Naquela manhã de verão, a chuva que cai torrencialmente, embalada pela brisa leve, respinga suas gotículas pela vidraça da janela do quarto onde Edgar e Laura arrumam-se para descer para a sala de refeições, depois de uma noite atribulada em que a muito custo dormiram...

Laura: Como você está?

Edgar (arrumando a gravata): Na medida do possível.. estou pronto para encarar mais esse dia... vamos ver o que nos aguarda...

Laura: Bem...no momento o que me aguarda é o Daniel..e a Melissa.... estás ouvindo?

Edgar: Sim... que algazarra é essa? Geralmente a essa hora ainda estão dormindo...

Laura: Vamos até lá...

Ao entrarem no quarto onde os filhos passaram a noite, Edgar e Laura deparam-se com uma cena em que não sabem se riem ou ralham com as crianças... pelos ares daquela habitação ecoam as risadas dos pequenos, que pulam sobre os colchões de mola das camas... e penas e mais penas voam e caem placidamente no chão, dando o cenário da travessura que estavam a fazer...

Laura: Crianças! O que fizeram aqui?

Melissa: Nada tia Laura! A gente só estava brincando!

Edgar: Parece que passou um ciclone por este quarto... Melissa... filha... sabe que não pode fazer isso... (tentando demonstrar estar zangado)

Daniel: Desculpa papai... a culpa foi minha... eu que comecei...

Laura: Filho... a gente nunca deve brincar assim... vocês podiam ter se machucado... imagina se um dos dois cai da cama...

Edgar: Ou derruba o outro... não quero nem pensar no que podia acontecer aqui...

Melissa (quase chorando): Desculpa papai...

Daniel (encabulado) A gente não faz mais...

Edgar: Está bem... vou chamar a Matilde para limpar essa bagunça...

Laura: E eu vou ajudar vocês dois a se trocarem...(pegando uma muda de roupa para cada um) venham... vou arrumar vocês no outro quarto....

Edgar desce e conta a Matilde o que sucedera no quarto das crianças... a empregada rapidamente se dirige ao aposento... enquanto isto, Laura ajuda Melissa com o vestido... ambas conversam animadamente...enquanto Daniel tenta amarrar o cadarço de seu sapato sem sucesso... O pai, que a esta altura já voltara, observa sua pequena família da porta... depois de uma noite cheia de tantas revelações dolorosas, ver Laura, Daniel e Melissa assim, juntos, em sua casa, o confortava mais do que mil palavras...

Edgar(entrando): Deixa que eu te ajudo Daniel...

Laura: Bem... mocinha...está pronta... e eu já vou indo... senão vou me atrasar...

Ao se levantar, Laura sente sua cabeça rodar.... não fala nada para não assustar as crianças... respira profundamente, buscando recuperar-se daquela indisposição e logo em seguida tenta falar com naturalidade...

Laura: Edgar...a Gertrudes me pediu para ver o Daniel...

Edgar: Eu levo ele mais tarde... (reparando que Laura está pálida) Você está bem?

Laura: Sim... agora deixa eu ir...

Edgar: Espera um instante.. eu te levo..

Laura: Não precisa... a chuva estiou.... mas vou pelo menos tomar um suco antes...até à noite..

Edgar: Está bem...Até...

Após saírem do quarto, Edgar e as crianças descem e resolvem tomar café... Laura acabara de sair, pensativa, para seu trabalho... no caminho acaba por constatar o óbvio... sorri andando pelas ruas molhadas, refletindo sobre a novidade tão inesperada.... Enquanto isso, na casa da qual saíra, algum tempo se passa após o desjejum... Edgar vai até o escritório e solicita alguns documentos a D. Heloisa... quando volta vê as crianças na sala... Daniel está concentrado em um quebra-cabeça... enquanto Melissa procura algo para brincar... é o momento perfeito para conversar com a menina...

Edgar (chamando a menina até a outra sala): Melissa... e então... está gostando de passar esses dias na casa do papai?

Melissa: Sim! Está sendo supimpa! Tudo aqui é tão bom...

Edgar: Que bom minha filha! Sabe... eu tenho uma coisa para te contar...

Melissa: O que?

Edgar: Meu anjo... o papai pensou bastante... falou com sua mãe... e decidiu que a partir de agora você vai morar aqui...

Melissa: Verdade, papai (pulando no pescoço de Edgar)? Eu vou adorar ficar aqui!

Daniel (levantando a cabeça): E eu papai? Não vou morar aqui?

