Kiku to Higanbana

Kokkuri-san, Kokkuri-san...


Sua pele estava fria.

Pontos amarelados a perseguiam na escuridão. Eles pareciam quentes, ela não gostava disso.

Medo a dominava, mas seus lábios estavam contorcidos em um sorriso não a permitiam demonstrar isso.

“Lá está ela!”, ela ouviu.

“Não, não, saiam de perto de mim!”, ela pensou.

Como uma sombra ela passou pelo homem, cortando-lhe o ombro. E ela riu, saboreou-se com o pouco de sangue quente que ficou em sua mão.

Mas ela não podia parar, não. Mais homens com tochas chegavam, caçadores...

Pulando de sombra em sombra ela adentrava a floresta de bambus até que nem mesmo o luar deixasse transparecer. Ela se sentiu bem.

Adultos armados a cercaram. Todos com uma expressão mista de medo, agressividade e nojo de si mesmos enquanto apontavam lanças e espadas para uma garotinha acuada.

A garotinha riu e escuridão tomou conta do local. Gritos de medo e dor se fizeram ouvir em seguida tanto de homens como de mulheres. Ela riu até que fora derrubada por algo duro batendo em sua cabeça.

“Princesinha, por favor pare com isso...”, disse ele.

Um homem enorme e ameaçador olhava para ela com uma expressão triste. A lança em suas mãos parecia não pesar mais que sua consciência. Seu primeiro instinto foi fugir. Ela correu, correu, correu sem pensar e parou...

Alguém a parou.

Era quente, era agoniante, mas parte dela queria ficar ali.

“Está tudo bem, minha princesa.”, soou uma voz feminina, “Vamos pra casa com a mamãe?”

Ela conhecia essa voz. Ouvir tais gentilezas não era comum, mas ela conhecia bem essas palavras.

Não, era agoniante, era doloroso, ela não podia permanecer ali. A pequena judiava enquanto a mulher lhe envolvia com seus braços.

“Shh, tudo bem, tudo bem...”

Havia uma luta ali, entre ficar ou fugir. A decisão parecia partir a cabeça da menor ao meio só de pensar...

Ela se lembra de ter gritado e em seguida suas mãos estavam quentes... Parte dela gostava desse calor e parte se sentia enojada. Era sangue fresco.

Ela sorriu e olhou para a que lhe segurava. O sorriso parecia doloroso, mas esperançoso.

“Que ótimo, agora ela vai me soltar! Não, por que eu quero me soltar?”

A maior olhou-lhe de volta, demonstrando um sorriso em cujas bordas escorria sangue. Seus olhos eram gentis, talvez fosse o olhar mais gentil que já vira em sua vida. Ela abraçou a menor com mais força.

“Mamãe tá aqui com você...”

O abraço ficou mais frio a cada momento. O sangue escorria da barriga da mulher e sujava o kimono de ambas. A menor não estava mais gostando daquela sensação.

“Mamãe sempre vai estar aqui por você...”

A pele da garota recuperou seu calor enquanto a da mulher o perdia.

De repente a noite parecia fria.

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Ene acordou com uma lágrima escorrendo pela lateral de seu rosto. Ela observou o quarto, mas não se apegou a detalhes. Era um pouco apertado, com não mais que uma cama, uma escrivaninha e um armário sobre o chão de madeira.

Seu sonho ainda a atormentava.

Ela se encolheu, abraçou os próprios joelhos e gemeu baixinho.

“Mamãe...”, pensou enquanto lágrimas brotavam.

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Ikari acordou preguiçosamente e com a mais legítima cara de sono. Seu cabelo estava mais bagunçado que o normal e baba escorria pelo canto de sua boca. Ele olhou para a janela o sol já estava alto. Não ligou muito pra isso e caminhou como um zumbi para o banheiro.

O moreno só veio a despertar completamente quando lavou seu rosto. Ele se olhou fixamente no espelho e flashes do festival passavam por sua mente. Seus olhos verdes pareciam profundos.

“Aquilo tudo... Realmente aconteceu...”, pensou enquanto olhava para a palma de sua mão, fechando-a vagarosamente.

