Jazz

Capítulo Único


JAZZ

Dizem que o amor é algo que vivemos apenas uma vez na vida. Que, em uma fração de segundos, andando por uma rua qualquer, encontramos alguém que faz o mundo parar, os prédios congelarem e o coração aquecer. Alguns chamam isso de utopia. De idiotice destinada a sonhadores. Eu costumava ser uma dessas pessoas.

No ano de 1975, era apenas uma garota pretensiosa, recém-saída da casa dos pais, disposta a mudar o mundo com uma caneta nas mãos e um velho caderno de escritos. Caminhava pelas ruas da cidade imaginando o quanto iria me divertir. Onde seria a próxima festa? No clube local? Na casa de algum amigo? Minha vida era regada de farras, noites maldormidas e frenéticas tardes ao pôr do sol, com meu fiel caderno de anotações.

Quem sabe esse fora o motivo de não reconhecer o amor. Arrogante demais para acreditar que nem tudo poderia ser descrito com palavras. Tola o bastante para não reconhecer a ironia de meus próprios rascunhos, que, em sua maioria, se resumiam a poemas destinados a alguém fantasioso. A cada dia uma nova paixão, a cada semana um novo querer, mas sempre fiel às imperfeições de um sentimento que julgava conhece …Uma garota repleta de si, que acreditava ter as respostas necessárias para perguntas inexistentes.

A primeira vez que vi o amor? Ora. Via-o todos os dias, sem vê-lo. Nem mesmo sua personificação, que por mim passava diariamente, dando-me um sorriso despretensioso, fora o bastante. Enquanto recitava amor, ele parecia zombar de mim através de um breve “oi”. Nunca olhei duas vezes seguidas para aqueles olhos castanhos. Nunca notei a forma como ela sorria de volta.

Estava ocupada demais em viver uma vida que julgava ser a merecida, em colecionar vitórias como se elas pudessem me definir. Dia após dia, passava pela porta de sua casa e não a via na janela, na escada de entrada, colocando o lixo para fora. A garota da casa ao lado. Aquela que sempre me pareceu estranha por estar sempre séria. Por usar óculos e roupas escuras, por parecer tão fechada para o
mundo, enquanto eu queria devorá-lo.

Irônico, não?

Vivi por longos anos de minha vida ao lado de alguém que estava destinada a ser minha utopia. O meu farol no meio da tempestade. O cheiro mais acolhedor no meio de tantas flores. Por que vivi tanto tempo assim? Não era a garota ideal para aquela garota. Não estava pronta para o amor.

Essa é uma das lições por mim aprendida: deve-se estar pronto para amar.

Quando comecei a vê-lo? Não faço a menor ideia! A única coisa que me recordo é de uma noite chuvosa. Enquanto andava pela rua chutando as poças que encontrava pelo caminho, esbravejando por algo que hoje já me foge a memória, tive o primeiro deslumbre. Eu não estava pronta para ele, mas ele estava pronto para mim.

Em outro corpo encharcado. Caminhando no sentido contrário ao meu, o amor se apresentou. Foi a primeira vez que, de fato, a vi. Meus ossos tremiam não por ele, mas pelo tempo, pela chuva. Em uma noite como aquela, faltou-me saliva para umedecer os lábios. Ao contrário de mim, minha vizinha sorria. Lábios arqueados, dentes à mostra, bochechas aquecidas, embora o mundo desabasse em gotas.

O que faltava em mim, pareceu ganhar vida naquele corpo à minha frente. Ninguém é feliz molhado! Foi meu primeiro pensamento. Quem sorri por ter os pés encharcados e o cabelo bagunçado, preso ao rosto? Quem caminha despretensiosa, conforme o mundo urge em rompantes?

Naquela noite, paramos uma em frente a outra e sorrimos. Ela balançou a cabeça, afastando os fios colados a sua pele morena. Ajeitou os óculos quadrados e me sorriu. Eu, com as mãos no bolso da calça, não sabia o que dizer. Olhei para o céu e fechei um dos olhos, por causa das gotas da chuva que ainda caiam fervorosamente. Ela imitou o meu gesto e foi além, abriu os braços, mordeu os lábios. Deixou que a água da chuva entrasse em seus lábios, mesmo com os constantes avisos do perigo de se morar na cidade.

