Legacy - Interativa

Capítulo 8 - Poetry and Wine


CAPÍTULO 8 – Poetry and Wine

Marjory e Anthony Wilhemson

–Quando a vejo reconheço-me

Nos olhos, no rosto, na cor,

Pois tremo de medo como a folha ao vento,

Uma criança tem mais juízo que eu,

De tal modo me sinto possuído pelo amor

E de um homem vencido desta forma

Bem poderia uma dama ter grande piedade.

A voz de Anthony preencheu o quarto opaco, colocando cor em cada pequeno e insignificante detalhe da mobília e aquecendo o coração da jovem Marjory, deitada sobre sua cama de lençóis azuis, com os pés acomodados nos travesseiros e a cabeça despencada onde deveriam estar os pés. Seus olhos estvam fechados, e as mãos largadas ao redor do corpo, ainda pareciam absorver a poesia. Um sorriso brincava em seus lábios desenhados e ela desejava secretamente poder ouvir uma poesia assim até que o mundo acabasse. Ou até mesmo depois disso, pois quando se tem palavras, é muito fácil acreditar que se é capaz de vencer qualquer coisa.

–Quem seria capaz de tais versos, meu irmão? – sussurrou , abrindo os olhos e mostrando que carregava dois pequenos oceanos em órbitas.

Anthony olhava para o livro de capa de couro em sua mão. Seus cachos negros sempre combinaram muito bem com a barba por fazer, uma pena que ele não se interessava em nada por vestimentas, caso o fizesse, teria mais garotas aos seus pés. Muito mais do que já tem.

–Bernart de Ventadorn – disse-lhe o irmão ao erguer seu olhar expressivo – foi um trovador frânces. Aprecio suas obras, no entanto, não receberam tanta fama no mundo.

–Gostei dos versos. Achei-os tão... verdadeiros.

O primogênito do lorde Henry Wilhemson sorriu:

–É porque é sobre o amor. É o que mais inspira os poetas, fazendo-os confundir a mente e depositar toda seu terremoto de sentimentos em pergaminhos. É como se os poetas descontassem sua intensidade na tinta da caneta.

Marjory se endireitou na cama para poder ouvir melhor as palavras do irmão, para poder olhar sua expressão. Sempre um homem bonito e que chamava a atenção, mesmo quando não tinha o intuito de fazê-lo, além de ser um poeta talentoso. Anthony tinha um coração tão preparado para dar e receber amor que doía em sua irmã, doía saber que poucas pessoas valorizavam esse futuro Senhor do palacete de Wilhemson. Logo, logo as mulheres notariam que uma vez que penetrassem o bom coração de Anthony jamais teriam a chance de sair dali. Seriam embriagadas por um amor confortável e sempre quente, enfervecendo. Era esse tipo de amor que Marjory queria para si.

Queria que alguém, no meio de um domingo, viesse em seu quarto com um livro de poesia debaixo do braço, sentasse no baú próximo a janela e puxasse o primeiro poema que visse, a embalando para um mundo onde até mesmo as coisas ruins poderiam ser tratadas com suavidade. Enquanto não encontrava esse amor, Marjory usufruia do bom irmão que tinha. Ele, educadamente, sempre parava para explicar alguma palavra complicada para a caçula, que não era dotada de educação. E Anthony não tinha permissão para educá-la, caso contrário, poderia sofrer punições gravíssimas. Deus sabe o que poderiam fazer com um homem que alimenta uma mulher de cultura! Mesmo que ele insistisse, Marj jamais o permitiria tal ato.

–Como os poetas conseguem achar suas inspirações? – ela perguntou, inocentemente.

–As inspirações simplesmente aparecem, do nada. As vezes, na calada da noite, a necessidade de escrever sobre um sorriso vem e você precisa se levantar e escrever sobre isso.

–Já aconteceu com você, não é mesmo?

Ele sorriu de leve:

–Algumas vezes.

–Anthony, meu irmão, porque não escreve mais?

A expressão nostalgica no rosto do jovem se apagou, ele pigarreou e olhou com dureza para aqueles olhos azuis puritanos. Não estava bravo, mas certamente não gostava de que tocassem nesse assunto, Marjory não quis baixar a cabeça e para preencher o silêncio, soltou um suspiro.