“Que tal um pouco de tempo para por os pensamentos em ordem?”, ele se lembrara das palavras daquele homem com feições semelhantes às de uma raposa. “Isso quer dizer que ele vai voltar pra falar comigo, né?”

— Ikari, é você? – ele ouviu a voz de Lin do lado de fora.

— Sim, acabei de acordar! – respondeu entre um bocejo – São que horas?

— Já é quase meio dia...

“Nossa, eu dormi bastante...”, se apercebeu sem se impressionar.

— Você já tá dormindo há uns três dias, pensei que não fosse mais acordar! – disse ela em um tom quase preocupado.

— Três dias?! – ele se espantou saindo do banheiro.

— Três dias! – disse Lin em um tom mais calmo dando-lhe um golpe com a faca da mão de leve – Mas você parece muito bem. Kamui-san vai passar aqui mais tarde, ele quer falar com você...

Ela parecia triste enquanto dizia isso.

— Anego...

— Agora adianta logo, você não pode ficar aí dentro o dia todo! – reclamou ela, sem demonstrar o alívio que sentia.

— Tá, tá... – respondeu ele suspirando.

“Acho que vou correr um pouco, vai me ajudar a por a cabeça no lugar!”, pensou com energia até sentir o estômago roncar, “mas antes tenho de comer alguma coisa...”

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— E um, e dois.... – Dizia Ikari enquanto se alongava em frente ao dojô. Ele se vestia com um básico conjunto de corrida cinza e azul-escuro. – O clima parece ótimo hoje, mesmo que esteja um pouco tarde pra começar a correr...

Seus olhos se dirigiam cima enquanto inspirava profundamente. Ele se preparou para começar a correr quando sentiu algo lhe cutucando pela direita. Virou-se e não viu ninguém.

— Haha, essa é velha mas você caiu mesmo assim! – ouviu uma voz feminina à sua esquerda.

Ele observou Ene e sorriu com leveza.

— Haha, muito engraçada você...

Ene trajava um conjunto de corrida amarelo com listras negras. Em seu pescoço tinha um fone de ouvido branco com orelhas de gatinho. Ikari a observou e ela parecia bem, apesar de estar com alguns curativos no rosto. Ene percebeu que ele a encarava e sorriu.

— Ah, isso? – ela disse mostrando outro curativo no dorso da mão – Não se preocupe com isso, eu tô boazinha! Enfim, você vai correr? Eu vou te acompanhar!

— Ah, se você quiser... – Ikari se surpreendeu que alguém gostaria de acompanha-lo na corrida a esse horário, mas se surpreendeu mais com a garota em roupas tão casuais. Caíam bem nela.

— Que frio! – reclamou ela fazendo biquinho – E pensar que eu passei esses três dias só esperando você acordar!

Os olhos do garoto se arregalaram. Ela parecia estar pior que ele, mas mesmo assim não deixou de se preocupar com ele. Ikari não pôde deixar de se alegrar com o pensamento.

— Obrigado. – disse ele abrindo um sorriso e se curvando em seguida – Desculpe pelo trabalho!

— Tá desculpado! – Disse ela puxando-lhe a trança – Agora vamos indo!

— Sim senhora. – concluiu ele em risadas enquanto começava a correr – Veja se consegue acompanhar meu ritmo!

— Eu tô mais preocupada é com você conseguir me acompanhar! – Desafiou-o.

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Conforme percorria as ruas do quarteirão a mente de Ikari vagava. Ene pôs seus fones de ouvido no começo da corrida então ele nem se incomodou tanto em puxar assunto. Focou-se nos seus problemas que precisavam ser resolvidos.

Passado um tempo Ikari começou a se incomodar com o silêncio.

— Ei, Ene... – Ainda lhe era um pouco estranho chama-la pelo nome, mesmo que ela tenha pedido. O rapaz travou um pouco – Você disse... Digo, somos amigos de infância, né?

Ele só ouviu um resmungo atrás de si.

— Eu tava pensando... Como a gente se encontrou... – começou o rapaz pensativo enquanto olhava para as preguiçosas nuvens – Digo, eu realmente tenho poucas lembranças da infância...

Ikari estava envergonhado de dizer, mas fez todo o possível pra reunir coragem.

