Laços de Sangue e Fúria

Reunindo As Últimas Peças


Londres, Inglaterra. 18 de Fevereiro de 1895.

Bairro de Fulham. 09:30 p.m.

Holmes grunhiu de dor, aborrecido.

Era noite, perto das onze. Ele acreditava que jamais sentiria tanta falta de sua cama – ou melhor, da espaçosa cama casal do quarto de Esther – quanto naquela noite. A cama solteiro que ele estava dormindo era bem menor que a sua, fazia rangidos com o menor movimento e, para completar a situação desconfortável, Esther estava inquieta. Ele sabia que aquela noite seria particularmente difícil, mas não imaginava que seria tanto assim. De fato, os eventos que eles descobriram aquela tarde eram deveras chocantes.

Não era Diane Watson quem estava em Baker Street, mas sua própria assassina. O fato de Watson estar dormindo no mesmo teto que a assassina de sua família deixava Esther estarrecida, assustada. Ela teve vontade de ir até lá, contar tudo e chamar a polícia, mas Holmes a deteve, alegando que precisavam se preparar, pois ela era uma mulher muito perigosa. Melhor, ele precisava se preparar. Ainda sentindo sua ferida, ele não seria de boa ajuda, e também não havia qualquer hipótese de deixa-la sozinha, lançada aos leões.

–Desculpe. – ela disse, sinceramente, ao ver que sua inquietude na cama tinha causado dor nele.

–Não consegue dormir? – ele perguntou.

–Como dormir?

Holmes suspirou. – Ela não fez nada até agora, Esther.

–Mas pode fazer hoje.

–Não irá fazer. Ela pode ser uma usurpadora, uma impostora. Talvez tenha pensado em alguma herança, seja uma golpista profissional.

Esther se sentou à cama, arrancando mais um suspiro sofrido de Holmes.

–Ela matou crianças, Sherlock.

–Eu sei... – ele disse, pegando em sua mão. – Mas devemos nos lembrar de que ela não está sozinha. Há o cúmplice também, e nós dois sabemos que ele é igualmente perigoso. Eu preciso estar preparado, porque eu não vou deixar você enfrentar sozinha esses dois criminosos.

Esther pensou, por um momento.

–O fato de o comparsa dela ser justamente Bruce Finnegan, o homem que está te acusando de ter destruído a vida da mãe dele e que pode ainda te colocar na cadeia não lhe dá nenhuma suspeita? Ou mesmo perturbação?

Ainda havia esse pormenor. O homem na fotografia, identificado como Mr. Manson, era ninguém menos do que Bruce Finnegan, filho de sua ex-pretendente, Beatrice Morgan.

–De fato. Não acredito em coincidências. – decretou Holmes. – Talvez essa moça esteja naquela casa também para me prejudicar neste caso. Talvez esteja ajudando Finnegan nesta vingança infantil contra mim. Eu preciso de um tempo para pensar... – disse Holmes, levantando-se cuidadosamente, ainda sentindo dor.

Ainda deitada, Esther perguntou.

–Aonde você vai?

–Fumar. – disse Holmes, pegando seu cachimbo que estava sob o criado-mudo. Esther, que não gostava muito de cigarros, sequer fez objeção, voltando a se deitar.

–Não demore muito. – ela alertou. – E nada de três cachimbos.

–Mas este é justamente um problema de três cachimbos, minha cara... – alegou Holmes. – Enfim, estarei de volta em breve, mas não espere por mim. – ele disse, vestindo seu robe. – Boa noite.

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Na pequena sala de estar de Revington, Holmes sentou-se sobre a cadeira, com o cachimbo aceso á boca. Levou a mão cuidadosamente ao curativo, que estava sobre o seu ferimento. Ele sabia que seria questão de dias, até que estivesse plenamente bem e pronto para acabar com a farsa daquela mulher.

E de pensar que ela lhe beijara a força, ele pensava... Que mulher estranha! Esther deveria mesmo ser uma exceção a elas... Ora esta! Ela lhe beijara a força, e depois ainda tentou convencer Watson de que ambos tinham trocado um beijo. Embora Watson tenha ficado ao lado dela, Holmes acreditava que ele não estava completamente convencido dessa sandice.

