Quatorze de setembro de mil novecentos e quarenta e cinco. O dia amanhecera nublado desta vez, com uma atmosfera um pouco triste. Garoava de vez em quando.

No silêncio do quarto do tatuado, as cortinas balançavam e um feixe de luz cinzento atravessava seus lençóis. O dia havia amanhecido como todos os outros.

Um agudo e doloroso ruído perfurava e quicava em sua mente, com um constante apito ensurdecedor.

Era o maldito do despertador.

Com a cabeça entre travesseiros ele tateou o objeto, e ao senti-lo, bateu com tanta força que não sabemos como o inocente despertador havia estado inteiro.

Levantou arrastando os cobertores de diversas cores e dirigiu-se a saída do quarto. Se viu entre os corredores do segundo andar, ainda esfregando as mãos no rosto para poder ver melhor. O quarto do outro lado estava fechado.

Lembrou-se da última noite, quando voltaram do restaurante e o jovem havia aberto o quarto de hóspedes para que a menina dormisse. Deu-lhe um pijama que havia guardado (que por sinal ficou folgado), mas que dava uma impressão de ainda mais fofa.

Dirigiu-se ao quarto da garota e abriu a porta vagarosamente.

A guria estava lá, deitada. Esbanjada de uma beleza extravagante. Os lençóis estavam bagunçados de tanto que se remexia. Decidiu ir ao armário próximo à cama e pegar um cobertor mais grosso. Estendeu-o sobre a cama da pequena enquanto ela se remexia e emitia alguns ruídos.

-Descanse.

Saiu do quarto e caminhou cambaleante até o banheiro. Fechou a porta e começou a rotina que fazia todo começo de dia. Lavava o rosto, escovava os dentes, arrumava o cabelo e de vez em quando passava maquiagem. Outras vezes tentava cobrir suas tatuagens com pós ou pinturas, mas não estava paciente para fazer aquilo no momento.

O ar parecia leve como uma pluma. Apesar de nublado, os raios perfuravam as janelas do quarto da garota e insistiam em permanecer no rosto dela.

Ela alternava entre o fechar e o abrir de olhos. Deparou-se com a luminosidade do tempo nublado e despertou.

Levantou-se da cama e espreguiçou. Com o cabelo totalmente revirado ela arrumou a cama e percebeu que havia um cobertor a mais. Guardou-o no armário e penteou-se com a escova que havia no criado mudo próximo e caminhou até a escada. Observou rapidamente que o quarto do tatuado estava vazio e a porta do banheiro estava fechada.

“Que horas são?” Se perguntou mentalmente.

Desceu as escadas e foi à sala principal. Notou novamente aquele corredor escuro. Apesar de Miyavi nunca tê-lo apresentado, ela sempre achou que havia um quarto ali. Bom, só havia um cômodo, além do banheiro. Então entrou no segundo para lavar seu rosto.

De outro lado, Miyavi acabara de sair do banheiro do segundo andar. Foi ao quarto e colocou uma blusa de frio acompanhada de uma jaqueta com aparência de fiapos. Junto a uma calça jeans. (E é claro, nunca se esquecia das luvas).

Penteou o cabelo e deu mais uma passada no quarto da garota. Agora ele estava vazio. Espantou-se. Como assim ela havia desaparecido? E o quarto estava arrumado!

Balançou os ombros e desceu as escadas em direção à cozinha. Decidiu fazer algo diferente como panquecas ou algo do tipo. Apesar de amar a comida japonesa ele gostava de variar às vezes.

-Akane? –Gritou da cozinha.

Ela não respondeu. Deu de ombros novamente. Não achava que a garota fosse responder mesmo.

Após sair do banheiro, Akane caminhou devagar para o segundo andar para trocar suas roupas.

Miyavi estava esperando pela presença da menina já há uns vinte minutos desde que acordara. Aquela casa não era tão grande para que se perdessem! Era?

Ele saiu da cozinha e deixou a massa cozinhar no fogão. Foi ao corredor do primeiro andar checar o cômodo “misterioso” e o banheiro. Nada da criança. Achou que ela estava lá! Mas onde estava a garota?

Subiu as escadas correndo e checou ambos os quartos e o banheiro. O desespero lhe bateu.

-Mas que merda! –Sussurrou consigo mesmo.

Enquanto isso...


-Mas por que isso precisa ficar tão longe? Venha aqui...

A garota estava agachada ao chão e com o braço totalmente esticado dentro do guarda roupa. Ela parecia tão miúda ali que não surpreende que Miyavi não tinha a visto.

O quadro atual seria o seguinte: Akane estaria empenhada em pegar um objeto do qual até o momento não sabemos o que é, enquanto o tatuado corria como louco entre os cômodos da casa atrás da guria. E algo mais: um cheiro estava preenchendo a casa. A massa estava queimando.

-Ai meu Deus!!!!!!!!! –Gritou desesperado.

A garota escutou o grito e deixou de fazer o que estava fazendo para correr à cozinha.

