O som de uma arma sendo disparada rompe o silêncio da madrugada nas imediações daquela pensão. Algumas luzes se acendem mas logo voltam a se apagar, prevalecendo a pouca iluminação dos postes das ruas cobertas de neblina. Dentro do quarto onde tudo acontecera, o cenário é desolador... Catarina, descontrolada, grita, sentindo o sangue a correr pela face onde a bala pegara de raspão, enquanto Praxedes e seus guardas, que a estas alturas já estão todos no interior daquele local, detém a cantora que debate-se, apesar da dor lancinante que sente...
Catarina : Velho Imbecil! Meu rosto! Ele desfigurou meu rosto! O que estão esperando? Preciso de um médico!
Praxedes: A senhora será atendida por um... Guardas...
Catarina : Soltem-me seus estúpidos! Não sabem quem sou? Sou Catarina Ribeiro! O que pensam que estão fazendo?
Praxedes: A senhora está presa!
Catarina: Como ousam me prender? Edgar! Faça alguma coisa! Eu sou mãe da sua filha!
Edgar (que sem sucesso tentava reanimar o pai com a ajuda de Fernando): Faço! Quero que apodreça na prisão! Como se não bastasse ter feito da minha vida um inferno, e quase ter matado Laura e Melissa... hoje você sequestrou minha filha, fez minha esposa de refém... e agora... isto!
Fernando: Delegado... leve essa mulher daqui ou não me responsabilizo pelo que aconteça com ela! Assassina! Você matou meu pai!
Catarina: E agora, depois de tudo, você vai querer dizer que se arrepende... Que amava o seu querido papai... Vai bancar o filho pródigo.... Que cena comovente... Por favor, Fernando!
Fernando: Cale-se! Sua...
Praxedes: Vamos.. (conduzindo Catarina)
Catarina (debatendo-se, sendo conduzida pelos guardas): Vocês todos vão me pagar! (vendo Laura em um canto, junto a Guerra e Joaquim) Aguarde-me mosca morta, isso não vai ficar assim...
O delegado e seus homens levam a cantora para fora daquela pensão. Dali partem para a Santa Casa, onde serão tomadas as devidas providências para o ferimento que sofrera. Apenas um guarda fica no local esperando até que a perícia chegue para a liberação do corpo. Com a saída de Catarina, Laura anda alguns passos, pousando a mão no ombro de Edgar, que junto ao irmão permanece ajoelhado junto ao corpo já sem vida de Bonifácio..
Laura: Meu amor... eu sinto muito...
Edgar (suspirando longamente, enquanto passa as mãos pelos cabelos): Obrigado... Deus... isso só pode ser um pesadelo!
Fernando: Pelo menos Melissa está bem e Catarina foi presa... (olhando para o pai) Seu Bonifácio... nós tínhamos tantas diferenças... mas não precisava terminar assim...
Edgar: Por piores que fossem as coisas que ele fizesse... por mais que eu não gostasse do rumo que tudo que ele andava fazendo estava tomando... é meu pai...
Fernando: E meu... apesar de tudo...
Guerra (aproximando-se juntamente com Joaquim): Edgar... sinto muito! Conte comigo para o que precisar... E não se preocupe... Não pretendo divulgar nada do que se passou aqui... Só uma nota a respeito do falecimento do seu pai...
Edgar (levantando-se): Guerra... eu te agradeço muito meu amigo, mas é seu trabalho... Você precisa divulgar que a Catarina foi presa...
Guerra: Meu amigo... se eu fizer isso... de uma forma ou outra vou acabar esbarrando no nome da Melissa... e logo vão saber que ela é sua filha...
Edgar: Eu preciso resolver essa situação... Não posso esconder essa menina para sempre...
Joaquim: Se quiser posso lhe ajudar com isso... Podemos ver uma forma de assumi-la legalmente sem chocar a sociedade...
Edgar: Agradeço... deve haver um meio...
Fernando (também já de pé): Desculpe interrompe-los... mas no momento temos algo mais urgente a fazer... Edgar... precisamos providenciar tudo para o funeral e o sepultamento...
Laura: A gente precisa avisar a Dona Margarida...
Edgar: Fernando e eu faremos isso (recebendo a anuência do irmão com a cabeça)... Meus amigos, agradeço o apoio de vocês... Com licença(puxando Laura para um lado)Meu amor... depois de tantos acontecimentos... ainda acho que o melhor é que vá para casa e descanse um pouco... por favor... Você passou por coisas demais nos últimos dias...