— Não, me desculpe, mas isso é algo que eu tenho de perguntar pra você. Como a gente se conheceu? – quando Ikari se virou, Ene não estava mais lá. – Hã?

Quando forçou um pouco sua visão ele observou, ao longe, os cabelos róseos junto a um corpo quase se arrastando no chão de tão ofegante.

“Ela ficou pra trás?!”, se espantou.

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— Aaah, o que foi isso! – reclamou ela, sentada em um banco, enquanto Ikari lhe entregava uma bebida – Eu pensei que meu pulmão fosse derreter... Quanto a gente correu?

— Er, foi mal... Uns quinze quilômetros... – se desculpou Ikari – Você até me desafiou então pensei que não tivesse problema correr no meu ritmo...

— O problema não foi a velocidade, foi a distância. Eu nunca corri tanto assim sem usar Reiki... – choramingou a rosada enquanto massageava a perna.

— Reiki... – pensou alto enquanto abria um suco – Você mencionou isso antes enquanto a gente lutava contra o Yuuki, o que é?

Ela parou um tempo pra respirar e disse enquanto olhava para o céu da tarde que avançava.

— É difícil explicar, tem um monte de coisas filosóficas que eu não entendo muito. Papai falou uma vez de um jeito fácil de entender. É a energia que há em nós e em tudo o que há vivo. Os onmyouji a usam para seus feitiços ou pra ficarem mais fortes. “É o poder que há em nossos corações!”, ele disse!

O olhar da garota parecia anormalmente sereno, até mesmo um pouco gélido, enquanto ela proferia essas palavras.

Como se sua mente voltasse ao presente, ela voltou ao seu eu animada no instante seguinte.

— Bem, de qualquer forma precisamos voltar, eu tô com fome! – exclamou ela. – Quanto falta?

Ikari sorriu e alongou um pouco.

— Uns cinco quilômetros, não vai demorar tanto assim.

— Tanto assim?! – ela se espantou, mas logo acendeu chamas em seu olhar – Certo, vamos, eu não vou perder!

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— Estamos em casa! – Exclamou o moreno entrando pela porta da frente do dojô, seguido por uma rosada quase se arrastando agarrada às paredes.

Lia-se em uma placa na entrada: “Punho do Crisântemo”.

— Estamos em casa... – concordou Ene.

Ambos entraram pelo espaçoso salão forrado com tatame e decorado com armas nas paredes. Uma ou outra figura de grandes generais ou animais chineses se dispunham nas paredes. Uma que demonstrava uma briga entre um dragão e um tigre chamaram mais a atenção de Ene. De um lado se observava uma fileira de bastões e lanças, enquanto no lado oposto espadas se encontravam apoiadas em um suporte de madeira. Uma gentil brisa agraciava os jovens suados após a corrida.

— Ikari, Ene? – Perguntou uma voz vinda do fundo – Estamos na cozinha!

— Certo! – respondeu Ikari e virou-se preocupado para a rosada logo em seguida – Você tá bem, Ene?

Ene não respondeu, apenas se deitou no tatame e mostrou uma mão com o polegar levantado. O cabelo dela estava totalmente desgrenhado e ela parecia derreter de tanto suor que lhe escorria pelo corpo.

— Er... Certo. Fique à vontade, qualquer coisa estou na cozinha...

Quando entrou se deparou com um rosto familiar, o homem com feições de raposa do outro dia. Já era esperado que ele viesse, mas Ikari não pôde deixar de exibir uma expressão levemente surpresa.

— Já ouvi falar muito de você, Ikari-dono, mas creio que esta é a primeira vez que nos encontramos apropriadamente, não? – começou o homem entre um gole e outro de chá – Atendo pelo nome de Geshiki Kamui, agradeceria que se referisse a mim por Kamui, com os honoríficos os quais achar necessários.

“Que formal...”, pensou Ikari enquanto sentia uma gota de suor escorrendo. Ele olhou para Lin e ela parecia incomodada com algo.

— Eu sou O... Digo, Oga Ikari... – Disse o rapaz um pouco nervoso – É um prazer... Desculpe, eu tô meio suado...

Kamui vestia-se com um terno preto e uma camisa social branca por debaixo. Acima das pernas cruzadas a katana com cabeça de raposa se encontrava guardada em uma ornamentada bainha azul-escura.