Edgar: Daniel... é tudo o que eu mais quero... que você... sua mãe... e a Melissa morem aqui comigo... mas sobre você e a mamãe virem para cá quem decide é ela... não eu...

Daniel: Ah... mas eu queria tanto...

Edgar: Oh meu filho... eu também...mas...por enquanto... você não mora aqui, mas pode vir e ficar o tempo que quiser!

Melissa: Papai... e a minha mamãe?

Edgar: Você vai poder vê-la... visita-la.. quando você quiser ve-la eu converso com ela e te levo lá.... tudo bem?

Melissa: Claro...

Edgar: Bem... então agora fique brincando com o Daniel que eu tenho que trabalhar... qualquer coisa me chamem..

Enquanto Edgar ruma para o escritório e começa a resolver seus assuntos profissionais, na Rua do Ouvidor, Joaquim sai do escritório e anda alguns quarteirões... enquanto caminha, repassa mentalmente tudo o que pretende falar a sua ex-noiva... entra no hotel... procura por Filipa pelo saguão... como não a vê vai até a recepção

Joaquim: Bom dia

Recepcionista: Bom dia... posso ajuda-lo?

Joaquim: Acredito que sim... gostaria de falar com uma hospede deste hotel... acredito que esteja me esperando... seu nome é Filipa Borges...

Recepcionista: O senhor deve ser o Dr. Castro... a Dra. Filipa está o esperando na sala de leitura.... entre à esquerda, no final do corredor...

Joaquim: Obrigado...

Joaquim segue pelo corredor indicado pela recepcionista... no final do corredor entra em uma sala ampla e bem iluminada, com uma grande estante cheia de livros ...algumas poltronas, sofás e mesinhas dispostos para leitura compõem o ambiente... no fundo da sala, observando pela janela a chuva fina que voltara a cair, Filipa está perdida em pensamentos...

Joaquim: Filipa?

Filipa: Olá Joaquim... assustou-me...

Joaquim: Desculpe... não foi minha intenção... te fiz esperar muito tempo?

Filipa: Não... há pouco cheguei aqui...

Joaquim: Que bom...

Filipa: Então...

Joaquim: Filipa.... Desde ontem quando te vi fiquei a pensar no que te dizer...mas agora... diante de você... simplesmente não consigo...

Filipa: Também estava pensando... olhando para chuva e pensando enquanto te esperava... esperei essa conversa por anos... te procurei...

Joaquim: Me procurou?

Filipa: Sim... após saber quem era Catarina Ribeiro... queria te pedir desculpas... mas você não estava mais... Joaquim... por que saiu de Portugal?

Joaquim: O que esperava que fizesse? Meus planos e sonhos foram todos desfeitos... em questão de minutos perdi tudo o que era caro para mim... minha vida tinha virado do avesso... Precisava recomeçar.....

Filipa: Mas precisava ser tão longe? Podias ter permanecido...

Joaquim: E a cada dia estar perto e longe de tudo que perdi... lembrando de tudo o que passei... lembrando de você... eu não iria suportar... eu aqui me pegava a pensar em tudo o que podia ter sido e não foi... imagina como seria se estivesse lá...teria enlouquecido..

Filipa: Por causa daquela maldita carta... não sabes quanto sofri...

Joaquim: A culpa não foi da carta... foi da falta de confiança... Filipa... você terminou comigo.. você preferiu acreditar no que aquela mulher escreveu do que na minha palavra...

Filipa: Joaquim... tenta entender-me... eu não conhecia o caráter e a vida que a Catarina levava... só sabia que ela afirmava ter uma filha tua... para mim você tinha engravidado uma pobre moça que naquele momento estava precisando de ajuda... e no meu entender você tinha que se retratar com ela...

Joaquim: E resolveu acabar com o noivado.. com a sociedade.. me pediu para te esquecer... não te procurar mais... assumir minha suposta filha... Filipa... eu não iria assumir uma criança que tinha dúvidas de que era minha... e que agora ficou comprovado que realmente não é...

Filipa: Eu sei... achei que eras um salafrário... um covarde fugindo das consequências dos seus atos...aí... quando eu soube quem era Catarina... sua reputação.. sua conduta... te procurei.... queria... precisava pedir-te perdão...mas já era tarde...

Joaquim: Filipa... eu tentei fazer tudo o que me pediu... não te procurar mais... te deixar em paz... mas te esquecer... eu não consegui... durante estes anos todos...sempre pensei em você... lembrava de ti... sentia tua ausência... (chegando mais perto da moça, que tenta se esquivar, mas é impedida pela proximidade que está da parede da sala)... eu ainda amo você..

