Rin tinha seis anos de vida pequena e era a mais nova de oito irmãos igualmente miúdos.

A mãe de Rin fora morta a punhaladas pelo pai poucos minutos depois da hora do jantar. Ou teria sido a facadas? Rin não se lembrava direito.

Não sabia ao certo o quão confiáveis eram suas memórias quebradas, mas recordava claramente dos braços magros da mãe e de seus cabelos cor de trigo ao sol roçando-lhe o rosto. No pai pouco pensava. Talvez fosse uma espécie de vingança de seu subconsciente não dispensar tempo tentando reconstruir suas características, uma vendeta silenciosa por ele ter dado cabo na mãe.

O fato é que, para Rin, o pai era tão estranho quanto o açougueiro que fatiava porcos na rua atrás dos botecos. Sua única aparição na vida dela se resumia a ser a causa mortis de outro vivente.

Talvez toda a vizinhança estivesse já esperando semelhante desfecho que se desdobrou morbidamente na vida da quase família de Rin, uma vez que não houve alarde ou burburinho nem na noite fatal nem nos dias seguintes.

Morreu a mulher. Chamou-se a poliça. Encarcerou-se o marido. Mandaram-se os "mais ou menos órfãos" para a casinha da tia viúva e sem filhos. Findou-se o drama. Alguém ouviu falar na briga de bar que virou notícia na Praça Principal?

Da tia Rin decorou a fisionomia. Tão pobre quanto à irmã defunta, magra também, mas com cabelos cor de casca de árvore. Vivia dizendo que Rin se parecia com a mãe, mas Rin não sabia dizer se se parecer com uma mulher apunhalada poderia ser considerado um elogio ou não.

Rin tinha oito anos quando a tia começou a tentar explicar as razões que desembocaram na noite trágica. Disse que aquele tipo de coisa fazia parte do “terrível e maravilhoso viver”, que “Deus escrevia certo por linhas tortas”, que o pai era “um pecador que merecia pena e perdão”. Disse também que homens entregues aos vícios e à bebida faziam dessas coisas, que não cabia aos filhos ruminar sobre isso por muito mais tempo.

De volta para esse ponto central de assassinatos e tristezas enveredavam todas as conversas travadas entre Rin e a tia, que pouco falou com ela durante o tempo em que dividiram o mesmo teto esburacado. O que ocorre é que a tia não tinha condições ou vontade de cuidar de oito crias que não eram suas crias. Estabeleceu-se então um sistema eficiente em que ela tratava apenas dos dois mais velhos e estes haveriam de se responsabilizar pelos outros.

Apesar de ser a mais nova, Rin se considerava a menos frouxa e fraca. Aguentava mais tempo sem comer e suportava sem chorar os açoites que o mais velho menino impunha de castigo. Talvez por isso a mais velha menina gostasse mais de Rin do que dos outros mais novos.

De alguma maneira, a mais velha menina trazia para Rin a recordação da mãe finada. Não por aparência física, mas porque elas possuíam um carinho similar. Rin devolvia afeição com afeição, e a mais velha menina era a única na casa pela qual sentia algo que não fosse similar a raiva e repulsa.

Tanto isso é verdade que Rin obedecia pacificamente quando a mais velha menina cismava em banhá-la e ensiná-la a reza, a costura e o bordado. A mais velha menina penteava e decorava seu cabelo e punha-a em vestidos de poá feitos em casa com o tecido que de alguma forma trazia da rua. Professora caprichosa, a mais velha menina apenas não a ensinara o alfabeto, os números e o francês porque não os sabia. Mas não economizou esforços em tentar passar a Rin tudo que a mãe lhe havia transmitido.

O desfecho desse laço fraternal é que, quando a mais velha menina pereceu com o corpo deformado por causa da varíola, Rin não gastou mais um minuto dentro na casa da tia. Para que permanecer? A mais velha menina era a única criatura que impedia que fosse jogada de um lado para o outro como um quase humano.

Desta feita, Rin tinha dez anos quando ganhou o mundo – ou quando o mundo foi empurrado à força para ela. A partir daí, poucas notícias recebeu dos irmãos e da tia dos quais escapuliu. Disseram-lhe que a varíola enterrou a tia alguns meses depois e que todos os outros se acabaram pouco a pouco nos anos e nas décadas seguintes, cada um a seu modo. Ela ficou sendo a única sobrevivente daquela bagunça que os pais geraram.

Mas disso não se pode ter certeza. O povo gosta de inventar histórias.