Londres, Inglaterra. 06 de Agosto de 1894.

Uma onda de calor incomum assolava Londres. Embora o sol aparecesse pouco, o mormaço se erguia sobre a cidade. Não era difícil encontrar pessoas com gotas de suor, ainda que tímidas, nas testas. As pesadas roupas vitorianas pareciam um fardo insuportável e muitos evitavam andar pelas ruas. Locais com sombra eram disputados, e estabelecimentos que ofereciam delícias como sorvete vivam lotados.

–A família Real não deve mais estar aqui, enfrentando esse calor insuportável! – murmurava um velho, impaciente.

Esther estava esperando por um ônibus e achava graça do senhor ranzinza. Fazia tanto calor que ela tinha dispensado a caminhada matinal que costumava fazer até o escritório. Não queria chegar lá em estado deplorável, ainda mais quando tinha poucos dias que tinha sido admitida.

Desde que se restabelecera, depois do caso resolvido “em termos” do falso Jack, Esther retomara sua posição na Agência, mas precisava fingir uma vida normal, e isso exigia, claro, um casamento estável e um emprego, se possível. Como seu “marido”, John Sigerson, não mais retornara para casa, algo precisava justificar o dinheiro que pagava o aluguel de Mrs. Hudson – mesmo que Holmes fosse o pagante secreto.

O emprego na Universidade tinha, de maneira negativa, marcado suas referências. Todas as escolas nas quais Esther batia franziam a testa para uma última ocupação. Consideravam isso coisa de “mulher ousada”, e temiam que o “feminismo” se alastrasse por um respeitável colégio de ensino á meninas, que ela ensinasse a rebeldia nos lares. Mas ninguém falou sobre isso abertamente. Não precisava, ela percebia no ar, em cada entrevista, em cada recusa. Era hora de mudar de carreira, pensou. Tinha, ainda, a fluência em dois idiomas, um particularmente exótico, que era o russo, e que parecia sempre lhe abrir portas. Não tardou para que outro emprego viesse. Secretária. Como Esther não conseguiu um emprego por vias normais, a própria Agência se encarregou de empregá-la. Orgulhosa, ela refutou no início, mas voltou atrás. Era necessário manter as aparências, precisava aceitar o cargo de Secretária em uma repartição pública, ali mesmo, no Ministério das Relações Exteriores. Coisa simples. Receber pessoas, separar correspondência, escrever cartas. Nada que lhe custasse esforço. Ao menos, era mais fácil justificar suas idas e vindas em nome da Agência. Era aquele um cargo fantasma.

Ao menos, era assim no início.

Até aquele dia.

Em meio às rápidas digitações na máquina de datilografar, Esther lembrava-se de como tinha ido parar ali, em um serviço burocrático que deveria ser uma mera fachada às suas investigações. A sua primeira reunião depois do incidente com Jack, às portas fechadas com seu chefe Mr. Sparks. Aliás, ele agira como um perfeito cavalheiro – ela se perguntava se ele e Holmes estudaram no mesmo colégio de Boas Maneiras Britânicas. Embora cuidadoso, ele buscava agir com naturalidade, pouco tocando no assunto e nos detalhes de sua licença médica. Isso a deixava ao menos um pouco confortável.

–Esther Katz, embora acreditemos em sua recuperação, precisamos coloca-la de volta às suas antigas atividades com a devida sutileza.

Esther ouvia a tudo atentamente.

–A partir de agora, você não fará mais trabalhos externos individuais. Fará uma dupla com outro agente, estamos entendidos?

À contragosto, Esther assentiu.

Ela não foi treinada para isso. Seu trabalho era praticamente o da observação. E ela sabia que os trabalhos em dupla sempre requeriam uma tarefa mais complexa e, é claro, perigosa. Era até irônico que eles a colocassem justamente na linha de frente, dada sua recente situação. Seria esta uma maneira de expulsá-la logo da Agência, fazê-la desistir do trabalho? Ou de colocar, de alguma maneira, uma babá ao seu lado? Não que ela não se sentisse pronta, mas a idéia de se colocar mais exposta lhe dava arrepios, e trabalhar com outro agente também não lhe parecia ser nada agradável. Ela gostava da liberdade e da solidão com que executava seus trabalhos e não queria alguém do seu lado palpitando.

Com o consentimento hesitante de Esther, Mr. Sparks sorriu levemente satisfeito.

–Ótimo. Eu deixei você designada aos cuidados do Agente Morrison. Ele faz um excelente trabalho de Contraespionagem, que como você deve saber, consiste em atrapalhar o trabalho de espionagem dos outros Governos. Quase o mesmo que você fazia.

–Na verdade, senhor, eu fazia parte do Monitoramento.

–De fato. Mas não se preocupe. Dificilmente entrará em ação. O trabalho de Morrison é sutil: ele apenas identifica os novos espiões. Nada de obtenção de informações, interrogatórios, ou outras técnicas mais... “Chamativas”. Você cuidava da próxima etapa, que era monitorar os suspeitos que ele apontava. Compreende?