“Aaah, toda essa formalidade tá me travando...", pensou consigo mesmo enquanto enrubescia um pouco.

— Não se importe com isso! Sei que estamos em sua casa, mas se me der a liberdade... – disse o homem com feições de raposa enquanto apontava para uma cadeira vaga com a palma aberta – Sente-se.

— É, certo...

“Isso é estranho pra caramba, por quê eu tô tão desconfortável na minha casa?”, pensou com os olhos semicerrados enquanto se sentava.

Lin serviu um chá a Ikari e se escorou na parede, observando a situação. Ikari agradeceu e tomou um pouco do chá enquanto Kamui pacientemente o esperava enquanto arrumava seu cabelo negro levemente bagunçado com uma franja dividida igualmente para ambos os lados.

Seus finos olhos por trás dos óculos pareciam sorridentes, mas distantes ao mesmo tempo. Um leve sorriso matreiro se formava em seus lábios.

— Eu pedi que colocasse todos os seus pensamentos em ordem, mas talvez o mais correto seja eu dizer quem eu sou e explicar o que eu sou. Não creio que lhe seja certo pedir uma resposta para uma pergunta a qual não sabe exatamente do que se trata.

Ikari acenou com a cabeça.

— Está familiarizado com o termo Onmyouji, Ikari-dono? – perguntou Kamui enquanto tomava mais um pouco de chá.

— É, eu ouvi isso algumas vezes ultimamente... – comentou ele enquanto coçava a bochecha. Kamui sorriu.

— Tal como Ene-dono, eu sou um onmyouji, Ikari-dono. – ele começou a explicação enquanto esfregava suas mãos, produzindo uma calma chama azul. – Pode nos considerar místicos, feiticeiros, videntes... Na verdade somos aqueles que seguem o onmyoudô, essa seria a definição mais precisa.

Com um gentil movimento dos dedos as chamas dançaram em sua mão e formava o símbolo do Yin e do Yang.

— Podemos considerar o onmyoudo como uma cosmologia esotérica, uma mistura das ciências naturais com o ocultismo, com a energia que circunda pelo universo, tudo isso baseado nos ensinamentos do taoísmo, budismo e xintoísmo. – Continuou Kamui, afastando as palmas e as chamas se expandiram, desfazendo-se em cinzas azuladas. A sala não parecia nem um pouco mais quente. - Isso é o que os livros de história ensinam.

Ikari engoliu em seco.

— Kamui-san, por favor, poupe-nos de seu exibicionismo... – pediu Lin com um suspiro.

— Desculpe, desculpe! Eu só estava tentando relaxá-lo! – disse ele sorrindo. Seu olhos se abriram mais quando ele voltou para Ikari, tornando o ar um pouco mais pesado – Na prática podemos dizer que somos guerreiros, Ikari-sono. Uma guerra constante para proteger humanos e youkais dos Akuma.

— Akuma? – perguntou Ikari.

— São os Youkais malvados, que se perderam nas trevas! – disse Ene surgindo de súbito e se escorando no rapaz.

Ikari a observou e Ene parecia bem mais animada. Ela retirou seu casaco e revelou o top branco suado que usava por debaixo. Ikari não conseguiu não achar aquilo provocante e se esforçou para focar em Kamui.

— Essa explicação está meio correta, Ene-dono... – comentou Kamui com um sorriso amigável – Akuma é uma classificação que damos para youkais que atacam outros youkais e humanos e se alimentam de suas almas. De uma forma geral os Akuma tendem a perder sua racionalidade. Nós onmyouji lutamos contra eles para proteger ambos os habitantes de Taiyin e de Taiyang. – Ele percebeu Lin o observando, mas não se incomodou, apenas limpou a garganta concluiu – Eu gostaria de pedir que se tornasse um onmyouji também, Ikari-dono. Você possui muito talento para isso! Ao menos foi o que eu ouvi.

Ele dirigiu seu olhar para Ene, assim como Ikari.

— Você lutou muito bem lá, Ikari! Eu só contei o que vi para o Kamui-san! – disse ela com um largo sorriso.

— Calma, calma, calma. – pediu o moreno. – Eu nem consegui digerir direito o que aconteceu ainda e você tá me pedindo pra lutar com youkais...