Ela saboreava a vida, gota a gota, sem pudor, sem temer pelo que viesse a lhe custar ou parecer. A garota sempre séria estava sorrindo, enquanto eu, a garota conhecida por todos como a mais descolada, permanecia irritada por ter perdido as chaves de casa. Nada dissemos uma a outra. Nos olhamos por longos minutos. Por mais que desfrutássemos do mesmo céu e estrelas, cada uma sentiu aquelas gotas de forma diferente.

Tentei captar em seus olhos os motivos de tal insanidade. Por trás daquela lente respingada, eles insistiam em brilhar. Desconheço o tempo que ela levou para admirar a noite repleta de nuvens. Sei apenas que, quando abaixou a cabeça e pareceu enfim recuperar os sentidos, sorriu-me.

Imaginei que haveríamos de dizer algo. Mais uma vez, o amor, jocoso de si, caminhou na direção contrária de minha razão. Da mesma forma que chegou, partiu. Bastou dois passos para o lado e eu já não mais a via a minha frente. O som de seu sapato encharcado misturou-se aos sons dos trovões. Cheguei a segui-la com o olhar, esperando que aquela garota falasse algo. Trouxesse sentido para uma noite tão estranha. O que recebi como resposta foi o fechar de uma porta.

Recordo-me de por ali permanecer mais alguns segundos, como se esperasse que ela retornasse. Sem consolo para minhas próprias frustrações, retomei a caminhada até minha porta de entrada e sentei-me na escada. De repente, não tinha mais pressa para entrar. Essa fora esquecida no segundo seguinte em que me encontrei aquela mulher, no meio da rua. Só fui capaz de ganhar forças, quando meu corpo não mais aguentava tremer.

Entre olhar para o poste de luz, no final da rua, e para a janela de seu quarto, a chuva não me pareceu um dilema. Era apenas água.

Naquele momento conheci o amor da minha vida. Aquele sentimento que sempre estaria ao meu lado. Porém, como disse, não estava pronta para ele. Era apenas uma garota estúpida, encantada por seu reflexo. Tateei o chão à procura do carpete. Levantei, retirei a chave reserva e entrei para o conforto da minha casa.

Não pensei naquela garota quando fui dormir. Meu último pensamento, naquela noite, foi sobre o quão doente ficaria por ter tomado chuva. O que eu fiz no dia seguinte? O mesmo de todos os dias. Levantei, tomei café. Peguei o jornal na entrada, li a parte de esportes e entretenimento. Tranquei a porta da minha casa e corri para pegar o bonde que me levaria até ao jornal local.

Como estagiária, precisava ser pontual para pagar minhas contas. Noite após noite. Outras chuvas vieram. Outras noites quentes de um verão passaram. Vez ou outra encontrava com aquela garota. Sem que me desse conta, ela passou a fazer parte da minha vida. Apenas
alguns metros nos separavam. Algo como passos e uma cerca branca no meio do caminho.

Em uma tarde, quando voltava do trabalho. Encontrei-a repleta de sacolas. Uma boa garota teria lhe oferecido ajuda, não eu. Caminhando novamente na direção contrária a do amor, retirei o molho de chaves do bolso e abri minha porta. Não olhei para trás. Apenas entrei.

Na mesma noite, a vi pela janela da cozinha. Conversava animada com seu gato cinza, de pelagem longa e sedosa. Fiquei alguns minutos compartilhando daquela relação. Nada mais do que apenas segundos. Voltei a me concentrar naquilo que julgava ser mais importante. Passava as noites dos finais de semanas na farra, mas nunca entendia por que tudo estava tão organizado quando voltava. Algo que só fui compreender longos anos depois.

Meu lixo nunca estava onde o colocava, no canto da porta dos fundos, na tentativa de não esquecer de levá-lo até a lixeira para que o caminhão o levasse. Minhas cartas estavam sempre cuidadosamente colocadas próximas ao jarro da entrada. Eu apenas voltava de alguma festa, agachava para pegar o bolo de cartas, olhava, ou não, para a porta dos fundos e entrava.