–Urso?

Holmes virou-se, arrancado de seus próprios devaneios.

Era a pequena Charlotte.

–Charlotte... O que está fazendo aqui, acordada a uma hora dessas?

A menina, que tinha o olhar tímido e um tanto assustado, levava as mãos às costas. Acabou revelando um pequeno livro.

–O senhor pode ler para mim?

–Ler? Para você? – disse Holmes, pegando o livro “Alice no País das Maravilhas”, que deveria ser mesmo o preferido dela, pois já estava bem gasto.

–Papai lia para mim. – ela disse. – O senhor pode ler?

Holmes suspirou. O tio dela, Richard, tinha ido ver um doente na mesma rua e ainda não voltara. Certamente, era por isso que a menina estava com insônia.

–Tudo bem... – disse Holmes.

Holmes começou a ler o livro infantil. A menina o ouvia atentamente, até seus olhos começarem a pesar nas próximas páginas de leitura. Depois, bocejos. Bom, a tática parecia estar funcionando. Depois de um bom período de silêncio, ele percebeu que a menina já estava rendida, finalmente, nos braços de Orpheu.

Quantas crianças não gostavam desse livro? Holmes não possuía uma idéia exata, mas imaginava que era um número considerável. Sim, “Alice no País das Maravilhas” estava presente em muitos lares britânicos...

Um estalo lhe veio a mente.

Holmes pegou seu pequeno caderno de anotações. Nele, estava gravado o conteúdo daquela carta enigmática que ele recebera e que não conseguira decifrar ainda. Se o código para desvendar aquela carta tivesse sido construído com base em um livro – qualquer livro, ele pensava, mas ao menos um livro comum – “Alice no País das Maravilhas”, um fenômeno de vendas do mundo infantil, poderia ser uma possibilidade.

Não demorou, até que ele percebesse que sim, o código se encaixava perfeitamente naquele livro.

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Esther tinha adormecido levemente, num sono sem sonhos. Acabou sendo despertada quando, em um de seus movimentos, acabou por estender seu braço ao lado da cama onde Holmes costumava dormir. Seus dedos vagaram nos lençóis frios, sem sua presença. O sono foi embora rapidamente. Ele tinha dito que fumaria um pouco, e pelo visto, ele a enganara, não pela primeira vez. Ela consultou o relógio de bolso de Holmes, colocado sobre o criado-mudo. Havia se passado cerca de três horas dede que ele lhe deu boa-noite. Deveria estar, àquela altura, terminando seu segundo cachimbo.

Decidida, ela levantou-se, colocou seu robe e caminhou até a sala, encontrando uma cena bem diferente do que esperava encontrar. De fato, Holmes estava com o cachimbo à boca, mas sentado ao chão, com um livro no colo e as mãos ocupadas entre rabiscar um bloco e virar as páginas.

–Sherlock?

Ele não atendera. Seus olhos cinzentos estavam concentrados nas páginas, em um ritmo frenético. O que quer que fosse, deveria ser muito importante, e uma pessoa normal, comum, poderia fazer isso no dia seguinte. Ela suspirou. Holmes jamais tinha horário para fazer coisa alguma.

–Holmes!

Finalmente, Holmes virou. Estava tão atento em decifrar aquela mensagem que nem percebeu que Esther estava logo atrás de si. Sempre que ela lhe chamava por Holmes, nos últimos tempos, era sinal de que estava zangada.

–Agora não, Esther. Estou ocupado...

Esther agachou-se, sentando ao seu lado, fitando seus olhos no bloco.



Caro Mr. Detetive,

Certamente, o senhor conseguiu decifrar meu código. Espero que não tenha te dado trabalho – na verdade, até espero que sim. Uma de minhas especialidades em minha profissão era justamente codificar mensagens, e ter me tornado um desafio a si seria muito gratificante.

