Lembranças de um paraíso imperfeito.

Lembranças: Quem disse que eu tenho ciúmes?


– Jantar de negócios, Marina? – Resmungava Vanessa ao saber que uma cliente viria jantar hoje, para falar de negócios. Ela mantinha as mãos na cintura, mantendo seu corpo levemente inclinado para a frente. Encarava Marina com seus grandes e ferozes olhos. Aquela cena de certa forma me divertia. Ela ficava engraçada quando estava brava.

– O que é que tem de errado, Vanessinha? – Perguntava Marina sem alterar sua voz terna.

– O que aquelazinha vem fazer aqui, afinal?

– Mas eu já não disse? Ela quer tirar umas fotos pra um book ou sei lá o quê. Qual o problema?

– O problema é que ela só vem aqui pra dar em cima de você. Será que você não percebeu? – Marina não aguentou e riu. Respirou fundo uma vez, tomando ar para continuar.

– E qual é o problema? Eu sou uma mulher casada agora. – Marina piscou para mim. – Nada do que ela faça vai me atingir. E outra, ela vai trazer mais clientes. Vê se te acalma, mulher!

Eu compartilhava da ira de Vanessa. Também não me agradava saber que a moça que viria esta noite dava em cima da minha mulher.

Isso me fez lembrar da nossa Lua de Mel. Algo parecido aconteceu. Parecido não. Pior!

Enquanto Marina continuava a trabalhar nos negativos do último ensaio, Vanessa seguia bufando.

Eu trabalhava laboriosamente no laptop de Marina organizando as fotos no arquivo bagunçado. Eram muitas fotos para organizar, por conta da semana cheia de ensaios e clientes - o que era um ótimo sinal – mas também porque eu passei a manhã toda com Ivan e Flavinha na piscina.

Flavinha havia saído para comprar alguns acessórios para a próxima sessão de fotos, que exigiria um cenário que retratasse as civilizações antigas. Acessórios que não tínhamos no estúdio.

Eu, já perdida em meus pensamentos, não conseguia me concentrar nas fotos. Vanessa trouxe à tona uma lembrança.

Marina e eu estávamos recém casadas. Depois da festa de casamento e da noite de núpcias, seguimos para Campos do Jordão.

Escolher aquela viajem não foi fácil. Marina queria uma viagem internacional, com direito a vários dias, com os melhores restaurantes, melhores hotéis e afins. Nossa situação financeira não era nada favorável, mesmo Diogo tendo recuperado parte dos seus bens e Marina não quis pedir nada à ele também. Ela passou por uma crise que a fez amadurecer. Ela queria caminhar com os próprios pés, sem depender do pai. Uma atitude digna que me deixou orgulhosa.

Depois de pensar, conversar e até brigar, decidimos por algo mais simples e íntimo – assim com o nosso relacionamento.

São Paulo ficava a poucos quilômetros e eu sempre quis conhecer a Serra da Mantiqueira. – Confesso que fiz um charme e tive que dar um ‘presente especial’ para convencê-la a abrir mão de uma viagem ao exterior.

Depois de arrumarmos as malas e me despedir da minha chorosa família, segui com minha esposa para o carro, rumo a São Paulo.

Eu sabia que lá fazia frio, especialmente no inverno, mas quando chegamos, estava muito frio! Talvez por termos chegado à noite ao hotel que reservamos. Mesmo assim, eu não estava preparada.

Estávamos tão animadas com a viagem - a nossa viagem – que riamos de tudo e para todos, contávamos piadas sem graças, cumprimentávamos a todos. Parecíamos duas crianças bobas.

Enfim chegamos ao nosso quarto. Ficamos em uma suíte simples no terceiro andar do prédio no final do corredor. As paredes e o chão eram de madeira, coberto por um extenso tapete cinza. O quarto em si não tinha nada de especial, além da lareira bem detalhada a frente da cama de casal. A única coisa significante naquele quarto era Marina. Estava curvada sobre a cama desarrumando sua mala a procura de toalhas de banho. Me perguntava se tínhamos roupas de frio o suficiente, caso contrário, teríamos que comprar em algum lugar da cidade.