Todas as noites o som de Jazz invadia os cômodos. Assim, sem pedir permissão, ele – o jazz – fazia das paredes de minha casa sua morada, sem que eu notasse o quanto gostava de sua companhia. Na maioria das vezes não dava importância. Sorrateiramente, aquele som invadiu meus ouvidos até que fosse algo impossível de ignorá-lo. Foi a partir daí que passei a sentar-me na poltrona próxima à janela, fechar os olhos e dedilhar algo invisível na borda do estofado.

Passava horas ouvindo Jazz. Tornou-se uma rotina. Eu chegava do trabalho, tomava banho, comia e sentava naquela poltrona. Não demorava muito para que ela ligasse a sua antiga vitrola. Sempre me perguntei o que ela fazia. Dançava sozinha? Com o gato? Perdia preciosos minutos buscando pelas respostas erradas. Enquanto meu interesse pelas noites e festas esvaía-se por entre aqueles acordes.

Quase nunca a via na companhia de alguém. Ela era solitária, assim como eu. A diferença entre nós era que a minha vizinha gostava da solidão enquanto eu a ignorava. Às vezes, acabava pegando no sono ali mesmo. No outro dia acordava com as costas doloridas, mas não reclamava. Noite após noite, voltava para aquela poltrona.

Em um dia qualquer, levantei assustada com o som de gritos na casa ao lado. Cheguei à janela da cozinha esperando encontrar alguma discussão. Era ela brigando com seu gato por ter estragado sua almofada favorita. Minha vizinha apontava o indicador com rigor. Seu fronte enrijecido e sua voz penetrante não deixava espaços para enganos. Seus olhos cruzaram-se com os meus. Ela não sorriu. Não podia sorrir. Seu gato havia lhe traído. Então, naquele momento, quem sorriu foi eu.

Com ela do outro lado do vidro, gritando, xingando e eu sorrindo. Passei a esperar por um novo deslize daquele bichano. Contava que ele encontrasse outras almofadas, sandálias, chinelos peludos, qualquer coisa que me fizesse rir. Infelizmente, o gato aprendera a sua lição. Nunca mais ela gritou com o felino.

As semanas passavam e minha curiosidade aumentava. Quem era aquela mulher que por tantos anos viveu ao meu lado? O que a alimentava? Gostava de filmes de ação? De comédia? Seria ela uma amante de filmes melosos? Como seria o interior de sua casa? Não conseguia descobrir muita coisa.

A cada novo amanhecer, eu saía pela mesma porta. Passava por ela, balançava a cabeça em um cumprimento mudo e corria para pegar o bonde.

O tempo foi passando e o meu estágio chegou ao fim. Fui contratada para ser assistente. Basicamente, deveria fazer tudo o que um repórter investigativo detestava. Em uma tarde quase noite, voltava para casa com os braços repletos de mantimentos. Aquele seria o primeiro final de semana que passaria em casa, trabalhando. Tinha que entregar algo, que não me lembro, na segunda-feira, logo pela manhã.

Passei pela porta de sua casa e tomei um belo susto. Ela estava de saída. Usava um vestido simples, com um tecido florido. Na cabeça, uma pequena tiara rendada na cor branca. Lembro-me de parar próximo a minha porta e observá-la. Onde estaria indo? Fiquei ali parada até vê-la entrar em um carro preto, parado do outro lado da rua.

Ela me olhou e sorriu rapidamente antes de entrar no veículo. Cheguei a acompanhar o automóvel até que ele virasse à esquina e sumisse na escuridão, que começava a cair em meu próprio coração. Naquela noite, andei de um lado para o outro ouvindo o som dos ponteiros do relógio da sala. Estava preocupada com a minha vizinha. Ela nunca saia.

Quem era a pessoa dentro do carro? Por que ela estava tão elegante? Seria seu pai? Namorado? Amigo? Não importava encontrar as respostas. Tudo o que precisava era vê-la acender a luz da cozinha e conversar com seu gato. Foram as piores horas que imaginei passar em toda a minha vida. A pilha de papéis continuava intocável por cima da mesa. Eu andava de um lado para o outro, apreensiva.