Laura: Você também passou... Amor... agora eu devo estar do teu lado... Eu sei que por mais que você esteja se mostrando forte... precisa de mim...
Edgar: Laura... isso só vai me deixar preocupado... Onde eu estava com a cabeça quando te trouxe junto até aqui? Deus! Você devia ter ficado com a minha mãe...
Laura: Edgar... você sabe que eu não iria ficar... Você me conhece! Estava aflita pela Melissa... E sabe que não vou te deixar sozinho em uma hora como essa...
Edgar: Eu também estava aflito... tanto que não raciocinei que estava te pondo em mais um risco te trazendo aqui... (fazendo uma pausa) Meu bem, te agradeço tanto por estar comigo... mas é sério... Vá para casa, dê uma olhada na Melissa e no Daniel... Descanse um pouco,... pense nos nossos bebês... Eles precisam de repouso... Vamos fazer o seguinte, depois que eu falar com minha mãe eu vou para casa e vamos para a casa dos meus pais... ele vai ser velado lá...
Laura: Tudo bem, meu amor... pode ser...
O advogado pede a Guerra que acompanhe Laura até a residência do casal, despede-se com um beijo na testa da esposa e junto ao irmão permanece ali para resolver todo o necessário para a liberação do corpo do pai. Longe dali, na Santa Casa de Misericórdia, após um primeiro atendimento, Catarina é conduzida a um quarto de mobiliário simples, onde permanecerá por aquela noite. Dois dos guardas de Praxedes vigiam a porta do local onde a cantora se encontra. Lá dentro, a mãe de Melissa, que todos acreditam estar dormindo, vendo-se sozinha pensa no que fazer... Precisa fugir dali... Os medicamentos que lhe deram para certamente lhe sedarem ela cuspira assim que tivera oportunidade. Olha pela janela, que não tem nenhuma grade... Está no segundo pavimento daquela construção... Não tem dúvida sobre o que fazer... Tomando os lençóis que cobrem o leito onde estava e mais os que encontrara em outro, desocupado, providencia uma corda fazendo nós apertados entre um e outro... Logo prende uma das pontas na propria janela e ajeita-se no parapeito... Sente dor no rosto mas isso não importa... Começa sua descida... Nisto a porta do quarto se abre...
Enfermeira: Guardas... onde está a paciente?
Guarda (indo até a janela): Pare! (vendo a cantora quase alcançando o chão)
Catarina: Vocês não vão me deter seus patetas... Adeus...
Guarda (Olhando para o outro policial) Vamos... ela está fugindo! Precisamos dete-la!
Os dois rapazes descem o mais rápido que podem os degraus daquele prédio e logo estão na rua, onde cada um vai para um lado... Não tarda um deles vê um vulto correndo de avental... apressa mais sua corrida... Catarina também acelera ao perceber que está sendo perseguida...Até que tropeça em uma pedra mais alta do calçamento irregular de uma viela em que entrara... Cai... O policial avança rapidamente, juntamente com seu colega que também já a vira... A cantora não consegue levantar-se... Está cercada novamente...
Guarda (erguendo Catarina enquanto o outro policial algema): Vamos... a senhora volta conosco... O delegado Praxedes vai decidir o que fazer...
Catarina (sendo arrastada para dentro do hospital): Me soltem! Não podem fazer isso comigo! Eu sou uma estrela...
Médico: Levem-na para o quarto... Já vamos cuidar dela...
A cantora debate-se... reluta...Usando os pés dá golpes em todos os que vê pela frente... A custo é colocada novamente na cama pelos guardas com o auxílio de alguns enfermeiros e do médico que logo aplica um calmante por via endovenosa. Aos poucos Catarina sente-se sonolenta... tudo vai-se tornando vago... Acabando por adormecer...
Médico: Não temos material suficiente para contermos a paciente aqui... A medicação que usei não é indicada para isso...Não acho que mante-la junto a outras detentas seja uma boa ideia... Essa senhora é perigosa... Está completamente desequilibrada... Vou conversar com o delegado Praxedes e solicitar que aguarde julgamento no Sanatório...
Enquanto isto, no bairro de Laranjeiras, Filipa anda em círculos pela sala por várias vezes sendo acompanhada pelo olhar aflito de Matilde. Já Manoela encontra-se prostrada em uma das poltronas da sala... Levanta-se de um salto ao perceber a maçaneta da porta principal sendo girada...
Matilde: Dona Laura! Graças a Deus!
Laura: Matilde...