-O que está acontecendo?!? –Disse a garota com as mãos apoiadas em seu busto cobrindo seus peitos que até o momento eram só protegidas de um sutien.

-A comida! Ela está queimando!

-Então dê um jeito nisso, oras!!

-Mas eu não sei o que fazer!

O desespero reinava. A pequena além de estar corada pelo fato de não vestir algo além de seu sutien em sua parte superior, estava desesperada pelo fato da cozinha estar prestes a se envolver em meio ao fogo.

Por outro lado Miyavi nem notou o fato da garota seminua. Estava desesperado o suficiente para não conseguir pensar no simples fato de pegar a frigideira e mergulhar dentre a torneira com água corrente.

Não se desespere em um momento desses.

Como um raio de luz, uma explosão sonora seguida de um rojão de fogo tomou conta da cozinha.

-Ai minha nossa senhora! Por favor me salve! –Disse com as mãos entre os olhos.

-Você é um idiota! –Correu para o final da cozinha e pegou um extintor. Esqueceu por um momento sobre aquele fato vergonhoso e tirou a trava do cilindro.

-Com licença Miyavi!

Ele recuou ainda desesperado olhando sua cozinha pegar fogo.

Akane abriu o cano e jorrou o material por cima da frigideira e cobrindo todo o fogão e a pia.

-Minha cozinha... –Disse choramingando.

-Como você conseguiu queimar essa massa pra panquecas?!?

-Eu estava procurando por você!! Onde diabos você estava?! –Pôs a mãos na cintura.

-Eu fui ao banheiro do térreo e depois voltei ao quarto para procurar algo no guarda roupa, mas não conseguia pegar!

-E por que está só de sutien?!? –Disse no calor da discussão.

Os dois se aquietaram.

-Com licença.

E saiu da cozinha totalmente corada.

O que fazer agora? A cozinha estava totalmente destruída. Mas Takamasa não estava com um pingo de paciência para limpar.

Pegou o telefone.

-Mochi Mochi? Hai, Ishihara aqui. É... Você poderia...



~x~x~x~x~

A garota se trocava normalmente em “seu” quarto. Ajeitava os últimos detalhes como os sapatos e a pulseira que carregava. Não se esqueceu do amuleto, é claro.

-Essas roupas ficaram ótimas. –Disse Miyavi apoiado no batente.

-Obrigada. Não são tão femininas quanto a outra que você me deu, mas acho que está legal.

-Eu comprei esta roupa sabendo que também é de seu gosto se vestir assim.

Akane se observava no espelho. Ela vestia um casaco de lã verde-musgo com botões acompanhado de uma boina igualmente verde e de lã. Vestia uma calça jeans também e sapatos marrom.

-Olha a luva! –E jogou de onde estava para a menina.

-Obrigada. –Colocou-as. – A cozinha! Eu... Deveria arrumá-la! Não deveria ter colocado essas roupas... –Olhava-as com pena.

-Não se preocupe. Eu já chamei alguém para resolver isso.

-Isso não é justo! Você está submetendo uma pessoa a arrumar algo por você?

-Eu estou pagando, Akane.

Ficou em silêncio.

Ambos ouviram um barulho. Parecia alguma coisa rangendo. Akane corou.

-Você está com fome mocinha?

Não respondeu.

-Vamos. –Riu.


Ao deixarem a casa, dirigiram-se a algum restaurante não muito caro quanto o outro, mas que era confortável.

Sentaram-se em alguma mesa dispersa dentre o espaço ali e desfrutaram de pratos (japoneses) dos quais Miyavi estava se recusando a fazer hoje.

Algo dizia que ele não tentaria fazer panquecas por um bom tempo. Aliás, qualquer comida que exigisse fogo.

Iria morrer de fome.

De qualquer maneira, o horário do almoço estava bem próximo. Decidiram pular a refeição mais importante do dia e almoçaram.

A missão começaria hoje. A pequena estava pronta?


Era por volta de meio-dia. Após saírem do restaurante eles voltaram ao Machiya e começaram a investigação.

Estavam sentados em volta do kotatsu. Dessa vez nenhuma comida os acompanhava, apenas duas garrafas d’água.

Ishihara soltou várias páginas amareladas no kotatsu e explicou uma por uma.

-Eu mandei investigar o local onde você e sua família foram atingidos. Os registros dizem que até hoje ninguém reside naquele local. Ele foi desabitado devido a contaminação. Os cadáveres registrados naquela área não se remetem a sua família. –Respirou. –Em outras palavras... Seus pais não foram achados.

Respirou fundo.

-Maaass.... –Estendeu o “mas” indicando continuação- O meu contato ainda está investigando isso e é bem provável que eles apareçam no registro em breve.

A garota afirmou positivamente com a cabeça.

-Agora sua irmã. Ela se chama Keiko. Keiko Kikuchi. Certo?

-Sim.

-E você é Akane Kikuchi, não é?

-Yup.

-Que nome mais doce! Doce flor da terra do crisântemo!

-Não é exatamente isso...

-Mas é a ideia. Você entendeu! –Riu.

Parou e voltou aos dados.