Eu. A garota que gostava de passar a noite com estranhos, estava esperando a conhecida estranha voltar. Quando escutei o som do carro parando na porta de sua casa, corri para a janela. Ela trazia na mão um embrulho que julguei ser de algum restaurante. Concluí rapidamente que a pessoa no carro fosse seu namorado. Fato esse que, duas noites na semana, tornou-se realidade.

Poucas vezes vi o rosto daquele homem. Ele parava o carro na porta de sua casa. Ela saia correndo, olhava para a minha janela, sorria e entrava no veículo. A noite mais feliz daquele ano foi à primeira vez em que ela me acenou. Um gesto simples, apenas um movimento rápido de mão. Eu não consegui devolver o gesto. Não esperava por aquilo. Quando no próximo encontro ela acenou novamente, rapidamente retribuí. A nossa relação havia evoluído. Não era apenas um sorriso. Era um sorriso, seguido de um aceno. Algo que considerava muito para aquela estranha dinâmica.

Em uma tarde de domingo, escutei o som de batidas na porta. Quando a abri e não encontrei ninguém, imediatamente olhei de um lado para o outro da porta. Nada, não havia uma pessoa sequer. Abaixei o olhar, já pronta para fechar a porta, e deparei-me com um pequeno recipiente de vidro. Ainda com receio, abaixei e o peguei.

Não existia cartão, mas algo me dizia que pertencia a minha vizinha. Foi o melhor pedaço de torta de frango que comi. Lavei a vasilha com toda a delicadeza que encontrei. Não podia quebrá-la ou levaria bronca pior do que a daquele bichano. Esperei até que as luzes de sua cozinha estivessem apagadas. Atravessei o pequeno gramado, que separava nossas casas, e toquei a campainha. Os minutos que passaram pareciam roubar-me o ar, até ouvir os passos de alguém descendo as escadas. Corri para a segurança da minha casa. Por que não a agradeci pessoalmente? O que diria? Ainda estávamos apenas no sorriso e aceno.

Ela era a minha vizinha. Uma mulher que nos últimos meses tornou-se parte da minha vida. Só depois de longos anos é que fui descobrir que já fazia parte da dela há mais tempo. Aquele pedaço de torta foi apenas a forma como encontrou para dizer isso. Sempre achei que escrever sobre amor fosse algo piegas. Passar horas falando sobre algo único, enquanto me defrontava com uma vida cruel, parecia tolice demais.

Ainda assim, peguei o antigo caderno de anotações, há muito esquecido, e me sentei na varada de minha antiga casa. Olhei para a janela dela e coloquei-me a escrever tudo o que vinha em minha mente. Quando a imaginação fugia, bastava apenas fechar os olhos e ouvi-la
cantarolar qualquer canção de Jazz. Pronto! Passaria o próximo par de horas perdida entre parágrafos, travessões e vírgulas.

O melhor conto que escrevi foi na quinzena negra. Durante quinze dias não se ouvia Jazz. Tudo o que eu vi foi a escuridão de sua casa e o som de choro. A pior metade de um mês que encontrei pelo caminho. Não existiu sorriso. Seu lixo se acumulou na lateral de sua casa. As plantas de seu pequeno jardim minguaram assim como sua dona.

Eu compartilhei a primeira dor de amor da minha vizinha, sem poder aquecer-lhe os pés como seu bichano fazia. Senti o que a dor que um coração partido poderia causar, ainda que ambos sangrassem por motivos diferentes, sem que me desse conta. No 16º dia, fiz algo arriscado. Corri até a floricultura mais próxima e pedi que me vendessem o melhor buquê de rosas brancas que tivessem.

