It's over, isn't it?

— Como está se sentindo hoje, Amélie? – Ângela perguntou suavemente, enquanto a mulher se posicionava em cima da maca.

— Não sinto nada – foi a simples resposta, que fez a médica suspirar.

Então era um daqueles dias, certo? Os dias do vazio. Porque Amélie – ou Widowmaker, como era chamada sua nova identidade – tinha sido resgatada das garras da Talon. Ou sequestrada, como ela pensava inicialmente. Ela tinha sofrido uma lavagem cerebral completa – o que ficou provado ter sido o motivo do assassinato de Gerard – e tinha perdido completamente suas emoções, tornando-se uma máquina de matar, uma arma da Talon.

Porém, Ângela era... a doutora Ziegler. Mercy. Uma médica prodígio que fora capaz de reverter até a morte em alguns casos. Seus herois não morriam, e Amélie era um deles. A mulher ainda estava viva sob a pele gelada, Ângela sabia disso, e ela faria de tudo para resgatá-la.

Em alguns dias, parecia estar dando certo. Widowmaker sorria, tocava o rosto de Ângela com suavidade, voltando com a realidade, e seus olhos faiscavam, expressivos. Às vezes ela chorava, soluçando contra o peito de Ângela e chamando por seu marido. E os abraços que recebia da médica pareciam lhe dar um mínimo de conforto, mesmo que o toque fosse frio como gelo e fizesse Ângela estremecer.

Mas em alguns dias, era apenas... o vazio. Os olhos de Widowmaker eram mortos, e não refletiam os olhos carregados de preocupação da doutora Ziegler. Ela se mantinha impassível enquanto os dedos calejados da médica percorriam a pele de um azul cada vez mais claro, obedecendo aos procedimentos padrões.

— Você notou algo diferente desde a última vez em que nos vimos? – Ângela perguntou com sua voz profissional. Widowmaker olhou ao redor, estudando o consultório.

— Tem música aqui.

Ângela assentiu. Não era a observação que estava esperando, mas também não era um problema.

— It's over, isn't it?— clarificou.

Os olhos de Widowmaker estavam fixos na parede.

— Eu costumava... dançar essa música. Não é, doutora?

Ela se virou para encarar a médica, que sentiu seu coração disparar ao perceber... algo nos olhos de sua paciente. Seria aquilo desespero? Melancolia? Widowmaker nunca perdera as memórias, apenas as emoções associadas a elas. E ver uma pontada de sentimento naqueles olhos fez Ângela perceber que eram os olhos de Amélie.

— Sim, você era uma bailarina... apaixonada— a médica teve que se conter para não dizer “apaixonante”. As lembranças daquela época ainda eram frescas em sua memória: assistir as apresentações nas companhias de Jack e Gerard. Ângela tinha ficado... fascinada. Não havia outra palavra para descrever como a jovem Mercy se sentira ao ver Amélie se mover com tamanha graça que parecia voar, com tanta suavidade que nem parecia que exigia tamanha prática. Amélie fazia aquilo parecer tão fácil, e era tão belo... Amélie era tão bela.

Ainda é.

— Amélie, tente focar na música, certo? Vamos ver se conseguimos entrar na sua mente mais uma vez... tudo bem? – o balé era um dos maiores estímulos, e Ângela estava começando a se empolgar com o interesse que era evidente nos olhos de Widowmaker.

Ela acenou com a cabeça. Parecia estar concentrada, como se estivesse forçando os sentimentos a voltarem.

— Eu me lembro como era estar no palco – Sim! Era disso que Ângela precisava! A voz de Widowmaker ainda era monótona, mas já era um progresso. – Eu me sentia como um pássaro.

– Um pássaro?

— Livre.

Aquela palavra derrubou um peso gigante no consultório. Ângela não sabia se Widowmaker pensava o mesmo, mas o conceito de “ser livre” para Amélie já não era mais o mesmo que ela pensava quando era a esposa de Gerard Lacroix dançando em cima de um palco.

Sua prisão agora era outra.

— Você quer se sentir livre de novo, Amélie?

A mulher não disse nada. Por um instante, Ângela se perguntou se ela ainda tinha a noção do que significava se sentir livre. Mas no fim das contas, não importava. Aquele era um dia ruim, mas Mercy traria Amélie de volta.

Seu coração falhou uma batida com a ideia de poder se encontrar com aquela mulher novamente.

Ainda não estava acabado.