Estava tudo escuro.

Ainda assim, ele prosseguia, mergulhando naquela escuridão. Como se pudesse pertencer a elas. Ele dava passos sorrateiros, tentando ser silencioso. Até que estava obtendo sucesso com isso. Porém, sua respiração era irregular, ruidosa. Ele poderia ser capaz de ouvir, no silêncio daquela madrugada, seu coração disparado.

Seu corpo já estava próximo daquela mesa, disposta na biblioteca. Pena que tenham escolhido a biblioteca da casa para aquela finalidade, ele pensou. Era seu cômodo preferido, e temia que não mais o fosse, depois disso.

Lá estava o caixão, sobre a mesa comprida. Embora tivesse dez anos e uma altura considerável para sua idade, observar a tampa dele exigia que ele ficasse um pouco na ponta dos pés. Ao colocar sua mão sobre a madeira, seu coração disparou.

Aquilo seria profanação? Ele não sabia dizer. Não era como mexer em um túmulo, era? E ele não estava incomodando ninguém. Aquilo era só um corpo, ele pensava. Apenas... Um... Corpo.

Ele tomou-se de coragem, e finalmente levantou um pouco a tampa.

Vazio!

Completamente vazio!

–Sherlock? – uma voz emergiu das sombras, fazendo-lhe dar um suspiro de pavor, e fechar a tampa imediatamente.

Holmes abriu seus olhos cinzentos, de maneira instantânea.

O sonho tinha terminado, é claro. No mesmo ponto que outras vezes. Sempre naquele momento. Um caixão vazio. Alguém lhe pegando de surpresa. Uma voz que ele custava a reconhecer e que mais uma vez, ele não reconhecera.

Quando recuperou-se do susto do sonho, ele virou-se para deparar com Esther, acordada, sentada ao seu lado. Ela estava observando-lhe há algum tempo.

–O que foi? – ela perguntou, parecendo assustada. – Um pesadelo?

Holmes suspirou, assentindo. Seu coração, então disparado, voltava ao pulso normal.

–Quer compartilhá-lo? Ou acredita que, contando, ele pode tornar-se realidade?

–Não há como. Eu era criança nele.

–“Não existe sonho sem algum absurdo, e não existe sonho sem interpretação. Um sonho é 1/60 de uma profecia”. Ao menos, é o que diz o Talmud.

Holmes sorriu, enquanto fitava os olhos verdes de Esther.

–Isso pode ser uma lembrança, que por algum motivo foi despertada. – ela disse, tentando tranquiliza-lo. – Uma lembrança escondida.

–Bobagem. – resmungou Holmes. – EU não me lembro de ter estado diante de um caixão vazio quando menino...

–Uma lembrança escondida, Holmes, muitas vezes está relacionada a algo chocante, que seu cérebro esconde. Eu, por exemplo... Não me lembro de muitos detalhes de quando Dmitri me... – ela ficou com a voz embargada.

Holmes a impediu, pois sabia o incômodo que o assunto trazia a ela. Ela suspirou, voltando ao assunto.

–Além disso, não seria a primeira vez que seu cérebro esconde lembranças de você, porque você não se lembra de nossa primeira noite...

–Eu estava bêbado e drogado, ao mesmo tempo. Foi diferente.

Esther ergueu uma sobrancelha, diante da justificativa de Holmes.

–Então, vou beber até cair e matar uma pessoa. Assim saberemos se bebedeira causa tal estado. Ou mesmo você pode me dar um pouco de sua solução sete por cento...

–Esther...

Ela riu de sua situação de repreensão.

–Quer um chá de camomila? Pode ajudar a dormir...

–Não, pois eu terei de me levantar daqui a pouco... São três e trinta. Acho que vou ver meu irmão Mycroft amanhã. Provavelmente iremos almoçar juntos e meu irmão costuma almoçar às onze. Ele sempre teve um apetite feroz.

Londres, Inglaterra. 12 de Janeiro de 1895.

Pall Mall. 11:35 a.m.

Fazia muito tempo que os irmãos Holmes não almoçavam juntos.

Sherlock Holmes pedira pouca comida, no restaurante que ficava ao lado do Clube Diógenes onde seu irmão fazia suas refeições quase todos os dias, de maneira religiosa. Ele observava seu irmão, do outro lado da mesa. Continuava o mesmo homem gordo de sempre, com olhos cinzentos e atentos, que pareciam possuir toda a energia que seu corpo não possuía. Seu cabelo, cada dia mais grisalho, sequer lembrava o castanho claro reluzente de sua juventude. Embora tivessem apenas oito anos de diferença, Mycroft parecia ser quase um homem idoso, quando sequer tinha completado cinquenta anos.

Os dois conversavam sobre seus pequenos problemas. Sob perguntas disfarçadas, Mycroft perguntou como andava o casamento de seu irmão, recebendo bom retorno disso. Certamente será questão de tempo para a chegada de bebês, pensava Mycroft, diante da boa disposição de seu irmão. Bebês, ele não deixava de analisar... Lembrava-se de Sherlock, quando bebê. Uma criatura insuportável, quase horripilante. Pouco cabelo, desdentada e que não conhecia outra linguagem senão chorar. E havia quem o achasse lindo.