Eu me demorei a admirá-la, sem lembrar de responder a sua pergunta. Ela parou o que estava fazendo e me encarou.

– Amor? Tá tudo bem? – Ao ver minha cara, ela abriu um enorme sorriso. Endireitou o corpo olhando para baixo. Eu sabia que ela estava com vergonha ao perceber o que eu estava fazendo.

Mordi meu lábio inferior, avançando em direção a ela. Meus pés me levaram até ela, sem qualquer comando ou resistência. Não me cabia no peito saber que estava casada – casada – com Marina e que aquela viagem era só nossa.

Após percorrer o caminho até ela, pousei uma mão sobre a sua cintura e com a outra tirei seu cabelo do pescoço.

Marina estava estática até o momento em que encostei meu nariz gelado na sua pele quente. Ela arqueou e se aproximou de costas para mim. Me permitiu sentir o cheiro de seu cabelo, sua orelha, seu rosto e voltar ao seu pescoço, do qual beijei. Ela segurava minhas mãos a frente, num abraço íntimo. Sussurrei um “Eu amo você” que fez com que ela se derretesse. Nesse instante ela virou de frente para mim, agora segurando a minha cintura enquanto eu passava meus braços por cima de seus ombros.

Confesso que ansiava sentir o gosto da sua boca, mas não tínhamos pressa.

Ali, de pé, começamos uma dança lenta sem qualquer música ambiente. A música tocava dentro de nós e saia de nós como um carrinho de montanha russa passando de uma a outra.

Marina passeava a sua mão pela lateral do meu corpo me fazendo sorrir de prazer. Não era um toque sexual, mas ela tinha esse efeito sobre mim. Será que eu estava enfeitiçada?

Ela desceu o zíper do meu casaco, derrubando-o no chão e adentrou suas mãos quentes por baixo da minha camisa, tocando minha pele.

Me fazendo arder.

Por um momento tudo o que eu sentia era o toque delicado de Marina. Tudo o que eu era naquele instante estava naquele toque.

Delicadamente eu beijei sua boca. O hálito quente de Marina saia devagar ao compasso que nos beijávamos. Eu bagunçava seu cabelo enquanto que ela subia suas mãos pelas minhas costas e descia pelas minhas coxas. Não demorou muito para que eu também tirasse o casaco dela e começasse a abrir o zíper do seu jeans. Marina subiu minha camisa e me guiou para a cama.

________

Depois de uma ótima noite de sono debaixo de dois cobertores enormes e a lareira acessa a noite toda, fomos tomar café no térreo do hotel. A sala era aconchegante e bem simples. Levava quadros que retratavam a cidade em duas das paredes brancas. Algumas mesas com lugares variados enchiam ¾ do local. Mais ao fundo encontrava-se a copa. No balcão, estavam dispostas jarras de suco de laranja, limão, abacaxi, pêssego, leite e uma garrafa de café. Em pequenas cestas haviam pão integral, pão francês, torradas, pedaços de melancia e ao lado potes de geleia e margarina. Marina e eu nos servimos e fomos até uma mesa de dois lugares ao lado da copa.

Após o café da manhã delicioso, fomos conhecer a cidade.

Estávamos num lugar chamado Alto do Capivari. O nosso quarto - o que só pude ver ao amanhecer - era de frente para o Morro do Elefante, nos explicou a recepcionista. O hotel ficava longe do barulho, mas perto para passeios a pé no ‘centrinho de Capivari’. Ao longo do trajeto, e principalmente quando chegamos ao tal centrinho, vimos casas lindas e enormes, ao maior estilo do século XIX. As ruas estavam praticamente vazias, desérticas. O que não diminuía o charme do local pois, rente às calçadas haviam arvores enormes cobertas por neve que impediam parcialmente a passagem do sol, criando sombras na rua cinza. Alguns casais passeavam naquela manhã fria e vimos também alguns locais.