–Você foi ferido? Pelo amor?

–Me meti num lugar que não deveria – ele disse secamente – E esse lugar levou minhas inspirações para longe.

–Lugar ou pessoa?

–Os dois, Marjory. Agora, preste atenção – ele virou duas páginas rapidamente, e Marjory viu que estava em uma parte gasta, onde o pergaminho do livro tinha manchas de vinho na ponta e evidências de que já fora apalpado muitas vezes. Ela reconhecia aquela página, sorriu minimamente e esperou pela voz do irmão – Entre tremor e desejo...

“...

Vã esperança e vã dor

Entre amor e desamor,

Meu triste coração vejo.

Nestes extremos cativo

Ando sem fazer mudança,

E já vivi d’esperança

E agora vivo de choro vivo

Contra mim mesmo pelejo,

Vem d’ua dor outra dor

E d’um desejo maior

Nasce outro mor desejo”

Marjory já conhecia esse poema de cor e salteado e por isso, fez questão de murmurar as últimas estrofes e quando seus olho se abriram, deu de cara com um Anthony calado, sério, contudo, admirava a irmã. Ela sorriu alegremente e rastejando-se sobre os lençóis esticou o braço para que ele o pegasse. Ele o fez rapidamente e ela disse:

–Estou feliz em poder ir com você para Portugal

Em resposta, Anthony respirou fundo. Talvez fosse a forma de representar seu alívio por também carregar seu porto seguro junto consigo. Afinal, estavam fazendo as mala para caírem na estrada rumo a um futuro e uma terra desconhecida.

Nicodemus Astaroth

Nicodemus ficou grato quando o cocheiro decidiu dar uma parada para que os passageiros se alimentarem. Algumas carruagens eram mais chiques e bem equipadas e ele duvidada muito que estas tivessem nessecitando de algum recurso, no entanto, pra que colocariam estofamento nos bancos das carruagens de empregados? Era lógico que jamais gastariam suas moedas para isso e lá estava ele, sentindo uma pontada forte nas costas e com as pernas dormidas de ficar tanto tempo sentado na mesma posição. Na sua condução, os homens não gostavam nem de respirar muito alto, pois eram em quatro, e seus cheiros e hálitos se misturavam no pequeno e desconfortável ambiente. A sensação não era nenhum pouco agradável.

O cavaleiro pulou de seu banco assim que viu o clic da porta se abrir. Respirou o ar puro e apreciou o vento forte, que ricocheteava as folhas das árvores , fazendo uma música na tarde ensolarada. Seus companheiros de condução desceram logo em seguida e os quatro homens deram uma boa alongada na coluna, sentido a prazerosa sensação dos ossos estalando.

–Nada confortável, não é mesmo? – o loiro que viera o percurso inteiro em silêncio murmurou. – Como se sente ao imaginar que não estamos nem na metade do caminho?

Nicodemus ficou feliz ao notar que ele se esforçava para puxar assunto, não parecia ser o tipo de homem que conversava, então não o deixou falando com os ares:

–Não gosto de ficar parado – seu sorriso inocente era quase infantil – Adoro me mover. Gosto das árvores, dos ar livre... Essa condução é uma tortura.

O loiro riu:

–Então temos um ponto em comum. Gosto de apreciar as coisas belas.

–Mais ou menos isso – Nicodemus murmurou, baixinho.

–Ah, eu me chamo Joe, a propósito.

–Nicodemus.

–Nunca ouvi falar do senhor.

–Nem eu do senhor.

Joe sorriu, seu sorriso era convidativo, cheio de luz. Parecia querer competir com o sorriso de Apolo:

–Nasci na Inglaterra, mas fui para a casa de um Senhor rico na Grécia quando tinha apenas oito anos. Sou apenas um guarda mal-treinado.

–Não acredito em guarda mal-treinado e sim, em desinteressado.

–O meu senhor não me permitiu bons ensinamentos – Joe explicou com calma – Sou um homem da casa. Faço suas tarefas mais simples e nunca tenho tempo para o combate. Ele já é velho demais e acho que meio que me adotou como seu filho.

