expressão horrorizada:

— O que foi? Você está parecendo um gato arisco.

— Não é todo dia que meu rosto toca os seios de uma jovem mortal. — Ele deu de ombros, casualmente, enquanto eu só queria abrir um buraco no chão e me enterrar lá. Acho que o abraço fora mais apertado do que eu pretendia. — Não quando ela ainda está usando roupas, pelo menos. — Eu sentia o calor em minhas bochechas aumentar.

— Foi um acidente e você sabe muito bem disso. — O fuzilei com os olhos, em seguida passei a ajuntar os remédios para guardá-los de volta na maleta. Um sorriso zombeteiro surgiu nos lábios de Loki, ele me fitava pelo canto dos olhos:

— Eu sei, mas não consigo deixar de me divertir quando a vejo tão embaraçada. — Revirei os olhos e soltei um suspiro. Ele mesmo terminou de prender a gaze de seu último corte. Guardei tudo o que eu tinha usado na maleta e a coloquei de volta no armário do balcão. Loki graciosamente esticou seus braços entrelaçando seus dedos e os alongou. Depois, sentou mais ereto e observou atentamente as teclas do piano.

Logo, uma música suave e envolvente preencheu o ambiente. Ergui as sobrancelhas, o encarando. Nunca havia visto Loki com uma expressão tão serena antes. E aquela música...

— Eu esperava que seu estilo fosse diferente. Chopin ou Rachmaninoff. — Loki sorriu de canto:

— E eu não esperava que você conhecesse música clássica. — Seus dedos não paravam enquanto ele falava, como se ele já conhecesse aquela música com tal intimidade que nem sequer precisava olhar para as teclas do piano. Me aproximei dele, fascinada pela melodia. Eu não conseguia tocar Nuvole bianche sem chorar no meio, então ver de perto como Loki a tocava com tanta facilidade me hipnotizou. Parecia tão natural quanto respirar para ele.

— Minha mãe é bailarina e meu pai é pianista. Cresci em um lar repleto de música clássica. Tchaikovsky e Vivaldi são mais a minha cara.

— Sentimental. — Provocou Loki, me olhando de esguelha. Eu ri de leve:

— Disse o cara que está tocando Ludovico Einaudi. — Apoiei meus braços na cauda do piano, e coloquei minha cabeça sobre eles, fechando os olhos. Eu conseguia sentir a vibração das cordas, que reverberavam em meus braços. Em minha mente, sentia como se a música estivesse me preenchendo por dentro, eliminando todo o meu vazio gradativamente. Era algo tão etéreo que chegava quase a ser divino.

A música acabou com a mesma suavidade com a qual tinha começado. Loki hesitou por um instante.

— Algum pedido? — Abri os olhos e fui praticamente saltitando para o outro lado da banqueta, sentei-me ao seu lado. A nossa diferença de altura era perceptível mais uma vez.

— Noturno número dois. Em mi bemol maior.

— Realmente vai me pedir para tocar Chopin?

— Você tem cara de quem toca Chopin. — Ele suspirou, exasperado. Dessa vez, ele se atentou às suas mãos. Um leve sorriso se formou em meu rosto, e não consegui deixar minhas mãos paradas por muito tempo. Apoiei meus dedos em minhas coxas e comecei a dedilhá-las junto à melodia que conhecia tão bem.

— Então, diga-me... — Continuou Loki, com os olhos fixos nas teclas. — Por que a senhorita vem mudando sua atitude radicalmente nesses últimos tempos? Tem alguma razão por trás disso, afinal? É apenas uma fase de rebeldia descontrolada?

— Claro que não. — Disse, enquanto parei com os movimentos de minhas mãos. — Eu só... Não quero que me digam o que devo fazer. E, depois que todos vocês apareceram na minha vida, as coisas têm sido bastante complicadas. Dentro e fora de mim.

— Eu compreendo a sua situação em relação aos acontecimentos relacionados a mim e à Sigyn. Também sobre a SHIELD. E sobre aquele garoto, o tal Pietro. Eu só quero compreender... O que está acontecendo dentro de ti? — Respirei fundo, olhando para minhas próprias mãos.

— Você estava certo, Loki. — Murmurei. Ele parou de tocar no mesmo instante e olhou para mim. Ele apoiou suas mãos em suas coxas e se virou, ficando de frente para mim.

— Em relação a quê? — Perguntou. Eu suspirei.

— Eu sou uma aberração. — Ele ergueu sua mão e segurou meu queixo suavemente entre o polegar e o indicador. Loki ergueu o meu rosto, seus olhos estavam fixos nos meus.

— O que a faz pensar dessa forma? — Ele me soltou. Meus olhos avaliaram seus curativos pelo rosto mais uma vez.

— Eu já lhe contei sobre Kitty, não? — Loki assentiu. — Pois é, agora ando tendo pesadelos horríveis também. Ela me faz questionar a realidade, eu nunca tenho plena certeza se estou acordada ou se é mais um de seus pesadelos que simulam a realidade. — Em algum momento, lágrimas passaram a rolar pelo meu rosto. — Eu nem sei se isso é real. — Loki segurou minhas mãos entre as suas, se inclinou e beijou o topo da minha cabeça. Uma chama queimava dentro de mim. Ergui meu rosto, observando-o de perto. Ele tinha um pequeno sorriso nos lábios:

— Tens a minha palavra de que tudo isso é real. — Lhe dirigi um sorriso amarelo:

— Obrigada, mas isso seria exatamente o tipo de coisa que um falso Loki diria. — Ele ergueu uma sobrancelha:

— Então me diga: como posso lhe provar que sou real? — Franzi o cenho, olhando em seus olhos, tentando encontrar qualquer indício de que ele pudesse ser uma invenção de Kitty.

— Me surpreenda. Faça algo que eu jamais pudesse imaginar vindo de você. — Ele sorriu de lado.

— Então feche os olhos e não se mova. — Arregalei os olhos. De todas as frases que eu poderia ter dito, eu havia dito para o deus mais instável e imprevisível de todos me surpreender. O quão idiota fora aquela ideia? Ele parecia ter notado meu receio, pois acariciou de leve minha bochecha. Eu sentia como se chamas estivessem me queimando de dentro para fora, percorrendo cada parte do meu corpo. — Não irei machucá-la. É uma promessa. — Assenti, ainda relutante.

Fechei os olhos e respirei fundo, tentando manter minha respiração controlada. Eu sentia seu perfume cada vez mais perto, assim como o calor de seu corpo. Sua mão direita acariciou com as pontas dos dedos minha bochecha, em seguida ele posicionou a palma de forma que seu polegar traçasse suavemente o contorno de meus lábios. Loki suspirou. As chamas dentro de mim se transformavam em labaredas selvagens. Mais uma vez, ele inclinou suavemente meu rosto para cima, e depois, no instante seguinte...

Tudo o que eu senti eram os lábios macios do deus da mentira contra os meus. E então meu corpo foi consumido pelo fogo.