Era um lugar realmente lindo.

Depois de um longo passeio, decidimos almoçar em um dos vários restaurantes do Centro.

Decidimos pelo ‘Davos’, um restaurante francês muito elegante e opulento. Adentramos no interior turvo e amadeirado do Davos.

O empregado que nos levou até sua cabine era metido. Ele sorriu graciosamente e um tanto admiravelmente para Marina, mas quando ele viu o olhar que direcionei, ele meramente torceu o nariz e pareceu sarcástico. Não importava. Marina e eu estávamos felizes e nenhum atrevido iria mudar meu humor.

Após colocarmos os nossos nomes na lista, ele nos levou até nossa mesa que tinha vista para a rua. Sustentamos nossos olhares desafiadores todo o momento do pedido. Felizmente, Marina não percebera nada.

Há mais ou menos quatro mesas de distância, perto da grande lareira do Davos, sentava uma loira elegantemente vestida, mesmo empacotada de casacos, que me chamou a atenção. Estava acompanhada de uma mulher ruiva e um bonitão moreno. A loira tinha uma expressão vaga, como se estivesse entediada com o que visse, mas seus olhos eram vorazes e ardentes. Tinha lábios grossos pintados com batom rosa claro. Seu cabelo loiro caia sobre os ombros perfeitamente. Mas o que me chamou a atenção não foi sua beleza, mas sim o fato dela olhar sem ao menos piscar para Marina.

Marina estava de lado para ela e nem notava nada. Ainda bem. Porque eu comecei a encarar a moça, que nem sequer notou.

Marina balbuciava coisas sobre a cidade enquanto eu mantinha minha pose. Ela, enfim, percebeu e seguiu o meu olhar.

– AI-MEU-DEUS! – Exclamou ela. Olhei na mesma hora com dúvida.

– O que foi?

– É a Fernanda. – Marina fazia uma cara de espanto ao mesmo tempo que sorria sem graça.

– Você conhece aquela moça? – Acenei levemente minha cabeça na direção de ‘Fernanda’. – Ela não para de olhar pra você.

– Ela é minha ex... e brigamos feio antes do termino.

– Ah.. AH! Então aquela moça é sua ex?

– Calma, amor. Não precisa ficar brava. Ela...

– Se ela não parar de olhar para você agora mesmo, eu vou fazer por ela! – Como se fosse combinado, Fernanda levantou da mesa, e pior, veio em nossa direção. Eu sorri com escárnio e olhei a rua, desejando que ela só estivesse indo até a cabine da recepção.

– Marina? Quanto tempo. – Sua voz pairou sobre a minha cabeça e eu fiquei petrificada. Não tô acreditando!

– O-oi, Fernanda. Quanto tempo mesmo.... – Marina tinha uma voz estranha.

– Olha só como esse mundo é pequeno. Tantos lugares no mundo e nos reencontramos aqui.

– É. Uma pena, né. – Essa fui eu. Não consegui segurar. Quando vi, já tinha falado.

– Anh... deixa eu te apresentar a minha esposa. Fernanda, essa é a Clara. Clara.... – encarei Marina - ... Fernanda.

Ouvi Fernanda prender o ar ao saber que eu era a esposa de Marina. Me deu um sorriso mais amarelo que urina. De vaca, ainda por cima.

Parecia que faltava a moça um chá de semancol, pois ela jogou mais quinze minutos de conversa fora com Marina. Nada de interessante. Papo de comadre entediante. Ao fim daquilo que parecia mais uma apresentação de ópera acompanhei o retorno da loira até a mesa.

Marina me olhava com cara de cachorro desiludido.

Ok. Eu fui injusta.

– Ai, amor. Me desculpa, ta? Eu não consegui evitar.

– Tudo bem, vai. Eu consigo ficar brava com você? – Disse ela, pousando suas mãos sobre as minhas.

O almoço seguiu tranquilo – decidi evitar de olhar a nossa amiga, mas sabia que ela ainda olhava para a nossa mesa – e o clima voltou ao normal. Já estávamos de saída quando Marina foi ao banheiro.

