Laços de Sangue e Fúria

Somente Damas Recebem Flores


Londres, Inglaterra. 13 de Janeiro de 1895.

Comprar leite e jornal tinha sido um martírio a Mrs. Hudson. Os jornalistas pareciam ter dormido em sua porta. Seus inquilinos sentiam-se incomodados, toda hora sendo abordados por eles. Um deles era o mais impertinente, chamava-se Thomas Finn. Sempre fora assim, em todos os casos onde Holmes tinha algum destaque.

–Mrs. Hudson! Ei, Mrs. Hudson! Uma palavrinha...

A senhoria fechou a porta no nariz de todos eles. Depois de livrar-se de todos eles, a mulher suspirou de alívio.

Abrindo a porta, ela deparou-se com Esther, já acordada.

–O que se passa, Mrs. Hudson?

–Esses jornalistas... Me cercam como abutres! Imaginem, quase me derrubaram na rua, me enchendo de perguntas sem sentido e maldosas quanto ao Mr. Holmes!

A senhoria subiu, com seis jornais diferentes na mão e um a garrafa de leite na outra. Certamente, Holmes lhe pedira uma edição de cada jornal para ter uma idéia do quê estava sendo noticiado.

O assunto não fora outro no café da manhã.

Holmes estava sentado à mesa, com o prato de panquecas intocado, mãos reunidas e olhos atentos. Coube á Watson a missão de ler os jornais, em voz alta, aos presentes. Diane observava a tudo com ar de diversão, como se estivesse fazendo parte da história de um livro, e Esther estava concentrada, tentando evitar demonstrar que, na verdade, estava preocupada com o estado mental de Holmes, uma vez que ele não dormira a noite inteira.

–Aqui no jornal diz: “Os noivos continuaram seu relacionamento às escondidas, até seu definitivo rompimento, por escolha própria de Beatrice, que à época conheceu seu futuro marido, Mr. Finnegan...”

Holmes sorriu em escárnio. Watson continuou.

–“Porém, Sherlock Holmes jamais aceitou o rompimento. Não se sabe se por força do destino ou de outros fatores, anos depois os dois vieram a se encontrar, na qualidade de investigador e investigado. Mr. Sherlock Holmes fora encarregado de analisar um caso de adultério envolvendo Miss Morgan, agora Mrs Finnegan.”

Watson leu os detalhes do caso, para consternação dos presentes na sala, Mrs. Hudson, Diane Watson e Esther.

–“... O caso atingiu meandros dramáticos, entretanto, quando o cunhado e suposto amante de Mrs. Finnegan, o escriturário fiscal Mr. Lawrence Finnegan, fora encontrado assassinado. Holmes tornou-se a única testemunha ocular do caso, e fora levado à tribunal como testemunha de acusação. Nas palavras de Robert Price, advogado representante de Bruce Finnegan, a mera alegação na época da antiga relação entre a testemunha e a acusada já desqualificaria o depoimento. Entretanto, Mr. Holmes agira de maneira desleal, conduzindo à história adiante mesmo diante de tamanha ilegalidade, o que é uma prova que o Grande Detetive, desta vez, deixou-se levar por seus sentimentos torpes de vingança, conduzindo uma honrada mãe de família à morte, de todos os modos. Fato isto porque, diante de vexaminosa situação, Mrs. Finnegan acabou por se suicidar na cela, o que não isenta o detetive consultor de culpa.”

–Céus, quanta bobagem em uma só página... – murmurou Holmes, com o olhar divertido.

–“Bruce Finnegan, filho de Beatrice Finnegan, agora exige justiça. Diz que precisou alcançar a maioridade para se aperceber dos erros lançados contra sua mãe. O processo foi reaberto e a Scotland Yard abriu uma acareação interna, avaliando a situação dos membros envolvidos, dentre eles o Comissário Ralph Clawrence, de Cornwall, então Detetive Inspetor à época em Plymouth e que conduziu as investigações. O jovem Bruce Finnegan espera ser ressarcido de todo o dano causado pela injusta acusação de sua mãe, mas não quis informar a quantia. Cobertura do jornalista Thomas Finn.”

–Então, essas são as notícias do The Star? – perguntou Holmes.

–Bem, está em todos os jornais. Pelo que vejo, todos eles repetem a mesma coisa. – disse Watson, direcionando seu olhar aos seis jornais diferentes pairados sobre a mesa, constando com capas como:

O DERRADEIRO FIM DE SHERLOCK HOLMES

O DETETIVE DE BAKER STREET NO BANCO DOS RÉUS

VINGANÇA E ÓDIO NO INÍCIO DE CARREIRA DO GRANDE SHERLOCK HOLMES

“ELE TERÁ DE PAGAR!”, ORDENA MR. FINNEGAN QUANTO À CULPA DE SHERLOCK HOLMES

Esther levantou-se, tentando disfarçar sua preocupação.

–Se me dão licença, preciso ir trabalhar.

–E eu preciso ir à uma entrevista. Podemos ir juntas, que tal?

Esther assentiu, ressabiada e nada animada com isso. – Por mim, tudo bem.

–Bom trabalho, Sophie. – disse Watson, gentil como sempre. – E boa sorte, minha prima.

Ambos os cavalheiros, agora sozinhos, suspiraram.

–Será que as duas estão se dando bem?

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Esther e Diane foram caminhando por Baker Street, depois de passar pelos seis ou sete jornalistas que ainda insistiam em ficar parados, como se a própria Rainha fosse sair daquela casa a qualquer momento. Diane parecia se divertir com a situação e até tentou dizer alguma coisa ao enorme grupo acampado em Baker Street, mas fora puxada por Esther.