Nicodemus ergueu as sobrancelhas e descruzou os braços:

–Então porque segue o rumo de Portugal?

–Não sou um escravo. Apesar de tudo, sirvo à coroa inglesa. Meu senhor permite minhas viagens.

–Intrigante. Pretende voltar logo para a Grécia?

Joe deu de ombros e começou a andar quando viu que todas as pessoas das conduções seguiam para o mesmo caminho. Nicodemus o seguiu. Provavelmente havia um restaurante ali por perto:

–Portugal sempre me interessou. São donos de grandes embarcações e passam por momento bom na economia, acredito que o padrão de vida é muito mais elevado.

Nicodemus tentou esconder a feição entediada quando Joe começou a puxar papo sobre política, mas não conseguiu. O cavaleiro loiro, no entanto, não se importou e continuou a falar sobre economia, números e histórias de seu senhor. Explicou como chegara a Grécia - e Nico não quis nem ouvir, então apenas balançava a cabeça, fingindo entender – falou muito sobre seus treinamentos que costumavam serem acirrados mas que agora eram praticamente inexistentes.

Algo de prazeroso em Joe, era sua voz ritmada e levemente rouca. Ele realmente parecia filho de um grande senhor grego. Tinha olhos castanhos levemente puxados e queixo quadrado e moldado. Era mais baixo que Nicodemus, no entanto, seus braços eram um pouco mais largos. Talvez ainda fossem resultados de seus antigos treinamentos. O inglês Joe estava longe de ser uma pessoa chata e tagarela, ao contrário, parecia apenas ter sentido confiança em Nicodemus e assim sendo, decidiu descontar em seus ouvidos tudo que passava naquela mente agitada. Era até mesmo algo honroso – pensar que alguém desconhecido havia sentido confiança nele assim tão rápido.

Ele parou de falar quando chegaram na porta do bar.

Um dos cocheiros bateu na porta, seus punhos eram muito vermelhos e suas mãos eram cortados por cordas. Nicodemus sentiu um arrepio ao ver aquela pele velha e feia. Todos esperaram ansiosos por alguns segundos. Inclusive as mulheres, que geralmente se negavam entrar em bares, pareciam estar esperando por horas um momento para esticar as pernas e desfrutar de um petisco quente.

Em segundos, um moço abriu a porta. Tinha cabelos cheios e cacheados num tom de loiro claríssimo, quase cegante. Seus olhos cinzentos fizeram Nicodemus torcer o nariz, aqueles olhos eram muito parecidos com o de alguém que ele conhecia... Bufou. O jovem abriu seu sorriso de poucos dentes e deu passagem para que todos entrassem:

–Nunca recebemos tantas pessoas! – disse animado enquanto as pessoas iam tomando seus lugares – Pai, Mãe! O que temos de comida ainda?

Nicodemus deu uma volta pelo lugar enquanto procurava um lugar bom para poder descansar devidamente. O lugar era até mesmo apresentável. Era limpo e aparentemente estava vazio até agora. As mesas eram compridas e distribuídas por todo o lugar, tendo que se remexer para passar entre as pessoas que se sentavam. A iluminação era baixa e a adega estava recheada de vários tipos de bebidas. O cavaleiro viu uma peça anexada ao bar e seguiu até lá. Provavelmente era o banheiro e iria utilizá-lo antes que formasse uma fila.

Quando voltou, viu que lhe restava poucos lugares para escolher. O jovem loiro atendia uma mesa e anotava os pedidos mentalmente. Muito perto dele, um homem barrigudo e com um bigode aparentemente duro parecia fazer o mesmo. Nicodemus não achou que eles dariam conta de aprontar tanta comida em tão pouco tempo e voltou a procurar um lugar para se acomodar. Por fim, decidiu-se sentar ao lado de outros cavaleiros. Todos conversavam muito animados, rindo e fazendo o uso de uma linguagem nada educada. Principalmente quando sentados a mesa. Nicodemus abaixou o olhar para seus dedos e sentiu as orelhas queimarem.

–O que desejam, senhores?