Pedi ao garçom atrevido a conta e de canto de olho, vi Fernanda levantar e seguir para o banheiro feminino. Ela aproveitou enquanto eu conversava com o garçom para agir. Felizmente, eu vi. E, felizmente, eu também sou uma mulher.

DESGRAÇADA!

Levantei da mesa elegantemente, disfarçando a minha urgência e caminhei até o toilet. Não entrei de cara pois não queria passar vexame.

Espiei tomando o cuidado de não aparecer demais e vi Marina lavando suas mãos na pia. A bruaca se aproximou, rente à bancada.

– É verdade que você casou? – Perguntou Fernanda.

– Sim. A Clara é minha esposa. – Marina tinha a voz firme, como quando falava com Vanessa.

– Sabe. A gente não terminou aquela conversa. – Fernanda foi se aproximando de Marina – Você nunca mais me ligou.

– Eu não tenho nada para falar. E mesmo que tivesse, agora eu estou muito bem, obrigada.

– Será que eu não mereço uma chance de falar? – Fernanda levantava o braço a frente, na intenção de tocar Marina.

Chega! Aquilo foi a gota d’agua.

– O que você pensa que está fazendo?! – Percorri como um raio a distância e girei bruscamente Fernanda, fazendo ela perder o equilíbrio. – Você não tem vergonha?

Marina impedia meu avanço me barrando com o corpo. Ela pedia calma em meio aos meus gritos. Fernanda tentou se explicar, mas eu estava tão brava, mas tão brava, que eu não entendi nada.

– Calma, Clara! Pelo amor de Deus, se acalma! – Marina suplicava e tentava me abraçar. Enfim eu desisti de dar uma lição naquela loira oxigenada. Na verdade, se eu tentasse mais um pouco, ninguém conseguiria me segurar.

Saímos do banheiro feminino e em momento algum desgrudei meus olhos de Fernanda, cuja cara de espanto não se alterou.

Depois de pagar a conta, deixamos o Davos rumo ao hotel. A brisa gelada de Capivari meio que esfriou minha cabeça. A minha gana de apertar um pescoço loiro!

Marina afagava minhas costas e trazia um sorriso meigo nos lábios.

– Ai, meu amor... não precisava fazer tudo aquilo.

– Ah, Marina. Você acha que ia deixar aquela gorda dar em cima de você e ficar quieta? Por favor, né.

– Calma, Clarinha. Você não tem com o que se preocupar. Mesmo que ela tentasse, iria bater com a cara na porta. Quem eu amo é você!

Suspirei mais uma vez e umedeci meus lábios. Ela tinha razão. Eu me excedi um pouco, confesso.

– Você me desculpa? Eu fiquei um pouco brava...

– Um pouco?

– Não ria de mim. É que foi mais forte do que eu. - Marina me parou e virou meu rosto na sua direção.

– Eu te amo, ouviu? – o sol deixou seus olhos castanhos com uma cor linda. Eu pude ver o meu reflexo, pude ver cada linha castanha salpicada naquele mel dos olhos dela. Marina era como o calor do sol que me banhava. Me tirava de qualquer escuridão.

– Eu também te amo.

Selamos aquelas palavras com um beijo terno. O morno dos lábios de Marina contrastou com o frio de Campos do Jordão. Decidi que não iria mais estragar a viagem. Ainda tínhamos muito tempo e muito o que ainda ver.

A conversa no estúdio estava acirrada. Flavinha havia chegado com as coisas e as três avaliavam o conteúdo da sacola. Ninguém discutia, mas a empolgação era tamanha que elas em percebiam que quase gritavam. Observei por mais um instante aquela cena, onde Marina sorria surpresa com os pequenos objetos que pegava.

Me levantei da poltrona e fui para o quarto me arrumar para o jantar "especial".

Depois daquele dia, tentei me controlar mais. Eu nunca iria parar de sentir ciúmes dela.

Só que Marina não precisava saber.