Joaquim, num impulso, segura o pulso de Filipa e, imprimindo certa força, puxa-a para si beijando-lhe os lábios, envolvendo-lhe a cintura, enquanto solta o punho e acaba por fixar sua mão na nuca da moça... Filipa tenta inutilmente resistir, mas por fim cede... beija Joaquim com a mesma intensidade e urgência.. demonstrando a saudade e o desejo guardado por aqueles longos anos...

Joaquim: Filipa... desculpa... não devia ter feito isso...

Filipa: Não compreendo...

Joaquim: Filipa... preciso te confessar algo que fiz... e que pode nos afastar de vez...

Filipa: Estou ficando com medo do que vai me contar...

Joaquim: Eu disse que iria te contar tudo... e vou faze-lo... mesmo que isso me custe nunca mais te ver...

Filipa: É sobre aquela conversa que ouvi ontem?

Joaquim: Sim... Filipa... logo que cheguei ao Brasil, fui trabalhar no escritório no qual estou até hoje... por acaso ele pertence a um grande amigo do pai da D. Laura... Esse senhor procurou nossos serviços para realizar os tramites do divórcio da filha... e eu fui designado para o caso... No momento em que fui conversar com a senhora que queria se divorciar, percebi se tratar da esposa do Edgar... lembrei do retrato... mas... apesar disso...não podia declinar... afinal estava começando naquele emprego... vi todo o sofrimento dele... e mesmo assim aceitei ser advogado da Sra. Vieira...

Filipa: E você e o Edgar se desentenderam por isso?

Joaquim: Não... o Edgar entendeu perfeitamente essa situação... o que ocorreu foi que me vi apaixonado por Laura...

Filipa: O que?

Joaquim: Escute... e depois me recrimine o quanto for... pois sei que mereço...Laura se mostrou uma mulher tão forte... decidida... independente.. que não aceitava tudo o que lhe era imposto... na verdade.. acho que me apaixonei por ela por me lembrar você... Pois bem... ela estava se divorciando....e eu tinha acabado de terminar um relacionamento... pensei que podíamos construir uma história... sabia que ela não me amava... mas pensei que com o tempo poderia vir a pelo menos gostar de mim...

Filipa: E o Edgar?

Joaquim: Quando soube me ameaçou... ficou furioso... nossa amizade de anos se desfez em segundos...

Filipa: E... você e Laura...

Joaquim: Não tínhamos nada além de um relacionamento profissional... por mais que tentasse, minhas investidas eram infrutíferas... ela jamais me deu esperanças... sempre me deixou claro que era apaixonada pelo Edgar e que só havia se divorciado por conta da situação... ela viveu esses anos todos sozinha.. cuidando do filho...

Filipa: Eles têm um filho?

Joaquim: O Edgar não contou? Quando eles se divorciaram ela estava grávida... mas ele não sabia... ela tinha medo que ele não aceitasse o divórcio ou pedisse a guarda... eu até propus a ela que me deixasse registrar o menino em meu nome... mas ela foi categórica em negar meu pedido...

Filipa: Meu Deus... que coisa descabida... você se ofereceu para ser pai do filho de outro aqui e não quis assumir uma menina que supostamente era sua em Portugal... se Laura tivesse aceito essa sua proposta absurda... Não sei o que Edgar faria quando soubesse...

Joaquim: Para ver a que ponto eu cheguei...

Filipa: Isso é imperdoável! Traíste teu melhor amigo! Foste muito desleal... ainda mais sabendo o que o Edgar estava sofrendo com tudo isto... ao invés de oferecer-lhe conforto e consolo... tentaste conquistar a esposa dele.... que espécie de sujeito és tu? Não te reconheço, Joaquim!

Joaquim: O pior ainda não te contei...

Filipa: Tem algo pior?

Joaquim: Como disse... Laura sempre resistiu as minhas investidas... logo que voltou a morar na capital, começou a trabalhar no Arquivo Nacional e eu a reencontrei.. e com minhas ideias tortas... acabei pensando ser uma boa oportunidade de me aproximar dela... uma tarde a esperei sair do trabalho... e diante de sua negativa... acabei por...

Filipa: Você não foi capaz do que estou pensando, foi?

Joaquim: Eu não sei o que me deu... estava disposto a tudo... não tinha nada a perder... tentei força-la a ir-se dali comigo... aí o Edgar apareceu.. lutamos.... e ele me deixou quase sem sentidos estendido no chão...