— Com Akumas, na verdade. – corrigiu o mais velho – Mas tudo bem, não espero que responda nesse exato momento...

— Quero deixar claro que sou contra isso, Ikari-chan. – Afirmou Lin, que depois virou o rosto envergonhado quando o rapaz a observou – Eu tenho meus motivos...

— Anegô...

— De fato, ela os tem. E se bem me lembro, você tem perguntas, e creio eu ter prometido respostas, não?

Ikari permaneceu em silêncio por uns instantes.

— Ei, ele é um espírito de raposa – cochichou Ene no ouvido de Ikari – Quando for perguntar algo pra ele você tem que falar “Kokkuri-san, kokkuri-san” ou ele vai te assombrar!

— Pera, sério? – perguntou Ikari com uma expressão desconfiada.

— Não, ela está brincando contigo, Ikari-dono. – Disse Kamui com um olhar um sorriso um pouco intimidador – Ene-dono, esse é um momento importante, por favor se contenha em suas brincadeiras.

— D-desculpe... – se recolheu a garota, encolhendo-se com o tom do homem.

Ikari se recolheu em seus pensamentos. Com certeza esse homem saberia de muitas coisas que ele pudesse perguntar, e ele com certeza tinha muitas dúvidas. Uma delas surgiu em sua boca à frente de todas as outras.

— O senhor conhece alguém chamado Oga Takeshi?

Os olhos de Lin estavam visivelmente espantados.

— Ikari... – Ela tentou dizer mas foi detida pelo olhar do rapaz. Um olhar de saudade que ela não teve coragem de cortar.

— Sim, eu o conheço! – Kamui disse com simplicidade – Ele também é um onmyouji.

— Onde ele está? – soltou Ikari no ímpeto.

— Desculpe, isso eu não posso dizer. Pedido dele... – suspirou Kamui.

Ikari se sentiu extremamente irritado, mas logo se recolheu à sua cadeira. Lin abraçou os próprios braços e evitou olhar para a mesa.

— Bem, isso é a cara dele mesmo... – reclamou para si mesmo. Quando se recuperou retornou às perguntas – O senhor parece me conhecer bem, o quanto do meu passado o senhor sabe?

— Pouquíssimo. Eu era amigo de seu avô adotivo, Hong Ji, Ikari-dono. Tudo o que sei é que houve um grande incêndio, do qual você mal parece se lembrar. Depois disso você foi levado para a residência dos Kunie, não sei bem o porquê. Cerca de um mês depois ele decidiu adota-lo e o resto você deve se lembrar.

“Essas perguntas não tão me dando muitas direções...”.

— O que eram aqueles monstros de fogo? Eram Akumas? O que o Yuuki queria? Que lugar era aquele?

— Sinto muito, também não sei a resposta para essas perguntas...

Ikari se irritou.

— É, você não parece estar ajudand...

— Entretanto. – Kamui cortou-o friamente. – Isso é algo que eu também tenho interesse em descobrir. Algo mais em que eu possa ajudar?

— Não, nada... – Ikari parecia desapontado.

— Você parece ter aceitado minhas explicações, mesmo que poucas, com muita naturalidade. Essa história de onmyouji, magia, akumas. Isso me surpreendeu.

— Bem, depois de tudo o que vi... três dias atrás? – ele olhou para Lin, que acenou com a cabeça – Eu não tenho motivos para duvidar... Não, desde pequeno eu falo com youkais e sempre tive a impressão de que estivesse envolvido em algo estranho, acho que nunca tive motivo para duvidar pra começo de conversa...

Kamui riu.

— Você possui muito potencial, Ikari-dono. Eu realmente gostaria de tê-lo ao meu lado nessa luta. Se tiver interesse em se juntar a nós, me avise, por favor. Lin-dono sabe como me contatar. – Ele se levantou – Ene, não precisa me seguir, mas por favor não incomode-os demais. Com sua licença, tenho assuntos a resolver, Lin-dono, o chá estava uma delícia.

— Até mais, Kamui-dono. – ela lhe respondeu secamente. Ikari pensou que isso não combinava muito com a sua personalidade.