Nunca antes havia comprado flores para alguém, muito menos para um estranha conhecida. Andei por sete quarteirões sentindo o cheiro daquelas rosas. Precisava vê-la sorrir. Precisava ter o meu Jazz novamente, assim como precisava ouvi-la cantarolar. Coloquei o buquê de rosas no vaso mais belo que encontrei em meu armário, enchi-o com água e o coloquei em sua porta. Não precisava que ela soubesse de quem eram aquelas flores. Tudo o que queria era que aquelas cortinas se abrissem e a casa voltasse a sorrir. A minha alegria foi grande ao escutar, ao fundo, a música que, aos poucos, ganhava força e volume, até que ocupou quase todo o
quarteirão.

Cinco anos morei naquela casa. Os cinco anos mais significativos de toda a minha vida. A notícia de que deveria partir para uma nova cidade desolou meu coração. Fui promovida para a sede do jornal, que ficava na capital do estado. Aquela promoção significava a chance que qualquer jornalista desejava. Os dias que se seguiram foram regados por um misto de alegria, esperança e tristeza. Partiria. Não haveria mais Jazz, não teriam pedaços de tortas na porta da minha casa. Estava indo à procura de um sonho.

Na manhã de minha partida, vi seu rosto por trás das cortinas de sua sala. Ela parecia triste. Não me sorriu, apenas mordeu os lábios e olhou-me atentamente, enquanto colocava minhas coisas no caminhão de mudanças. Até o bichando parecia compartilhar de sua dor. Fiquei parada ali, vendo tudo o que tinha que ser colocado naquele caminhão, enquanto pensava no que estava deixando para trás.

Apertei com força o antigo caderno de anotações, que sempre me acompanhou. Ele era uma extensão de mim, dos meus pensamentos, da minha essência. Vi a última caixa ser colocada e a porta, que por longos anos foi minha, ser fechada uma última vez. Olhei novamente para o caderno em minhas mãos e aqueles dois no vão da janela. Não podia partir sem que antes deixasse com aquela estranha a melhor parte de mim.

Ainda insegura do que estava fazendo, caminhei até a entrada de sua casa e coloquei o pequeno caderno, coberto por couro, em cima do carpete da entrada. Sem olhar para trás, entrei no meu carro recém-comprado e fui em direção ao meu futuro.

Por longos anos, carreguei a imagem daqueles olhos, a forma como o cabelo molhado modelara seu rosto. Ela estivera sempre ali. As noites que passei acordada em meu novo apartamento, escrevendo algum novo livro, uma nova história. Todas as minhas personagens trouxeram algum traço daquela misteriosa mulher. Fosse o seu cabelo, o seu sorriso, seu olhar ou alguma característica que achasse que lhe caísse bem.

Passei a comprar vinis das melhores bandas de Jazz da época. Tudo girava em torno de uma estranha que achei jamais rever. Aquela garota que um dia fui, amadureceu. Encontrei novas paixões, outros sorrisos tão ou mais belos quanto o dela. Porém, jamais encontrei um Jazz que se harmonizasse com as batidas do meu coração, como o que ouvia naquelas noites.

Quando as estrelas perdiam espaço para as nuvens e o seu fechava-se para a lua, eu ligava a minha vitrola, apoiava a cabeça no encosto de minha velha poltrona, fechava os olhos e me teletransportava para aquela casa. Não precisava de muito. Não imaginava que a porta pudesse ser batida ou que algum gato estragasse algo ao meu redor. Tudo o que precisava era ouvir aqueles acordes e deixar que a minha imaginação voasse para longe. Para os olhos daquela estranha mulher.

Sempre me perguntei o que foi de sua vida. Teria ela casado? Encontrado alguém que lhe compreendesse tão bem? Esperava que sim. Esperava que fosse capaz de um dia ter alguém ao seu lado para não mais dançar sozinha. Às vezes, pensava em quão inconsequente fui em lhe deixar meu caderno. Teria ela lido meus rascunhos? Saberia ela que foi a inspiração de boa parte deles? Novamente, as respostas não eram o mais importante. Ela ficou com a melhor parte que aquele velho eu poderia lhe dar.

