Capítulo único

Havia alguma coisa em Afonso que incomodava Luciano.

Por mais anos que passavam, Afonso só mostrava a luz do seu rosto quando ele sorria, como se ele tivesse vindo do fundo de um sonho que tranquilizava Luciano nas noites quentes de verão. Fazia-lhe crer que Afonso não tinha um lado obscuro em si, ou cicatrizes no seu coração imortal.

Luciano não queria amar Afonso só pelo seu lado brilhante. Queria conhecer o outro lado, as ansiedades, as tristezas, a poeira dos sonhos perdidos e esquecidos, e as ruínas de amores impossíveis.

Precisava de conhecer o frio daquele lado para amar o calor da luz falsa que o sorriso de Afonso às vezes transmitia. Às vezes, perguntava-se se era de pedir demasiado tal coisa, ou se ele era merecedor de tal confiança para Afonso se abrir e se apoiar nele. Luciano também tinha o seu lado obscuro, mas o seu lado brilhante ofuscava-o. Rir para não chorar, como o povo diz e com razão.

Olhou para Afonso, que lia o jornal à mesa.

– Tens alguma coisa a dizer? – Afonso perguntou, sem tirar os olhos do jornal.
– Hã?
– Ora, podemos falar a mesma língua, mas se não me disseres o que estás a pensar, não saberei o que queres. – Ele finalmente olhou para Luciano. De novo, havia um sorriso no rosto de Afonso, um sorriso de quem queria cuidar do outro com toda a sua vontade. Estava preocupado com Luciano e disposto a ajudar.
– Oh, bem... Você está sempre sorrindo.
– Também tu.
– Sim, mas... Sinto que você esconde alguma coisa e queria conhecer você melhor.
– Ah, queres conhecer o meu lado lunar?
– Lado lunar?
– Sim, não é só as tuas palavras que têm sabor a canela.– Afonso informou e fechou o jornal. Apoiou-se à mesa, aproximando o seu rosto ao de Luciano. – Alegra-me saber que te preocupas comigo, mas às vezes é melhor guardar algumas coisas só para nós. Quem sabe, no futuro.

Luciano mordeu o lábio, frustrado.

Podiam falar a mesma língua, com pronúncias diferentes, mas não queria dizer que ambos dançavam ao mesmo ritmo. Acreditou, porém, nas palavras de Afonso, que um dia estariam a bailar ao som da mesma música. Talvez com sabor a canela.