-Keiko Kikuchi... Temos registros dela em um hospital Militar de Hiroshima.

-Mas espera, Hospital Militar?

-Eu sei. De alguma maneira ela foi registrada lá. Eu não sei como. –Virou os papéis. –De acordo com o que foi dito, Keiko estava em situação grave e uma funcionária da cruz vermelha a levou ao hospital mais próximo. Porém devido a alguns problemas (talvez o fato de ser um hospital militar), ela foi transferida para a filial da escola primária Ono.

-Alguma informação atual?

-Essas informações são um pouco depois do dia seis de agosto. Pode detalhar um pouco o que aconteceu?

Aquietou-se por alguns instantes e falou o que provavelmente já tinha dito.

-Era por volta de oito da manhã, houve um estrondo, uma explosão reverberante. -Pausou. –Um clarão de luz amarelo-alaranjado entrou pelo vidro do telhado. Ficou tudo tão escuro como noite. Um golpe de vento atirou-me no ar e a seguir no chão, contra as pedras. A dor estava apenas brotando quando algumas construções começaram a ruir em torno de mim.

-Sim, você havia dito isso. Às oito da manhã, certo?

-Sim. Aos poucos o ar se aclarou e eu consegui sair dos destroços. No caminho para um dos centros de emergência vi muita confusão. As ruas estavam tão quentes que queimavam meus pés. Casas ardiam, os trilhos de bonde irradiavam uma luz sinistra e no local de um templo pessoas se amontoavam. Algumas respiravam, a maioria estava imóvel. No desespero eu me dirigi ao pronto-socorro. No pronto-socorro chegava gente correndo, as roupas rasgadas, chorando, gritando. Alguns tinham o rosto ensanguentado e inchado, outros tinham a pele queimada caindo aos frangalhos de seus braços e pernas. Em um bonde vi fileiras de esqueletos brancos. Havia também os ossos de pessoas que tentaram fugir. Hiroshima tinha se tornado num verdadeiro inferno... –Akane se sentia ressentida.

-Desculpe.

Ishihara se sentia culpado. Aquilo era horrível. Realmente uma visão do inferno. O que se lembrava desse dia era que tinha descansado bastante e que havia escutado sobre essa notícia de alguém.

Ele estava salvo. Enquanto a garota lutava pela vida.

Não era por menos que a pequena se sentia sozinha. Seus pais mortos em meio a escombros, uma irmã desaparecida... E quem podia garantir que ela estava salva da contaminação? Provavelmente ela morreria em breve.

Miyavi não ligou pra isso. O Japão estava um inferno. O país inteiro estava um caos. Os estados unidos da América possuía um armamento equivalente à raiva que a população japonesa sentia por aquela nação nojenta.

A rendição ocorrida não foi algo de se orgulhar também. O Japão era um lugar feliz. Era um lugar cheio de tradições e costumes.

Mas agora... Agora era nada mais nada menos que uma colônia dos Estados Unidos. Impondo sua vontade como se fossem superiores.

O desejo de muitos era sair dali. Nunca mais voltar para aquele inferno. Mesmo que só algumas áreas tenham sido atingidas, o país inteiro estremeceu.

Viver ali era viver com desgraça. Morte, sangue, tristeza, submissão.

O povo japonês era de fato nacionalista. Todavia o nacionalismo não sobrevivia em termos tão graves como esses. Sem dinheiro, sem família, sem comida e ainda por cima com os dias contados.

A radiação havia afetado muitos recursos e muitas pessoas. Além dos lugares devastados. Se a vida ali continuasse... Seria precariamente.

A ira... A tristeza... A única coisa que todos queriam era viver em paz. E se precisassem deixar a terra natal para isso eles o fariam com certeza.

O orgulho japonês não estava destruído. Só abandonado. E se alguém que há de reclamar sobre esse orgulho, que lute bravamente contra aquela potência rústica e impiedosa sozinho.

Ninguém estava em situação de reclamar. O sangue preenchia a bandeira do Japão frequentemente, assim como as ruas.

A situação estava completamente desesperadora. A agonia de todos os cadáveres expostos e toda a quantidade de lamentos e choros... E o principal... O sangue e os cortes... Os destroços...

Não imagine que um cenário de vídeo game zumbi seria pior que aquilo.

Nada poderia ser pior que aquilo.

Pequeninas lágrimas escorreram de seus orbes. Miyavi sentia-se destruído por dentro.

-Olhe aqui –Disse secando suas lágrimas. –Nós vamos achar sua irmã e –Demorou pra pensar em algo. –Vamos viver felizes, tudo bem? Não chore... Por favor.

Após alguns soluços profundos ela parou de chorar.

-Nós vamos para a filial de Ono, tudo bem? Vamos atrás de sua irmã.

-Está bem...

-Prepare suas roupas. Nós vamos para Hiroshima amanhã bem cedinho. Não podemos ficar lá então vamos só passar o dia, está bem?

O dia se passou normalmente. Eles discutiram um pouco mais sobre o assunto e depois aproveitaram o dia livre.

O céu nublado permanecia.