Mais à frente, Esther demonstrou sua irritação.

–Ficou louca? Mr. Holmes disse que não devemos dizer e responder a nenhum jornalista!

Diane riu da repreenda. – Está bem, mamãe. Eu não vou falar com ninguém a respeito de Mr. Holmes. Mas eu estou surpresa em saber que ele já teve uma noiva... Não imaginei isso de um homem com ele.

–Nem eu. – mentiu Esther.

–A quanto tempo você mora em Baker Street, Sophie?

–Alguns meses.

–E acaso você imagina Mr. Holmes capaz de tal coisa?

Esther queria entender onde aquela conversa iria chegar.

–Não mesmo. Ele despreza a todas nós, mulheres. Não me parece ter sentido qualquer coisa por essa mulher. – desconversou.

As duas já estavam paradas no ponto, esperando pelo ônibus. Para profundo alívio de Esther, finalmente o ônibus de Diane, que a levaria até Covent Garden, chegou.

Ainda no ponto, Esther observava o ônibus da jovem passar. As palavras de Mrs. Hudson soavam em sua mente de maneira alarmante. Seria essa moça, de alguma forma, apaixonada por Sherlock Holmes? Do pouco que pôde ver os dois juntos, ela percebeu que qualquer tipo de sentimento advindo dela seria nada mais que ilusão. Holmes a tratava como sempre tratava as mulheres – à sua exceção, é claro. Com frieza beirando à desprezo. Não dava qualquer indicativo de algo mais.

De repente, ela viu um homem passar na rua, com um cesto repleto de flores.

–Uma rosa... Uma rosa por um xelim... Uma bela rosa de Amsterdam...

Aquele homem... Ele era o florista que lhe entregou o inexplicável buquê de rosas vermelhas! Ah, mas ela não o deixaria passar assim, tão facilmente...

–Er... Senhor...

O homem virou-se para Esther. – Deseja uma rosa, dona?

–Na verdade, eu desejo o cesto todo, e pelo dobro do que está oferecendo, mas com uma condição.

O velho arregalou os olhos. – E qual seria essa?

–O senhor entregou um buquê para mim uma vez. Quem me mandou aquelas flores por seu intermédio?

O velho mudou o semblante. De entusiasmo para cautela, Esther notou. Sem pensar duas vezes, ela deu as costas.

–Bom, eu sempre preferi margaridas mesmo...

–Espere! – gritou o velho, para alívio de Esther.

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A porta batia com força.

–Já vai! – gritava Rose, enquanto terminava de amarrar seu vestido. Assim que tivesse boas condições, ela pensava, contrataria uma empregada para tratar desse tipo de coisa.

Assim que abriu a porta, recebeu um belo tapa no rosto, forte como jamais levara, nem mesmo dos cafetões de Whitechapel. Ela ficou atordoada, e imediatamente tentou se levantar e se defender, mas a moça (ela estava surpresa em constatar que uma mulher tinha tamanha força) continuou a estapeá-la.

Caída ao chão, com a bochecha vermelha, ela virou seu rosto e encontrou uma moça loira, de boas roupas e olhar nada pacífico. Furiosa pela afronta, Rose se levantou e tentou ataca-la de volta, mas acabou indo parar no chão de novo.

–Mas que porra é essa?! – ela esbravejou, irritada.

Rose se arrastava pelo chão, impotente. Sentia-se fraca e humilhada. Sequer era capaz de acertá-la com um tapa que fosse. Justo ela, que passou a vida nas ruas da América e de Londres, que já se estapeou até mesmo com homens para se defender, agora sentia-se impotente, fraca, diante de uma mulher bem-vestida e arrogante, como uma dessas almofadinhas irritantes londrinas mas que brigava tão bem quanto uma briguenta de beira de cais.

Sem se dar por satisfeita, a misteriosa mulher loira pegou Rose por seus cabelos ruivos, com violência. O rosto de Rose já estava vermelho, de raiva e de dor, quase atingindo a cor de suas madeixas. Havia algo de selvagem naquela moça. O que ela tinha feito para isso acontecer?

Ou.. Seria ela a amada Sophie de Watson?

–Da próxima vez que desejar me enviar flores, pense duas vezes! – ela gritou.

–Que flores? – perguntou-se Rose. Sua voz só dava mais ira à Esther.

–Não se faça de desentendida, sua vagabunda! – disse Esther, apetando forte suas bochechas e erguendo o rosto dela. – Pensou que iria me enganar tão facilmente? Acha que eu não sei de suas artimanhas? Das malditas flores que deixou na porta de minha casa?

Lançada ao chão, e já percebendo o que estava acontecendo de fato, Rose riu de maneira debochada.

–Prazer em conhece-la, Sophie Sigerson... – ela disse, com diversão, levantando-se do chão e rindo. – Finalmente...

Como essa mulherzinha vulgar sabe o meu nome? perguntou-se Esther, diante da debochada e surrada Rose, parecendo vitoriosa.

Momentaneamente, claro.

Pois mais rápido do que ela esperava, Esther terminou de erguer Rose do chão, mais uma vez, pelo colarinho de seu vestido, e a imprensou contra a parede, derrubando um vaso.

–O prazer é todo meu, sua vadia! – gritou Esther.

Esther deu mais três tapas em Rose, deixando-a agora com hematomas visíveis em seu rosto, além da vermelhidão. Depois, pôs-se embora dali.

Caída ao chão, e perto dos cacos de vidro do vaso quebrado, Rose esbravejou. Aquela mulher não poderia ser melhor do que ela! Não poderia! Tão insossa, ridícula! Aquilo ainda teria volta.