Kiss Kiss

A verdade


Conviver com Kory em meu apartamento estava sendo mais fácil e tranquilo do que eu havia imaginado que seria. Ninguém atrapalhava o espaço de ninguém e cada um tinha suas tarefas. Mas arrumar a casa e lavar as louças havia se tornado uma tarefa realmente mais prazerosa. Era sempre engraçado e divertido.

Sempre cozinhávamos o almoço e o jantar juntos, conversando e falando do nosso dia. Sim, não ficávamos colados 24h por dia. Kory saía para ficar com suas amigas e eu havia conseguido alguns bicos como garçom em alguns restaurantes que estavam precisando de uma ajuda a mais. Era ótimo ter um extra no fim do mês, dava uma sensação de segurança.

Sempre que tínhamos um tempo, marcávamos de nos encontrar com os nossos amigos. Ir ao cinema, fazer um piquenique no parque. Coisas do tipo. Os amigos de Kory haviam virado meus amigos também, e isso era ótimo. Eles ajudavam a preencher um vazio: a falta que meus amigos – e família – de Gotham me faziam.

Em meu quarto, de noite enquanto Kory dormia, eu me sentava de frente ao meu mural feito na parede. Ali havia tudo sobre minha antiga vida: fotos com meus amigos, fotos com minha irmã e irmãos, bilhetes que já havia recebido, e notícias que tinham meu rosto estampado ao lado de meu pai. Imagens minhas em que aparecia bêbado.

Ugh! Como eu era um babaca de marca maior.

No final das contas, me mudar para Jump City foi a melhor coisa que poderia ter acontecido comigo. Eu aumentei minhas notas, aprendi a ter responsabilidade com finanças e arrumação; além de precisar trabalhar por conta dos gastos com bebidas. Aprendi que o mundo não gira ao meu redor, que eu era um babaca com as garotas, e que o bullying que eu tanto ignorava leva qualquer um ao fundo do poço.

Também aprendi a ser mais humilde, a entender o valor de uma amizade e de um trabalho duro. Aprendi que eu tenho que me responsabilizar por meus atos, por mais terríveis e repletos de consequências que sejam. Se meu pai tinha o objetivo de me transformar em um homem e me fazer deixar de ser um moleque, ele está de parabéns. Conseguiu isso.

Sorri com uma foto minha e de minha irmã no gramado da mansão Wayne. Estávamos em um momento familiar e pude ver meus irmãos se pegando lá atrás com meu pai olhando aquilo desesperado. Alfred via seus bolinhos serem lançados no ar.

Meu pai. Bruce Wayne, o bilionário que me tirou do fundo do poço e me deu tudo. Quantas vezes eu não o xinguei e fui um babaca com ele? Sem meu pai, eu não estaria aqui. Estaria num orfanato sem estrutura, envolvido com gente do pior tipo.

Eu me lembro dos meus amigos sempre me aconselhando a não ser tão insensível com todos ao meu redor. Lembro principalmente da minha melhor amiga me falando isso.

“Sinceramente? Você é um babaca, Dick. Você não liga para mais ninguém além de si mesmo. Só liga quando se torna algo do seu interesse. Se não fosse pelas pessoas que te erguem, você não seria nada do que é hoje.”

Sim, Rachel sabia ser bem má e sincera para te fazer refletir sobre suas atitudes. Era por isso que éramos tão próximos e eu sempre buscava me aconselhar com ela. E em, quase, todas às vezes eu levava bons sermões e tabefes na cara, falando de forma figurativa. Mas, acho que ela deveria ter realmente me dado socos na cara em algumas vezes.

Essa semana eu precisei dobrar o turno no restaurante, um dos garçons havia se acidentado e eu ganharia mais por estar no seu lugar. Kory foi extremamente doce e compreensível, pedindo para que eu tomasse cuidado e que a ligasse se fosse preciso. Os funcionários do estabelecimento eram muito gentis, então trabalhar ali era bom. O problema que eu tinha era a filha do dono, Carol.

— Então... – Ela dizia extremamente tímida e vermelha. – Eu queria saber se poderíamos sair juntos. – Tive pena dela.

— Carol, eu sinto muito. – Vi seu rosto se tornar confuso. – Eu respeito muito você e ao seu pai, que me deu a oportunidade. – Coloquei a bandeja no balcão de granito da agitada cozinha. – E eu tenho que ser sincero com você: eu estou namorando e gosto muito dela. Não seria nem um pouco justo enrolar vocês duas. Eu seria um mau caráter e perderia sua amizade. – Ela sorriu.

— Você é tão bonzinho, Richard. – Seus olhos brilhavam. – Obrigada por ser sincero comigo, a sua namorada tem muita sorte. – Sorri vermelho.

— Mas se quer um conselho – comecei a falar enquanto colocava os pratos, que uma das cozinhas trouxe na bandeja – o assistente do Chef Marco tem um interesse por você. E ele parece ser legal.

— O Daniel? O brasileiro bonitinho que todas as garotas são apaixonadas? – Ela estava surpresa com a notícia.

— Ele mesmo. – Arrumei a bandeje de prata em minhas mãos. – Porque não o chama pra sair?

— Ótima ideia! Farei isso hoje mesmo, obrigada Richard. – A menina saiu correndo alegre e eu pude voltar ao trabalho.

Naquela noite eu fui chamado pelo meu chefe. Sua filha havia contado a ele o que conversamos e ele veio me agradecer. Muitos garotos que trabalharam ali machucaram muito a Carol e eu fui apenas verdadeiro com ela. Disse a ele que isso não era mais do que a obrigação de qualquer homem – e pessoa. Depois de tomar banho no banheiro dos funcionários, recebi meu pagamento da semana e pude ir para casa.