A maneira didática com que Sparks sempre falava irritava Esther às vezes. As pessoas diziam que Sparks era um dos mais cruéis agentes da Agência, e que tinha métodos de tortura eficazes e impressionantes. Era difícil constatar isso daquele homem com ares de professor.

Bobagem. O arqui-inimigo de Holmes também era um professor.

–Quando eu começo senhor?

Sparks mostrou-se satisfeito com a prontidão de Esther. – Por mim, agora.

Esther foi conduzida por Sparks até uma pequena sala, mais uma do imenso prédio da Agência. O imenso prédio, no coração de Westminster, ocupado pelo Ministério das Relações Exteriores – e secretamente pela Real Agência de Espionagem Britânica – era colossal, a ponto de Esther duvidar que tivesse conhecimento de sequer metade de seus pavimentos. Quantos outros locais não seriam restritos, ou mesmo secretos?

–Aqui. Este é o Gabinete. – disse Sparks, enquanto apontava a porta consultando seu relógio de ouro. – Ah, um detalhe importante. Seu parceiro costuma ser pontual.

–Diz isto apenas porque não sou britânica, Mr. Sparks?

–Bom, mademoiselle, nem tanto. Afinal, nascer na França foi apenas um “acidente geográfico”. Tenho certeza que você é mais britânica do que metade desse prédio. Aliás, até mesmo do que eu – meu avô materno era português. – disse Sparks quase em um cochicho, num tom jovial.

–Oh, realmente? – Esther pareceu espantada.

–Sim, mas não pense que sou um traidor em potencial. Portugal é uma Nação amiga. Primeiro a senhora. – ele disse, quando educadamente abriu a porta para Esther.

Esther ficara impressionada. Aquele era um imenso cômodo sem móveis, com as paredes brancas de uma maneira que poderia enlouquecer o mais são dos homens em apenas algumas horas. Havia apenas um ponto de contraste ali, naquele local impessoal: um homem, de cerca de trinta anos, recostado à parede.

Ele tinha ares militares, notou Esther. Deveria ter sido um talento no Exército, que logo atraiu a atenção do governo e também um convite para atuar na Real Agência de Espionagem Britânica, um órgão que ainda estava se firmando e mostrando sua importância. Ele tinha o cabelo loiro vigorosamente penteado, repleto de brilhantina, os olhos azuis, brilhantes, e um quê divertido e cafajeste. Um nariz sob medida, não tão grande quanto o de Holmes, embora ela tenha achado o queixo de seu marido, proeminente, melhor do que o daquele homem. D’us, desde que me casei eu vivo assim, comparando todos os homens bonitos que vejo com Holmes, quando na verdade, meu marido não é lá nenhum Apolo ou Hércules, com seu nariz de falcão, orelhas de abano, cabelo meio calvo e franzino feito um adolescente... Que ele não me ouça a pensar essas coisas.

–Agente Morrison, permita-me apresentar Agente Katz.

O rapaz, que tinha um quê atraente, ao notar Esther imediatamente sorriu largamente.

–Oh, mas se não é a famosa Agente Katz. Seu pai é uma verdadeira lenda por aqui.

Sparks mostrou desagrado, temendo alguma indelicadeza.

–Agente, seja profissional. Tratamos nesta sala assuntos de cunho Nacional, não futilidades como a filiação de sua parceira.

–Perdoe-me, sir. Perdoe-me também, senhorita.

Senhora. – corrigiu-o Sparks, deixando Esther ainda mais tímida.

Pronto, agora ele não iria mais deixa-la em paz.

–Senhora. – disse o agente, com o sorriso desapontado, mas ainda assim, nem um pouco desesperançado.

Isso não vai dar certo.

Os dois trocaram um aperto de mão cordial.

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Londres, Inglaterra. 14 de Setembro de 1894.

(Cerca de um mês depois...)

Uma última gaveta foi fechada.

Morrison deu um suspiro. Ele odiava a parte burocrática de seu trabalho. Mas daquela vez, tudo tinha sido diferente. Se ele costumava demorar quase um mês para filtrar os suspeitos, dessa vez estava tudo concluído em uma semana. Mas enquanto aguardavam as ordens de Mr. Sparks para partirem para a “parte prática”, o trabalho de levantamento de perfis suspeitos continuava.

Ele não gostava de admitir, mas boa parte de seu sucesso estava nas mãos delicadas de Esther, somado ao seu talento de perceber tudo em seus mínimos detalhes. Essa, ele sabia, era uma característica feminina. Sempre fora machista, mas aquele breve um mês de trabalho ao lado dela lhe fez enxerga-la muito mais que um “pedaço de carne”, como ele a referiu para seus demais colegas em uma conversa qualquer pelos corredores. Agora, ele se arrependia dessas palavras. Ela era, de fato, merecedora do cargo. Competente, inteligente, atenciosa...

Controle-se, Morrison. Ou você acabará pedindo-a em casamento em uma semana.