Filipa: O que foi muito merecido! Deveriam ter te denunciado... isso sim! Como teve coragem? E como tem o desplante de aparecer na casa deles... falar com eles... oferecer ajuda?

Joaquim: Filipa... eu não sei onde estava com a cabeça... jamais quis fazer mal a quem quer que seja... acredite... foi um impulso... no dia seguinte fui a casa dele para pedir-lhe perdão... aí entendi que estavam juntos ao encontra-la na residência... e foi então que resolvi contar a ele sobre meu envolvimento com Catarina... o que resultou na tua vinda para cá...

Filipa (tentando segurar a raiva que se apodera de seu corpo) Joaquim...já ouvi o suficiente por hoje... se antes pensava que eras covarde e salafrário... agora penso que também é um cafajeste que agride mulheres... agora entendo as palavras do Edgar.... e o quanto deve ter sido constrangedor a tua presença naquela casa ontem... e digo mais... não sei o que sentes pelo Edgar.... mas deve ser uma mistura de ódio.... raiva... pois além de envolver-te com Catarina na mesma época que ele... ainda tentaste um relacionamento com a Laura... e para culminar a agrediu.. sinceramente... isso me dá asco... (fazendo menção de sair dali)

Joaquim: Filipa... me escuta.. (tentando segurar seu braço) O Edgar... para mim continua sendo meu grande amigo... o respeito e admiração que tenho por ele continuam os mesmos... quanto a Catarina... só soube que ele estava tendo um romance com ela no dia que me contou do término... e eu já não estava mais com ela... e senão contei antes do meu envolvimento com essa infeliz, foi por ele ter assumido a menina ter resolvido em parte um de meus problemas... e quanto a Laura... já disse.. pensei estar apaixonado... mas juro que me sentia mal por essa situação... mas simplesmente não pude evitar...

Filipa: Não tente justificar o injustificável... Você diz ter respeito.... mas aqui o que menos vejo é isto para com nosso colega... Não sei como Laura e Edgar aceitaram sua ajuda... e com isto quero deixar bem claro algo... não me dirija mais a palavra... não quero ouvir mais nada sobre isto... vou trabalhar contigo neste caso... mas quero distância de vossa pessoa... não sei como um dia fui tão cega a ponto de acreditar que poderia ser feliz contigo... com licença Dr. Rezende de Castro... (saindo dali tentando conter o choro)

Joaquim (gritando): Filipa.... me deixa provar que não sou esse mal-caráter que pensa... (escorregando as costas pela parede e sentando-se prostrado no chão)

Filipa sobe as escadas depressa... a única coisa que quer é esconder-se no refúgio que o quarto lhe oferece... mal lembra-se que Manoela está lá... entra no aposento e joga-se na cama... suas lágrimas até então contidas molham a fronha de linho branco do travesseiro... Assustada diante do desespero de sua amiga, Manoela tenta descobrir o que se passara...

Manoela: Filipa... por Deus.. o que houve?

Filipa: Manoela... agora não... me deixe só...

Manoela: Tudo bem... se precisa ficar só... me retiro.. mas saiba que podes contar comigo sempre...

Filipa (parando um pouco): Eu sei... obrigada... e fique... desculpe lhe pedir para sair... esse quarto é seu também... (voltando a chorar)

Manoela: Oh minha amiga... chore... não sei qual o motivo... mas o choro sempre traz um pouco de alivio... você está muito nervosa... precisa se acalmar...

Depois de algum tempo chorando, Filipa parece estar um tanto calma, mas não menos decepcionada.. desiludida..... seus pensamentos ainda são muito confusos... as coisas que Joaquim lhe dissera ecoam em sua cabeça, que parece que vai explodir...

Manoela: Sente-se melhor?

Filipa: Não... estou com uma dor de cabeça gigantesca... mas tenho algumas aspirinas aqui... logo isto deve ceder...

Manoela: Filipa... se não te sentes bem... descanse... podemos ir Laura e eu até o teatro...

Filipa: Até o horário que combinamos pretendo estar bem... quero participar de todas as ações que forem feitas...hoje ouvi coisas que me magoaram profundamente... sinceramente não sei como vou conseguir continuar essa investigação... ainda mais tendo o Dr. Castro participando disto... mas nós duas viemos ao Brasil com a intenção de ajudar o Edgar a desmascarar Catarina Ribeiro...e pretendo levar este caso até o final...