Assim que cheguei ao meu apartamento, tudo o que eu queria era dar um beijo na Kory e dormir no colo dela depois do dia cheio. Assim que abri a porta, fui recebido por miados finos de um dos gatinhos.

— Ei lindinho. – Disse colocando as chaves e carteira na cômoda ao lado da porta e a fechando. – Cadê sua mãe?

Fiz carinho no gatinho e olhei ao redor procurando a minha namorada, mas tudo o que eu vi foi à porta do meu quarto entreaberto. Meu corpo gelou e rapidamente corri até lá, rezando para que Kory não estivesse dentro. Eu iria contar na hora certa.

— Kory! – Chamei assim que empurrei a porta e dei de cara com minha namorada sentada na cadeira de computador, em frente ao meu mural. Seus olhos estavam inchados e vermelhos, e no seu colo estavam meus documentos originais.

— Tem algo para me contar? – Sua voz saiu rouca e do seu pé, um miado surgiu. Era o outro gatinho.

— Eu posso explicar isso, juro. – Entrei em desespero. Ela ia entender tudo errado!

— Mentiu para mim! – Ela disse furiosa se levantando.

Kory, eu-...

— Achei que não havia segredos entre nós dois! – Suas bochechas estavam vermelhas. – Então era sobre isso que a Toni estava falando? Sobre esses segredos? O que significa tudo isso? – Ela apontou para a parede. – Quem são essas pessoas? Quem é você? É Richard ou é Dick?

Kory-...

— ME FALA! – Ela desabou em lágrimas e caiu no chão de joelhos. – Achei que não tínhamos segredos desse tipo entre nós. – Me ajoelhei e a abracei.

Me deixa te explicar, por favor.— Murmurei.

— Por que você ‘tá aqui? Por que ‘tá se escondendo? – Ela chorava e sussurrava.

Ajudei a ruiva a se levantar e a levei até a minha cama, sentando-a. Esperei ela chorar e por tudo para fora, eu sentia muito por ter mentido sobre isso durante muito tempo, mas foi uma promessa.

Posso falar?— Questionei baixinho quando ela parou de chorar.

Uhum.— Ela se endireitou e me olhou nos olhos.

— É uma história longa e complicada – suspirei e a olhei – e é sobre um babaca, no caso eu. – Ela levantou a sobrancelha. – Vamos lá... Tudo começou quando meus pais morreram em um acidente quando eu era bem pequeno, daí um bilionário chamado Bruce Wayne decidiu me adotar. Não pergunta o porquê, só sei que ele também perdeu os pais cedo e se comoveu com a minha história.

“Eu não fui o único a ser adotado por ele, no final da conta podemos dizer que ele tinha um orfanato ali com ele. Depois de me adotar, veio o Jason, Donna, Tim e o Damian, que é um filho de sangue mesmo. Eu cresci em meio ao luxo e a raiva do incêndio que matou minha família, então eu virei um babaca.“

“Eu era bem popular na minha antiga escola, fazia babaquices para aparecer e fechava os olhos para coisas sérias. Meu pai se cansou de me ver beber até cair, de bater o carro, de me meter em brigas e ter notas péssimas. Ele também estava cansado de ver... Uma garota diferente saindo do meu quarto aos fins de semana.” – Disse essa última frase, constrangido e minha namorada me olhou surpresa. – “Sim. Eu era um filho da puta sem noção alguma.”

— E aí?

— Meu pai decidiu que eu precisava tomar jeito. Tirou minhas roupas de marca, meu carro, minha mesada. Tirou tudo o que um mauricinho como eu tinha e achava essencial. – Parei para me lembrar de mais detalhes. – Ele me jogou aqui, com roupas comuns e com uma mesada pequena. Tive muitos problemas com finanças no inicio, então tive que aprender a trabalhar e engolir muita ofensa.

“Com o tempo, tudo o que eu queria era voltar para casa. Mas, se eu voltasse não teria onde morar ou dinheiro para viver. Ou era aqui, ou a rua. Senti muita falta dos meus amigos e da minha família durante esses anos, vi que o dinheiro e o luxo não valem tanto assim. Senti na pele o que era o bullying que eu tanto ignorava e fazia.”

“Durante tempos, fiz de tudo para receber sua ligação me mandando voltar. Melhorei minhas notas, trabalhei, me organizei. No final, acabei me acostumando com essa vida: confortável e simples. Não quero mais apenas ir embora de Jump City, eu tenho você e nossos amigos.”

— Você iria embora se ele te ligasse hoje? – Ela questionou tristonha.

Não deixaria você por nada.— Beijei o topo de sua cabeça com carinho.

Desculpa por surtar.— Ela murmurou.

Desculpa por te esconder isso por tanto tempo.— A abracei e ficamos em silêncio durante algum tempo.

Você era um babaca.— Ela quebrou o silêncio com uma voz sapeca e nós rimos.

— Hoje eu sei que sim.

Naquela noite o meu segredo já não era tão secreto mais. Era um alívio contar a verdade para a minha garota e saber que ela não me odiava por isso era melhor ainda. Eu mostrei fotos minhas com meus amigos e familiares e os fui apresentando.

Meus irmãos e irmã. Meu pai e Alfred, nossa babá. Meus melhores amigos e os lugares que apareciam nas fotos. Kory havia ficado encantada e, não foi como Argenta disse, ela não estava “de olho no meu dinheiro”. Pelo contrário, ela estava interessada no amor e união da nossa família estranha.

— Prometo te levar para conhecer eles, um dia. – Ela sorriu e nós nos abraçamos. Beijei sua testa e acabamos dormindo no meu quarto, abraçados e agarradinhos como um casal.

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