Manoela: Estava aflita! Como foi tudo? Você está sozinha? Onde estão os outros? Edgar? Joaquim?
Filipa: Calma Manoela! Deixe Laura falar... (olhando para Laura) Que bom que estás bem... e que isto terminou...
Laura (falando ainda alarmada diante de tudo o que vivera): Sim... terminou... foi horrível!... Fiquei por horas como refém daquela louca... Fernando começou a instiga-la... Ela acabou confessando tudo o que fez... tudo... absolutamente tudo... Ela me culpa... Se não fosse pelo Sr. Bonifácio ter desviado a atenção dela, não sei o que seria...
Filipa: Bonifácio Vieira? Como ele foi parar lá?
Guerra (entrando): Senhoras...
Laura: Eu não sei... Ele entrou... eles trocaram acusações... Catarina acabou desferindo uma facada no abdômen de meu sogro...Ele estava armado... disparou...
Manoela (de olhos arregalados) Deus! E como eles estão? O que aconteceu?
Guerra: O tiro atingiu o rosto de Catarina de raspão... A estas horas ela já deve ter sido atendida na Santa Casa... Amanhã deve ser transferida para a delegacia... Já o senhor Bonifácio...
Filipa: Não diga... Pobre Edgar! Mais isto agora...
Laura: Eu queria ficar... Ele precisa de mim... Mas insistiu que eu devia descansar... que passei por muita coisa... que tinha que repousar por causa dos bebês...
Filipa: E ele fez bem... Vou até lá... Podem estar precisando de ajuda...
Guerra: Não é necessário Filipa... O Joaquim está ajudando...O Edgar ia avisar a mãe e providênciar tudo para o funeral com o Fernando... Filipa... acho que o que tens que fazer é ir cedo à fábrica e comunicar os funcionários que o fundador da tecelagem faleceu...
Filipa: Tem razão... Vou até a tecelagem e dispenso os funcionários hoje...
Guerra: Bem... Laura... Se precisar de alguma coisa, me avise... Vou para a redação... Preciso publicar a nota de falecimento do Sr. Vieira antes que o jornal vá para a rua... (saindo)
Laura: Obrigada Guerra (olhando para Matilde) E as crianças? Como está a Melissa?
Matilde: Daniel está bem... Estranhou por vocês não estarem, mas brincou como sempre e dormiu cedo...
Filipa: Já a Melissa, Laura, demorou bastante para dormir, o sono é agitado... Coitadinha... Depois de tudo o que passou... Não falou uma palavra o caminho todo... não quis comer... Está com a Gertrudes... De tempos em tempos vou dar uma olhada nela...
Laura: Vou ver como está... Pobre menina... Não precisava... Não devia ter passado por tudo isso... Espero que o tempo cure tudo... Mas ela vai precisar de muito carinho e cuidado para superar o que passou nessas últimas horas...
A professora lentamente sobe as escadas da residência... Entra no quarto de Melissa e observa a menina dormindo sob os cuidados da babá... Nota que o sono da criança é tal e qual Filipa descrevera... agitado... parece assustada... Aproxima-se da cama e toca levemente a face da filha de Edgar... Demora-se ainda um tempo no quarto conversando com Gertrudes, explicando sucintamente o que acontecera e pedindo que a mesma cuide da menina até que ela e o pai voltem. Sai daquele quarto e passa pelo de Daniel, que dorme placidamente... Ajeita as cobertas do filho e dando um beijo na testa do menino ruma para seu próprio aposento, preparando-se para o velório que terá de enfrentar...
O dia amanhece... Com os primeiros raios de sol Edgar chega a residência... Trocam poucas palavras e rumam para a casa da mãe do advogado que a estas alturas já começa a receber as primeiras pessoas para o funeral... As horas passam arrastadas... Na despedida de Bonifácio Vieira não há espaço para choros e lamentações... Mesmo a viúva e os filhos parecem resignados com a morte prematura do político...
No final do dia, após o sepultamento com apenas a família e alguns amigos, o casal retorna a sua casa... Entram sem o alarde costumeiro... Edgar senta-se pesadamente no sofá da sala, enquanto Laura pendura a bolsa no cabideiro próximo a porta... A moça, com seus passos leves aproxima-se e senta-se ao lado do esposo, pousando uma das mãos sobre a do advogado...
Laura: Meu amor... eu sei que não deve estar sendo fácil...
