Lances da vida

Seguindo a rotina


SOLUÇO

– Soluço, o senhor vem com a gente. Grita Logan do meio do refeitório.

Meus planos eram sentar com minha irmã, que por sinal hoje resolveu usar um batom preto que combina bem com seu jeans preto desbotado.

Como a mamãe não ligou para isso eu não sei. Mas eu me estremeci. Quem inventou essa cor de batom tem sérios problemas.

Ela não muda a postura e sem olhar para cima diz. – Vai lá se sentar com o Logan e os outros, eu não me importo.

– Luane, vem comigo.

– Por acaso pareço que quero me sentar com eles?

É agora, não aguento mais. – Escuta aqui, você pensa que me intimida com essa merda na cara, mas não. Agora vai já tirar essa porcaria da boca e parar com essa coisa de morte já. Está me dando nos nervos isso.

Ao invés de me agradecer por ser honesto, ela sai correndo dali.

O que eu faço agora?

Logan continua me chamando.

Não é que eu não quero me sentar com meus velhos amigos, só que não estou afim de ser bombardeado com perguntas sobre a prisão. Esses caras não durariam um dia no DOC e achariam que estou mentindo se contasse o que realmente acontece lá.

Na verdade, ninguém está imune de ir parar lá. Tem de tudo, gente de toda religião. Meninos ricos que pensavam que estavam acima da lei e pobres que não conheciam outra coisa.

Acidentes acontecem no DOC e alguns são intencionais. As gangues são violentas, mesmo na prisão juvenil.

Walter Miller tem essas coisas de discurso para receber novos reclusos. Ele acha que isso facilita a mente dos garotos com as regras, mas só faz assustar ainda mais.

Seu primeiro discurso é algo do tipo: meu nome é Walter Miller, bem vindo a minha casa. Você levantará às cinco e quarenta e cinco, todas as manhãs e irá para o chuveiro. Terá cinco minutos para se lavar, não mais. Terá três refeições e terá aulas por oito horas. Nós nos daremos bem, contanto que siga essa regras. Se não fizer aí terá um problema comigo e pergunte a qualquer um que te dirá que você não vai quere ter problemas comigo. Problema comigo te dará vinte e três horas de cela. Alguma pergunta?

Vou até Logan e os outros para tentar distrai-los para não tocarem em assunto da prisão.

– E aí, cara? Cadê as garotas?

Melequento revira os olhos. – Estão treinando para animadoras. Eu gosto de muito de vê-las saltar, girar e tal. Mas o que tem de tão difícil que tem que treinar por semanas?

– Merida e Rapunzel viraram lideres de torcida e abandonaram o tênis?

– Foi por causa da Amanda, ela não leva jeito para o tênis e persuadiu as duas a virarem lideres de torcida da equipe de luta livre.

– Huh, animadoras de luta livre?

– Vai entrar para a equipe esse ano Soluço? Interrompe Flynn

– Não posso. Digo. – Tenho trabalho depois da escola. Deixo de fora que o trabalho é na verdade serviço comunitário e que se eu abandonar volto para a cadeia.

– Precisamos de você senão vamos nos dar mal que nem ano passado.

– Tá bom, se tiver alguma disputa que eu puder participar eu ajudo.

– Você acabou com o Dagur daquela vez. O cara era uma lenda. Lembra quando você chutou o traseiro dele, conseguindo os cinco pontos dez segundos antes de acabar o round final?

– Melequento, por favor? Diz Flynn. – Não desrespeite o Soluço, faltavam quatro minutos quando ele fez os pontos.

– Não importa, Flynn. Diz Melequento. – Esqueci que você sabe tudo.

Flynn cruza os braços e diz. – Isso aí, correto.

As meninas chegam no local e param em nossa frente.

– E ai meninas, como está indo os treinos. Flynn pergunta a Merida.

Merida toca seu ombro e diz. – Tão doce que você se importe.

Melequento tosse. – Por que não nos mostra como está indo.

– Aqui no refeitório?

–Por que não?

Kendra pisca secretamente para mim então elas se posicionam.

– Prontas? Kendra diz e todas concordam.

As garotas terminam sua apresentação com um salta e chuta.

Melequento fica de pé e aplaude.

– Vocês poderiam repetir o final, quando pulam para cima e para baixo e falam sobre montar.

– Cala a boca Melequento. Diz Kendra.

– Só estava incentivando vocês

– Por favor, você só estava olhando para uma coisa. Nossos peitos.

– Isso também. Eu sou um adolescente com hormônios em fúria. E aposto que o Soluço também estava, afinal ele não vê um a quase um ano.

Sabia que era questão de tempo o assunto prisão ser lançado na minha cara.

Ótimo, agora o refeitório inteiro quer ouvir a reposta do ex presidiário. Incluindo Kendra. Chega, não estou afim de lidar com essa merda agora.

Caminho para fora do refeitório .

Toda semana nós tínhamos aulas de como controlar a raiva e aprendíamos a liberar a raiva de outras formas não violentas. Como quebrar a cara do Melequento me mandaria direto para a merda de novo e isso não era uma opção, decidi ir para a sala de exercícios socar alguns sacos. Soco tanto que minhas mãos começam a sangrar.

– vai mais devagar Soluço. É a voz do treinador.

Eu paro de socar e enfio as mãos nos bolsos para ele não ver que estão sangrando.