Ele levantou os olhos ao ouvir a voz calma. A moça tinha cachos longos como o garoto que os atendera, no entanto, seus punhados de cabelo estavam arrumados em um coque meio-solto-meio-preso, deixando com que todos ficassem embasbacados com o rosto redondo, de bochechas fartas e olhos pequenos. Era uma beleza exótica e polêmica. Haveria quem discordasse que ela não era bela, no entanto, toda a mesa de Nicodemus parou por um segundo. Até que um engraçadinho falou:

–Desejo a senhorita.

Os olhos castanhos da moça quase se esbugalharam. Se tivesse armada com uma faca, com certeza cortaria a garganta do infeliz que abrira a boca. Nicodemus também não gostou nada do tratamento e pensou se poderia pedir desculpas pela má educação de seu parceiro de viagem. Mas não teve tempo, todos começaram a rir e a bater na mesa, controlando as gargalhadas exageradas. Não havia sido engraçado. Nicodemus não achava isso.

A moça engoliu em seco e abaixou o olhar para as suas unhas sujas. Estavam roídas e restos de sabão se infiltravam por toda a ponta de seus dedinhos gorduchos:

–Temos muitos vinhos e cervejas. Nossa especialidade. Podemos acrescentar mais água na sopa e servir mais legumes, se quiserem.

–Aceito uma sopa – Nicodemus foi o primeiro a falar enquanto os outros soltavam risadinhas e olhadas intimidadoras para a moça. Ele olhou pela janela as suas costas e viu que logo o sol iria se por. Era uma boa hora para desfrutar de um jantar – E um copo de água, se puder. Faz tempo que não tomo um desses.

–E para o restante de nós, traga vários vinhos. – um homem falou. Nicodemus não viu quem era.

–Como quiser.

Com uma reverência desengonçada, ela os deixou. Alguns babacas continuaram olhando a parte traseira de seu vestido encardido. Alguns rasgos revelavam sua panturrilha e seus pés descalços, mas ela não estava mal vestida. Seus ombros estavam muito bem cobertos e seus cotovelos também. Um pano de limpar estava amarrado em seu pulso esquerdo e um lenço para limpar taças era colocado em um suspensório na sua cintura. Uma verdadeira dama da casa. Nicodemus ficou se perguntando se o dinheiro que eles ganhariam para servir a janta de hoje seria o suficiente para que ela comprasse vestes melhores ou para que talvez tentasse a vida servindo alguma boa dama das redondezas. Torcia para que sim, e ficou pensando nisso até ver o prato de sopa diante do seu rosto.

O vapor quente em sua testa foi como um sopro de realidade. Piscou rapidamente e sorriu para o rosto na sua frente. A moça apertou mais as amarras do pano em seu pulso:

–Coloquei um pouco de tempero a mais – ela falou sem olhar para ele – Não se preocupe, não vou cobrar.

Nicodemus sorriu, novamente daquele jeito inocente, puro e animado:

–Muito obrigada, senhorita.

–Não há de que – ela deu de ombros – Reparei que o senhor foi o único que não tirou sarro da minha cara. Eu deveria estar acostumada com tamanho assédio, mas não consigo. Mamãe diz que ignorar é melhor do que bater de frente.

–Assédio?

–Sim. Os homens rindo da minha cara. Querendo pegar nas minhas pernas ou tentando descobrir o que há embaixo do meu vestido. – Ao dizer isso, ela abraçou o peito, como se tentasse se proteger – É nojento.

Nicodemus não soube o que dizer. Encarou o olhar da moça e então baixou os olhos para seu prato, novamente. Ela ficou parada o observando. O jovem, que Nico presumiu ser o irmão da moça, servia o restante da mesa. Indo e vindo com taças e garrafas de vinho.

–A propósito, qual o seu nome?

–Nicodemus - disse, sem nenhum traço de emoção.

–Me chamo Cecily – suspirou – Bom, vou ajudar mamãe na cozinha. Aproveite a sua refeição. Com o tempero, ela é muito mais gostosa.

O jovem assentiu e a viu desaparecer entre as outras pessoas. Voltou sua atenção para o prato de sopa e tomou uma colherada da comida. Ela tinha razão. Não era boa, mas o tempero ajudava a ficar mais tragável.

Suspirou.

Queria chegar o quanto antes a Portugal.

Precisava chegar o quanto antes.