Holmes ria de suas observações.

–Estou a falar sério, Sherlock! Bebês são terríveis!

–Tenho certeza de que saberemos lidar com isso. E além de quê, quem disse que eu não me lembro do que é uma casa com bebê?

Mycroft parou para refletir um pouco. Com esta observação de Holmes, o ar da mesa tornou-se imediatamente pesado.

–É mesmo. Eu me esqueci por completo dela...

Holmes pareceu resignado. – Você não é o único. De fato. Eu... Eu estou me esquecendo dela também, Mycroft.

Mycroft fungou. – Não fique assim, meu irmão. Não é culpa sua, você era muito jovem...

–Eu não me lembro do cabelo dela, se era loiro como o de nosso pai ou castanho igual ao seu e de nossa mãe.

–Castanho. Definitivamente castanho, disso eu me lembro. Mas afinal, Sherlock, por quê está se lembrando de Catherine agora, depois de tanto tempo? Pensei que já tivesse superado isso.

Holmes recompôs-se rapidamente.

–Um caso antigo reapareceu, Mycroft. Sinto que terei de reabri-lo.

–De fato? – Mycroft parecia pasmo. – E... Você errou?

–Não é esta a questão. Não há dúvida quanto à exatidão de sua resolução, meu irmão, mas esse caso acabou por me deixar intrigado. Deu-se bem no início de minha carreira. Uma suposta traição, que terminou em um crime passional... Pouparei-te dos detalhes.

–Ótimo. – disse Mycroft, friamente. – Detesto crimes passionais.

–O fato é que escapou de meu conhecimento que uma das pessoas envolvidas (na verdade, a acusada), era ninguém menos que Beatrice Morgan.

Mycroft arregalou seus olhos cinzentos, surpreso.

–Há quantos anos não ouço esse nome... Não era esta a moça que meu pai quase fizera você se casar?

–Sim.

Mycroft deu de ombros. – Bem, o que essa moça fez após o rompimento não é da sua alçada, Sherlock. Aliás, eu não compreendo aonde você quer chegar, meu irmão.

Holmes suspirou. – Inegavelmente, o passado dessa mulher está atrelado ao meu. Eu testemunhei contra ela em um tribunal, e ela foi condenada à forca por isso. Eu temo agora pela reabertura desse caso, e principalmente porque eu sequer sei o que se passou na época.

Mycroft terminava seu almoço, dando demoradas mastigadas, como se analisasse a questão tal como um problema de matemática.

–Então, você teme que aleguem que você mentiu em Juízo, por vingança, com o intuito de prejudicar uma moça que fora sua noiva no passado. Realmente, essa não seria uma boa perspectiva em um Julgamento.

Holmes pareceu satisfeito com a dedução do irmão.

–Agora eu percebo a gravidade do problema, Sherlock. Você pode ser processado por isso. Não diria que iria à Forca, mas de Trabalhos Forçados durante alguns anos você não escaparia.

–Saindo dos trâmites legais, meu irmão Mycroft... – tentou mudar de assunto Holmes.

–Sou todo ouvidos. – disse Mycroft, entre uma garfada.

–O que você se lembra dessa época? Quando rompeu-se o compromisso entre as duas famílias? Quem teve a iniciativa do rompimento?

Mycroft tentava se lembrar.

–Eu acho que já estava no Colégio Interno de Sussex... Sim, eu tinha uns dezoito anos... E você, dez... É, isso mesmo... Eu não lembro bem o que aconteceu, além de ter sido logo após a morte de nossa irmã, Catherine. Meu pai deve ter tido algum desentendimento entre eles, e decidiu romper. Mas de fato, a questão é obscura até mesmo para mim. Há coisas que papai jamais me contou, e duvido que tencione contar, e essa é uma delas.

Holmes suspirou firmemente.

–Não posso agir imerso em ignorância, Mycroft. Se estou prestes a enfrentar um processo, preciso me preparar, apresentar bons argumentos que me isentem de má intenção para com aquela moça. Em outros tempos, eu riria disso, pouco me importaria, mas agora... Agora, eu tenho quem cuidar e zelar. Não posso me arriscar a ser mandado a um presídio, não mesmo. Eu sei, Mycroft, você dirá que dada minha fama, a possibilidade disso acontecer é quase nula. Mas eu não trabalho com incertezas.

–O problema perturbou-te a ponto de não deixa-lo descansar enquanto não achar a verdade. – concluiu Mycroft. – Eu espero, sinceramente, que você não se machuque procurando essa verdade. Os segredos da família Holmes costumam ser mordazes, feito espinhos.

–Acho que já estou com as mãos calejadas o bastante para lidar com mais alguns espinhos. – Holmes levantou-se, deixando seu prato de comida, praticamente intocado, e fez uma breve menção gestual de que iria sair.

Mycroft, que ainda tinha metade de uma costela para terminar, lhe avisara, enquanto Holmes se dirigia para a saída do restaurante.

–Cuide-se.