— Acho que eu já vou indo também! – exclamou Ene enquanto dava uma leve batida no ombro de Ikari – Te vejo depois, Ikari!

— Ah, certo, tchau... – se despediu meio sem jeito. – Espera! – E eles pararam. – Como você nos encontrou naquele dia quando precisamos de ajuda? Aquilo foi muito conveniente...

Kamui soltou um sorriso que parecia sincero.

— É um rapaz perspicaz, Ikari-dono, por um momento pensei que não fosse perguntar. Eu apenas “senti” algo diferente vindo da sua direção, também não sei explicar. Isso, junto da história que Ene-dono me contou, fez-me perceber algo de especial em você...

“Usar uma quantidade abundante de Reiki com seu corpo fechado já é assustador, mas além disso conjurar um armamento espiritual?”, pensou Kamui com um olhar matreiro “Isso eu nunca vi...”

Pouco depois ambos se despediram novamente e partiram. Quando Ikari voltou sua atenção para sua irmã ela tinha voltado a sorrir.

— Aquela é uma boa garota...

— Hã? – Ikari perguntou levemente corado.

— Depois de um dia e meio se recuperando ela acordou. – “E comeu o suficiente pra três dias”, pensou, mas preferiu não mencionar – Depois disso ela quase não saiu seu lado até você parecer melhorar.

Ikari observou a porta. “Kunie Ene...”, pensou e sorriu, “Realmente nos damos muito bem...”. Em seguida corou ao refletir sobre o que pensou. “O que diabos estou pensando?”.

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No meio da noite Ikari viu-se deitado no telhado, perdido em pensamentos.

— Mas que diabos, esse cara vem assim do nada e me pede pra lutar contra monstros ou algo do tipo... – enquanto ele estava distraído observava vez ou outra um pássaro estranho voando próximo a si ou alguns lagartos estranhos vagando pelas ruas.

“Apesar de poder vê-los eu nunca me interessei mais em saber sobre eles...”.

— Ei, tá tudo bem? – a gentil voz de Lin soou atrás de si enquanto ela se sentava próximo a ele.

— Tudo... – Ikari abriu um sorriso melancólico – Estou apenas pensando no que o Kamui-san me disse hoje, ele tem um jeito bem estranho...

— Ainda assim ele é uma pessoa muito respeitada no mundo dos espíritos. Ele é o vice-chefe de um grande clã...

— É mesmo? – questionou Ikari sem muito interesse enquanto pensava nesse “mundo dos espíritos”.

Lin parecia triste, mas passou a mão no cabelo de Ikari, como um cafuné.

— Sabe, eu tenho meus motivos para não gostar da proposta dele... É um mundo perigoso, Ikari-chan.

— Você sabe bastante sobre isso, Anegô?

— Um pouco... Você não os conheceu, mas papai e mamãe foram onmyouji... Vovô também era...

Ikari pensou em perguntar o que houve, mas deteve-se. Sabia como o avô Hong Ji havia morrido, mas não sabia nada sobre os pais de Lin.

— Será que o Aniki está bem? – perguntou Ikari e a mão de Lin que lhe fazia o cafuné parou.

— Sim, com certeza... – ela respondeu novamente com gentileza na voz. – Aquele cabeça-dura é forte...

Após uma longa pausa, Ikari declarou:

— Sabe de uma coisa, Anegô? Eu não gosto de lutar... – seu olhar sério observava as estrelas. Ela brilhavam belamente no subúrbio de Quioto.

— É, eu sei.

— Mas nesse caso, eu quero lutar.

Lin estremeceu um pouco. Seus cabelos cor de noite esvoaçavam.

— Você vai me impedir? – o moreno perguntou.

— Se eu pudesse, sim, mas você vai de qualquer jeito, né? É pelo Takeshi?

— Não, não é por ele... – havia um pequeno ressentimento em sua voz – Eu não sei o porquê dele ter desaparecido assim, e pretendo descobrir... Mas quero lutar por mim mesmo. Eu quero descobrir sobre meu passado e...

“Eu não sei porque me sinto assim, mas preciso ir atrás do Yuuki.” Um senso de dever queimava dentro dele.