Nunca contei a ninguém que, fizesse o que fizesse, aquela mulher permanecera me acompanhando em minhas fantasias. Se me apaixonei? Acredito que sim. Acredito que busquei em muitos corpos encontrar o mesmo arrepio que ela me causava. Porém, a matemática do amor nem sempre é assim. Não bastava encontrar o X, usando o Y, W. Não! O sentimento utópico é mais do que isso. Ele pulsa, queima, chama, exige. Não há espaços para enganações, pois ele está em seu próprio peito. E lá, entre aqueles músculos, inexistem dúvidas, apenas o pulsar. Um, após o outro.

Encontrei, há alguns meses, enquanto fazia compras no supermercado, uma vasilha igual a que ela usava. Fiquei longos minutos sorrindo para uma prateleira repleta delas. Sentia-me em casa. Algo como pertencimento. Comprei algumas, ainda que não precisasse, devo confessar. Não podia deixar ali. Precisava levar aquela lembrança, daquele tempo.

Há dois anos retornei àquela casa. Passei com o meu carro pela mesma rua. Estacionei o veículo no passeio, assim como aquele homem que lhe partiu o coração. Esperei por horas. Ela sempre chegava às cinco. Nunca se atrasava, exceto quando o trem tinha algum problema. A minha decepção foi grande ao ver o ponteiro do relógio girar, sem que ela aparecesse.

Decidida a saber o que foi feito de minha vizinha, desci do carro e caminhei até aquela porta. Um garoto com pouco mais de cinco anos recebeu-me receoso. Perguntou-me o que estava fazendo ali, mas não soube lhe responder. Apenas sorri. Não sabia o nome da minha vizinha. Não sabia quem eram seus pais, seus amigos.

Logo uma mulher apareceu à porta. Informou-me que comprou o imóvel há poucos meses. Ela e sua família não tinham mais contato com a filha da antiga proprietária. O engraçado nisso tudo é que eu continuei sem saber o nome daquela mulher. Deveria ter perguntando, certo? Quando voltava para casa, refleti sobre esse deslize. Cheguei à conclusão de que não precisava saber. Ela para sempre seria a minha memória intocável. A garota por e para quem eu sentava na varanda, daquela antiga casa, e escrevia poemas pulsantes.

Ela era a minha lembrança. Aquela que o tempo não deturpa, porque não existe nada que se compare. Ela não estava ligada a um lugar, a um momento. Aquela estranha relação estava vinculada a quem me tornei. Aquela vizinha se tornou a minha companheira. Onde eu estava, ela estava. Para onde ia, ela também ia. Era o doce que contrabalanceava com o meu amargo. Algo como côncavo e o convexo, o contraponto do meu ponto.

Hoje, enquanto me arrumo para ir a alguma livraria dar autógrafos, sinto sua presença. Imagino vê-la, no fundo do salão, com sua tiara branca e seu vestido florido. Tenho certeza de que estaria tão bela como antes. O tempo não lhe seria tão malvado, como fora comigo. Trago rugas em meu rosto. Meus olhos há muito já estão cansados. Vivi muito além daquela rua.

Olho para a minha mesa e vejo um novo caderno, por fora, igual àquele que lhe dei, mas, por dentro, contém outras palavras. Sorrio ao saber que ali, no meio daquelas páginas, ainda posso senti-la. Passeio pela cidade e vejo os prédios da capital, deixo que a melodia do Jazz me acalme. O mundo diz que precisa de paz. Eu digo que as pessoas precisam encontrar a sua vizinha. Precisam encontrar aquela melodia no meio de tanta gritaria.

As pessoas precisam acreditar e alimentar, como se alimenta uma rosa, o sonho de viver um amor. Se um dia eu pudesse, diria para aquela mulher o quanto amá-la me faz bem. Digo no presente, porque jamais a esqueci. Não posso, ela é quem sou e sou quem jamais imaginei ser graças a esse amor.

Desço do carro e cumprimento algumas pessoas. Entro na livraria à procura do meu lugar. Terei uma longa tarde de autógrafos. Aperto com força a caneta, para que ela não escape de minha mão, que já não é mais tão firme como antes. Ajeito com impaciência os óculos que teimam em cair do meu rosto. A cada novo exemplar que colocam em cima da minha mesa, tento ao máximo olhar aquele para quem o dedico.