–Do que está rindo, Morrison? – perguntou Esther, enquanto agrupava alguns papéis, aparentemente alheia ao seu colega de trabalho.

–Uma bobagem que passou pela minha cabeça.

–Algo relacionado ao nosso trabalho de filtro? – perguntou Esther, enquanto se revezava lendo uma folha.

–Nem vale a pena saber, acredite em mim.

–Bom, se diz isso, por mim tudo bem. – ela disse, fechando um último envelope. – Pronto, esta é a minha última análise. Acredito que é o bastante por hoje. Além de quê, já passa das seis. A esta hora, os ônibus já estão lotados.

–Por isso, prefiro os cabriolés.- caçoou Morrison.

–Bom para você, se pode pagá-los todos os dias. Prefiro deixar para recorrer a eles em dias de chuva.

–Você e metade de Londres faz isso. Por isso esta cidade está um caos. Porquê não opta por um metrô? Sabia que foi para isso que Londres é oca no subsolo?

–Agradeço sua palestra a respeito da mobilidade urbana em Londres, Mr. Morrison, mas eu preciso ir.

Esther estava se levantando da mesa, mas Morrison a deteve sutilmente, apoiando-se sobre a mesa e deixando seu musculoso braço em sua frente, impedindo-na parcialmente de passar.

–Tem certeza de que não quer ir ao pub comigo?

Esther riu da franqueza de Morrison. Era mais um de seus convites, seguido de mais uma de suas cantadas. Todo fim de expediente era isso. Suas provocações sempre terminavam assim.

Mas ao olhar para aqueles olhos azuis cintilantes, aquele braço bem modelado e o olhar carente e atraente que ele sabia muito bem lhe lançar, Esther tinha certeza de uma coisa: Mr. Sherlock Holmes de Baker Street era mesmo um homem de sorte, por ter uma esposa tão impassível à tentações – mesmo as mais tentadoras, como aquela de dois metros de altura, bem disposto à sua frente.

Respira fundo, Estherzinha.

–Sinceramente, Morrison? Eu tenho mais do que fazer do que ouvir suas cantadas baratas. Aliás, o seu repertório está um tanto gasto. Talvez isso justifique o porquê de você atirar para todas as direções.

Morrison pareceu surpreso, de queixo caído. OK, Esther, acho que você exagerou um pouquinho...

–Tudo bem. Desculpe se ofendi sua moral e caráter, Mrs. Mulher Recatada.

–Babaquice, seu sobrenome é Morrison! – disparou Esther.

–Hahá! – Morrison riu brevemente. – E esse nem mesmo é meu sobrenome de verdade!

–Da mesma forma que eu não me chamo Mrs. Katz. – Esther bufou. – Mas olhe só para mim. Eu me rebaixei ao seu nível mental! Agora estou aqui, discutindo com você feito uma criança de doze anos...

–Ao que me parece, você é que está começando a perder o controle, Mrs. Katz. Porquê não o perde de vez, indo beber uma cerveja comigo?

Esther fechou a porta com força, deixando um divertido Morrison satisfeito que suas provocações tinham lhe tirado o brio. A porta fechada abafou as risadas dadas pelo rapaz, do lado de dentro da sala.

Um tanto irritada, ela caminhou até o ponto de ônibus, que ficava próximo ao seu local de trabalho. O ponto já estava lotado de pessoas, dado o horário, e Esther sabia que pegaria o famoso double-decker lotado. E foi o que aconteceu. O ônibus, puxado por dois cavalos, partiu do ponto lotado.

Quando finalmente sentou-se, ainda na metade do percurso, Esther pôs-se a pensar. Nos últimos dias, Morrison vivia a lhe assediar. Não de maneira brusca, mas com gentilezas fora de hora e convites irrecusáveis para muitas garotas. E ela tinha vergonha em admitir, mesmo para si mesma: no fundo, sentia-se cada vez mais cansada de resistir. Pior: ela sentia falta, na verdade, de seu marido, de estar ao seu lado além das meras aparências. Se um deles pensava que o fato de morar no mesmo endereço lhe facilitaria o contato, ambos estavam enganados. Watson estava sempre à espreita, repleto de esperanças e expectativas, e algumas vezes Mrs. Hudson agia como uma vigilante. Por final, ela estava morando há um mês em Baker Street e nada de mais concreto tinha ocorrido.

Um fio de esperança lhe ocorreu naquela manhã, quando ainda bem cedo ela viu Watson embarcar em um cabriolé com uma pequena mala. Mais tarde, ela soube por Mrs. Hudson que o doutor estava indo visitar uma paciente grávida. O parto seria difícil, pois a mulher esperava gêmeos, sendo assim não haveria hora de o doutor chegar.

–Na última vez que algo semelhante ocorreu, Watson só retornou no dia seguinte. – observou Holmes, durante o café daquela manhã, olhando fixamente para Esther, mas ainda assim com o olhar neutro.

Com certeza, ele está aprontando alguma...