– Você sabe que o que aconteceu ano passado me deixou chocado. Teria apostado meu braço direito que um garoto como você não iria deixar o local do acidente.

– Sorte sua que não apostou.

– Uh-uh. E acrescentou. – Vá a enfermaria e cuide das mãos.

ASTRID

Não levou nem uma semana para o Soluço voltar a sua vida de antes sem problema algum. Saí do refeitório aquela tarde, quando as meninas faziam animação para ele. Eu posso jurar que ele pensava que aquilo tudo era só para ele.

Como se não bastasse, ouvi Flynn falar na aula de ciências que Soluço está prestes a entrar na equipe de luta livre esse ano.

Perdi Luane, todos me acham uma aberração e não tenho a menor chance de voltar a praticar tênis ou qualquer outro esporte.

Eu fico me castigando me comparando ao Soluço enquanto pego o ônibus para meu primeiro dia de trabalho na casa da senhora Reymond. Só queria que fosse fácil para mim ou... menos fácil para ele. Estou amargurada, mas não dá para evitar. Eu passei por tanta dor e agonia ano passado.

Chego a casa da senhora Reymond, toco a campainha. Ninguém responde. Continuo tocando e começo a me preocupar. Ótimo, será que ela decidiu me demitir antes mesmo de eu começar?

Dou a volta até a parte de trás da casa. Ela está dormindo na cadeira com um copo de limonada nas mãos.

Me aproximo lentamente para retirar o copo antes que caia.

– O que acha que está fazendo?

Sua voz me assusta e dou um pulo para trás.

– Pensei que estava tirando um cochilo.

– Pareço que estava dormindo?

– Bem, agora não.

– Chega de conversa fiada. Temos muito trabalho a fazer.

– Você quer que eu encha o copo de limonada? Faça um lanche? Afofe seus travesseiros?

– Não. Sabe aqueles sacos ali? Senhora Reymond fala apontando para o quintal.

Cerca de dez grandes sacos estão alinhados. Todos etiquetados com nomes estranhos: Turbilhão de abricó, Chromacolor, Chamariz, Deriva, Amarelo trumpet, Gotas de limão, Nuvem rosada.

– Para que servem?

– Vamos plantá-las, são narcisos. Bem, não parecem narcisos. São apenas bulbos.

Plantar? Olho para dentro dos sacos. Pego um bulbo de dentro e a senhora diz atrás de mim. – Nem se dê ao trabalho de recolher. É preciso de um plano primeiro.

– Plano?

– Claro, você já plantou alguma vez?

– Apenas plantinhas na escola para o dia das mães.

– Nunca bulbos?

Balanço a cabeça.

– Deixa eu te falar uma coisa sobre narcisos. Eles são perfumados, bonitos e resistentes.

– Todos esses são narcisos?

– Sim, mas cada um tem seu perfume próprio.

Eu não entendo nada de flores, e nem de detalhes. Quando criança as minhas favoritas eram dente de leão, porque, quando pequenas, Luane e eu brincávamos de colher todos os dentes de leão dos gramados dos vizinhos cantando “Mama had a baby and her head popped off” , e sacudíamos as flores quando chegávamos à palavra saiu. Apesar de que, tecnicamente, dentes de leão não são flores, são ervas daninhas.

– Você vai precisar de uma pá, para começar. Ela me tira de meu devaneio. - Tem uma na garagem.

Abro a porta da garagem, e me deparo com um cadilac preto. O lugar é empoeirado e cheio de teias de aranhas. Isso indica que há aranhas aqui. Não sou fã delas.

Você consegue, vai lá.

Quando entro naquela escuridão, utilizo minha spider exploração. Quando criança, minha mãe dizia que eu tinha uma ótima visão para detectar principalmente criaturas de oito patas.

Acho o objeto que procurava e me movo o mais rápido possível para fora daquele local.

– Primeiramente temos que preparar o solo.

Vou ao canteiro e começo a cavucar a terra com a pá. Faço isso por alguns minutos. Até que é fácil.

A senhora Reymond se aproxima. –Espere.

Eu me viro e a senhora está segurando um longo manto verde e rosa todo florido.

– O que é isso?

– É minha mumu. Vai manter suas roupas limpas.

– Senhora, não posso usar isso.

A senhora Reymond agarra o mumu, um vestido grande e feio.

– É só que... não cabe em mim.

– Não seja boba, todo mundo cabe num mumu. É tamanho único.

Relutante visto o tal mumu. Pareço vestida com uma barraca.

–Perfeito. Ela diz.

– Então tá. Vamos trabalhar.

Pelos próximos quarenta minutos ela me explica tudo sobre como plantar. Tamanho do buraco, o espaço entre cada bulbo.

Já estou suando e temo que a senhora Reymond esteja só no começo. Mas se for preciso ficar plantando por semanas até que o clima frio chegue, desde que no final eu consiga o dinheiro para minha viagem, então que seja.

– O que é aquilo? Falo apontando para uma pilha de madeira no canto.

– O gazebo que nunca foi construído. Vai continuar tudo aí do mesmo jeito quando eu morrer.

– Por que não arranja alguém para construí-lo? Digo já imaginando ele construído com o teto pontudo.

– Melhor uma pausa. Vamos parar de falar de gazebos que nunca serão construídos.