— O velhote sempre dizia que o Punho do Crisântemo era um estilo marcial capaz de derrotar demônios, não é? – ele mencionou levantando seu punho para os céus. – Eu sempre pensei que ele se referia à calma da mente, lidar com seus demônios interiores e tudo o mais... Isso não deu muito certo pra mim, continuei tendo os pesadelos, então eu quero tentar em um sentido literal!

Lin sorriu e deu um peteleco em sua testa.

— Ai, pra que isso? – questionou o rapaz.

— Você sempre foi neurótico com isso... – suspirou ela – Bem, não tem jeito né, eu vou avisar ao Kamui-san. E você vai dormir já! Tá tarde e você tem aula depois de amanhã, precisa descansar bem até lá!

— Ai, ai, tá, precisava lembrar disso?

Ikari se retirou e Lin sorriu, ele parecia mais animado. Nesse momento ela sentiu um pequeno arrepio no nuca. Assim que Ikari retornou para o seu quarto ela desceu correndo para o dojô com o coração acelerado. Ela olhou de um lado para o outro e não observou nada no escuro.

Esperou um pouco até que se acalmasse e apoiou-se de costas para a parede ao lado de uma porta.

— Três anos depois e é assim que você volta? – ela disse como se lhe desse uma bronca.

— Eu mal cheguei e você já tá brigando comigo, Lin-chan? Você nunca foi assim com o Ikari... – soou uma voz masculina do outro lado.

— Isso é porque você vivia fazendo besteira, e se o Ikari fazia besteira a culpa também era sua...

— Que dura! – reclamou o outro.

— Falando nele, você sabia que ele sente muito a sua falta?

Silêncio.

— Três anos sem dar notícias, Takeshi! Três anos sem nem mandar uma carta! “Está tudo bem! Eu estou bem! Eu ainda existo!”.

— Ei, ele é meu irmãozinho, você fala como se eu odiasse ele...

— Pois é o que parece...

— Mas não é assim. Não há um dia que se passe sem que eu me lembre dele, e de você Lin...

Ela se virou na porta para dar-lhe um tapa no rosto mas o homem a abraçou.

Ele era mais alto e parecia ser um pouco mais novo que ela. A lateral de seu cabelo estava quase raspada, deixando a parte de cima curta e levemente espetada. De trás descia uma fina trança que lhe caía pelo ombro. Ele vestia-se semelhante com um intricado quimono verde-escuro, ilustrado com folhas e dragões nas bordas, junto de uma folgada calça negra.

Silêncio, quebrado pouco depois por Lin.

— Eu senti tanto a sua falta, seu idiota... – ela chorou baixinho no abraço.

— E eu senti a sua, sua reclamona... Você briga comigo que eu não venho vê-lo, mas sabe exatamente o motivo...

— O dragão...

— Eu o senti lá do norte. O dragão despertou nele, Lin... Ainda assim não tenho confiança de que posso vê-lo, nem ele ou eu estamos prontos, dragões são orgulhosos demais para dividir seu território...

— Eu sei... – ela concluiu.

— Foi mal, mas eu bisbilhotei. Ele vai virar um onmyouji? Isso é ótimo! – ele sorriu.

— Não é ótimo! É perigoso! – a garota levantou seu olhar choroso. – E seu cabelo... Está verde?!

— Ai, ai, vai ficar pegando no meu pé por isso também? O cabelo é meu, deixa eu pintar como eu quiser...

— Tá ridículo!

Takeshi parecia chocado.

— Não tá não! É estiloso!

— Como queira! – ela se virou irritada.

“Que tsundere...”, ele pensou.

— De qualquer forma, Ikari vai virar um onmyouji! Isso é ótimo! Mal posso esperar para vê-lo em ação!

— Assim ele vai poder te encontrar um dia. – disse ela com um leve sorriso e um suspiro.

— Assim EU vou poder encontra-lo um dia! – disse ele com um largo sorriso – Aquele pirralho! Imagino se ele leva jeito para a coisa...

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Deitado em sua cama, Ikari não conseguia dormir. O nervosismo de um novo período letivo, de sua entrada no ensino médio, enchiam sua cabeça de situações.

“Espero que não pensem em mim como um delinquente dessa vez, foi difícil esclarecer esse mal entendido da última vez...”, pensou enquanto passava a mão pela cicatriz.