Edgar: Não Laura... não está sendo... Sabe... eu fico pensando... Como as coisas chegaram a este ponto! Como eu pude me envolver com aquela mulher! O único culpado disso tudo sou eu... Eu trouxe Catarina para nossas vidas... Fui eu que provoquei tudo isso... Não sei nem o que te dizer... te pedir perdão é pouco diante de tudo isso... Eu trouxe essa desgraçada para cá e ela passou como um furacão demolindo tudo... Não ouvi ninguém... Só pensei que a Melissa era minha filha e estava doente e nada mais importava...
Laura: Você errou sim... Errou muito! E reconhecer isso é um bom começo... Não devia ter se envolvido com ela... Nem com mulher nenhuma... Você era meu noivo! Ela se aproveitou de você, como o seu pai mesmo disse antes de morrer... Você ficou cego, surdo! Não via e não ouvia mais nada e ninguém!... E seu pai, bem, ele também...
Edgar: Eu sei, Laura... Eu sei... e não tem ideia do quanto tudo que o Sr. Bonifácio Vieira fez me envergonha... Ele ficou quieto, e pagou o silêncio dela a peso de ouro, soube o que fazer, como animal matreiro que era... Desculpe falar assim dele, mas sei que meu pai não era boa coisa e a morte não vai transforma-lo num santo...
Laura: Nesses momentos admiro ainda mais sua mãe... Aguentou calada por anos...
Edgar: Sim... Olha só.. Ontem aconteceu tanta coisa... Minha mãe mostrou-se mais forte do que eu supunha... Meu pai foi um verdadeiro canalha com ela... E ela sempre suportou tudo... Até ontem, quando o expulsou de casa... Tem ideia do que foi isso? Ela tomou as rédeas da própria vida, Laura!... Quando falamos que estava morto...Senti como se ela se livrasse de um peso.... Ela podia ter-se arrependido pelo que disse horas antes, mas não...
Laura: Edgar... Sua mãe sofreu tanto nas mãos do seu pai... Eu não esperava outra coisa dela além de resignação com a morte dele...
Edgar: Resignação... Dela... Minha... De Fernando... Falando dele, também parece estar criando juízo... Vamos ver de agora em diante como vai ser...
Laura: E a tecelagem? Como vai ficar? Vi você falando com as meninas antes...
Edgar: Filipa me disse que amanhã vamos fazer uma reunião... Minha mãe pediu...
Laura: Bem... Vamos aguardar as resoluções da Sra. Vieira... Aos poucos as coisas vão voltar ao prumo... Pense pelo lado bom... pelo menos a louca da Catarina está presa...
Edgar : É verdade... mas o que isto custou...
Laura: Edgar... falando em Catarina... temos que falar com a Melissa...
Edgar: Sim... precisamos... minha abelhinha passou por algo que até agora não entendo como Catarina teve coragem...
Laura (levantando, dando a mão ao marido e dirigindo-se com ele para o andar superior): Catarina simplesmente perdeu o pouco juizo que ainda tinha... não há outra explicação...
Edgar e a professora andam pelo corredor e param diante da porta entreaberta do quarto da menina... Dali ouvem por algum tempo a conversa de Melissa com o irmão caçula...
Daniel: Mas Melissa... só um pouquinho...
Melissa: Não! Já disse... Vai para o teu quarto!... Quero ficar sozinha!... Vai brincar com teu trenzinho... com teus carrinhos...
Daniel: Eu cansei de brincar lá... sozinho! A gente pode montar um jogo... Ou eu pego os meus brinquedos e venho para cá...
Melissa: Tá bom... Quer ficar aqui, eu deixo... Mas eu não quero brincar...
Daniel: Por que? Melissa você está tão tristinha! Deixa eu te animar! Enquanto eu brinco com os carrinhos você brinca com as tuas bonecas... Se quiser eu posso até brincar de casinha...
Melissa: Eu não quero! Nunca mais vou brincar de boneca!
Daniel: Mas você sempre amou as suas bonecas... elas são as suas filhinhas..
Melissa(pegando sem vontade as várias bonecas sobre a penteadeira): E como você acha que eu devo fazer com elas?
Daniel: O que você sempre faz... cuida... veste... dá comida...faz dormir... como se fosse a mãe...
Melissa: Eu vou colocar no lixo...
Daniel (olhando assustado): Não faz isso! Você gosta delas!
Melissa (chorando apertando as bonecas contra o peito) Não! Eu não gosto! Eu odeio elas!
Laura (entrando seguida pelo marido e Gertrudes): Meus amores... tudo bem? O que está acontecendo aqui?

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.