Eu preciso acreditar que quem o está comprando entenderá que está levando uma parte de mim e uma parte dela, assim como em uma promoção, pague um e leve dois. Tomo um gole d’água e respiro. Vejo algo ser colocado por sobre a mesa que não se parecesse com meu livro. Minha memória, como se estivesse em um redemoinho, se assusta ao reconhecer aqueles sulcos por sobre o couro.

Levanto o olhar e tudo o que vejo são aqueles olhos por trás de um rosto jovem de mulher. Para uma escritora, sinto-me uma completa analfabeta. Faltam-me sílabas tônicas, sufixos e prefixos para lhe falar. Ela não é a minha vizinha, mas eu sei que traz dentro de si algo que lhe pertencia.

O mesmo brilho no olhar, a mesma cor de pele. O mesmo serrar de pálpebras. Não. Aquela garota trouxe consigo a beleza que só aqueles que vivem podem ter. Não me fala nada. Apenas retira-se da fila. Sinto minhas mãos tremerem ao tocar aquele velho pedaço de mim. Deslizo os dedos pelo couro castigado pelo tempo e suspiro. Sim. Ele ainda se parece comigo, pulsa ao meu toque.

Escuto alguém dizer, ao meu lado, que preciso continuar com os autógrafos. Sorrio, desconcertada por aquele momento. Sua filha esteve ali. Minha mente não estava assim tão louca. A minha vizinha, aquela que sempre me acompanhou, devolveu-me o que eu era, ainda que fossem outras mãos que me entregassem.

Assim que término de assinar todos aqueles livros, percorro os olhos pelo lugar. Vejo poucas pessoas ao meu redor. Todos rostos desconhecidos. Com dificuldades, levanto da cadeira. Minhas pernas tremem e, ainda que a emoção não fosse o bastante, preciso do auxílio de uma bengala. Passo a passo ando para fora daquele lugar. Estaria ela me esperando? Acho que não. Para sempre carregaria seu rosto e nada mais.

Meu filho me pergunta se quero voltar para casa com ele. Com a coragem de uma jovem, digo que não. Eu preciso andar. Preciso saborear o reencontro de ter aquele caderno em meus braços, enquanto minhas pernas levam-me para algum lugar. Ele me olha desconfiado, mas lhe asseguro de que estou bem. Que posso voltar para casa sozinha.

Sinto por sobre minha pele, aquele velho couro queimar. Seu contorno se encaixa perfeitamente em meus dedos, que, com o tempo, deixou sua marca por sobre a capa. Chego à entrada da livraria e respiro como há tempos não respirava. O oxigênio parece-me carregar lírios invisíveis.

Sem pressa para com a vida e o local de chegada, parto. A garoa, que mais cedo cessara, reencontra seu caminho por entre as nuvens cinzas.

Lembro-me daquela jovem. Aquela garota inconsequente que chutava poças d’águas. Não posso mais fazer o mesmo e desconfio que, se pudesse, não o faria. Olho para a longa avenida e é como se estivesse naquela memória. Como se a visse caminhando no sentido contrário.

Firmo a bengala no asfalto e ergo o olhar para o alto. Finalmente compreendo o que naquela noite não fui capaz. Com as gotas caindo em minha pele, sinto a beleza de se viver. Foi isso que fez sorrir minha vizinha. A beleza que só aqueles que estão vivos são capazes de compreender. Viva, o que viver. Sofra tudo o que se tem para sofrer, porque quando a chuva caí, ela leva consigo tudo o que for ruim, deixando
apenas o cheiro de terra molhada entranhado em seu corpo, no asfalto.

Com dificuldades, abro aquele velho caderno e encontro um bilhete. Apenas uma linha, que dizia em letras cursivas “Esse será sempre o nosso segredo.Mills,R”. Não consigo conter a emoção ao segurar o papel. Deixo que as gotas da chuva molhem aquela tinta e levem embora seu nome. Quando se conhece a utopia do que é amar, não precisa saber a quem se dedica.

Ela para sempre será a melhor companheira. Quem diria que o meu grande amor seria a minha estranha vizinha.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.