Enfim, o que me fez escrever-te foi a ameaça de perigo eminente que percebo te cercar. Tudo começou quando conheci uma bela moça, chamada Marjorie Eccles. Começamos a nos envolver, e sinto que me apaixonei por ela. Entretanto, hoje vejo que não era recíproco. Cada vez que eu tentava saber mais sobre sua vida, ela se afastava.

Uma vez, eu a segui. Descobri que ela tinha outro homem. Sou bom em leitura labial, e mesmo à distância, consegui compreender a conversa. Falavam sobre o senhor, e do quanto ela estava perto de se aproximar de você, de uma maneira que você jamais imaginaria. Percebi que ela tinha más intenções.

Comecei a investigar o amante dela. Era um homem chamado Bruce Finnegan. Descobri, então, que ele esteve em sua casa, fazendo ameaças e, pelo que pude apurar, querendo acusa-lo de agir desonestamente em um caso antigo. Aproximei-me dele e descobri que ele andou procurando um falsário para falsificar cartas. Creio que obteve sucesso nisto.

Eu te escrevo isso porque esta manhã, eu irei me encontrar com ela no apartamento que costumamos frequentar. Pretendo saber o que está acontecendo - embora eu sinta que já sei a verdade.

De qualquer modo, estou acostumado a riscos, e também estar preparado a quase tudo, até mesmo a morte. Tenho uma filha pequena, uma princesa. Espero voltar para ela. Caso eu não volte, por favor, detenha essa mulher. Por mim, e por minha pequena Charlotte.

Espero não ter chegado tarde demais,

Morrison



–Morrison! – ela deu um suspiro de surpresa.

–Exatamente. – respondeu Holmes. – Eu recebi essa mensagem há algum tempo atrás. Estava criptografada de maneira elegante. Presumi que fosse alguém da Agência, ou alguém muito, muito inteligente para fazer esse serviço. Trabalhei nisso por dias, cheguei a mostrar á Mycroft, sem resultado. Ela estava baseada em um livro específico, e poderia ser qualquer um. Usualmente, costuma-se fazer com livros comuns: Bíblia, guias, enfim... Mas o que complicou minha tarefa foi isso...

Holmes estendeu “Alice no País das Maravilhas”.

–Oh... Bem típico de Morrison fazer uma coisa dessas.

Holmes deixou escapar um sorriso.

–Se ele quis fazer um desafio à minha pessoa, ele conseguiu. Mas acredito que tenha feito isso para não só dificultar as coisas para mim, mas também para terceiros, caso essa mensagem fosse capturada. Ele pensou em tudo.

–Então... – disse Esther, observando o bloco. – Quem esteve por trás de tudo foi essa Marjorie Eccles? Até mesmo da morte dele...

–Exatamente. Não só o meu caso, mas também o seu, ainda que indiretamente. Acredito que matar Morrison não estava em seus planos. Ele descobriu tudo, e ela precisou eliminá-lo, acreditando que isso o silenciaria. Mas não conseguiu.

Esther suspirou pesadamente. – Precisamos detê-la, Sherlock. E se quer saber, isso não pode esperar mais...

–Esther...

–Eu sei, eu sei. – ela o interrompeu. – Você pode não estar em condições, eu reconheço isso. Mas podemos pedir ajuda.

Holmes ergueu uma de suas sobrancelhas.

–Ajuda? De quem?

–Inspetor Lestrade. Ou mesmo o Inspetor Reid. Ele provou ser um homem de confiança.

Holmes riu. - Lestrade deve estar querendo minha cabeça a uma altura dessas. E não estamos na jurisdição de Reid e da Divisão H de Whitechapel.

–Pouco importa. – disse Esther. – Estamos falando de uma assassina, uma criminosa internacional, por todos os meios. Cometeu assassinatos na América, e matou um espião da Rainha. Além de tentar difamá-lo. Acredito que são casos que vão muito além de uma jurisdição territorial, não acha?

Holmes suspirou, deixando escapar um leve sorriso.

Por Deus, Mulher, você realmente sabe argumentar quando quer.

–Está bem. Vamos chama-lo até aqui.