Eu não gostava das aulas de matemática. Gostava menos ainda do enfoque em trigonometria daquele bimestre. Ainda mais do que tudo isso, eu odiava a liberdade que os alunos sentiam na aula de matemática para não calarem a maldita da boca porque a professora parecia sempre tão interessada em ensinar como eles estavam em aprender. Eram os 50 minutos mais inúteis do dia.

O destaque era a voz aguda e estridente do mais barulhento de todos, Haechan. Ele era o tipo de pessoa que sorria as oito da manhã – alguém em que claramente não se podia confiar. Talvez um sociopata. Haechan coordenava o circo que um dia fora a aula de matemática. Seu bom humor influenciava a todos em sua volta, o que o tornava amigo de todos e naquela situação o principal responsável pela minha enxaqueca. Se ele não tivesse liberado seu vírus da hiperatividade pela sala e transformado apenas mais uma aula monótona em seu grande show, nada daquilo estaria acontecendo. Talvez eu estivesse dormindo ao invés de tomando um analgésico.

Haechan poderia ser a boa pessoa que fosse, mas enquanto sua animação desmedida resultasse na minha enxaqueca todas as terças e quintas nos infernais 50 minutos de matemática eu não gostava dele.

Mas isso só as terças e quintas.

Para ser mais preciso somente naqueles exatos 50 minutos das terças e quintas.

De resto eu era completamente apaixonado por ele.

Quando cheguei na Coréia há dois anos atrás eu fui automaticamente inserido em seu grupo de amigos – um grupo ridiculamente grande, cheio de pessoas com personalidades extremamente duvidosas. Haechan foi a primeira pessoa a conversar comigo e o responsável por me apresentar a todos os meus amigos atualmente – tenho certeza que se ele não tivesse tomado partido eu estaria até hoje lanchando com a moça do refeitório. Ele era o tipo de pessoa fácil de se aproximar e difícil de abandonar. Ele sorria demais, era gentil demais. Ele era vivo. Não era o meu melhor amigo ali, mas era completamente indispensável na minha vida – menos durantes os famigerados 50 minutos.

Como eu odiava a forma com que ele e Jaemin pareciam se dar inexplicavelmente bem na aula de matemática. Não, eles não tinham nada. Jaemin inclusive namorava, mas isso não me impedia de sentir aquela ardência e desconforto no peito. Eu odiava esse ciúme. Não era o ciúme de “eu tenho certeza que ele gosta dele e não de mim”, mas sim de “ele sorri da mesma forma para ele que sorri para mim”. O ciúme de não ser especial. Um ciúme egoísta e tão inútil quanto matemática.

**

Quando o sinal do intervalo tocou eu quase glorifiquei em voz alta. Eu tinha vinte minutos para cochilar o que eu não havia conseguido fazer a noite toda. Os últimos tempos estavam complicados. No começo era mais fácil de lidar com essa paixonite por Haechan, era só um crush que logo passaria – alguém que eu admirava e que era estupidamente bonito. Então as coisas foram descompensando, desviando para caminhos sinuosos demais. Não sei dizer em que ponto nossa amizade se fundiu com minha queda por ele e se tornara naquela paixão ridícula. A verdade é que eu já perdera muitas noites tentando atribuir diferentes significados para meus sentimentos... era fácil de se confundir as coisas certo? Mas as noites dormidas traziam sonhos bem reveladores (deve existir um limite de sonhos seguidos para se ter somente com um crush e outro com o amor da sua vida) e a taquicardia que me acompanhava sempre que o outro estava por perto era palpável demais para se continuar negando.

Chegar à conclusão de que o amava não mudou absolutamente nada na minha vida, eu continuava perdendo várias noites de sono, mas agora tentava pensar em uma maneira de sair daquela situação. Existia alguma lei da física que dizia que tudo que vai volta certo? Se eu me apaixonei eu podia muito bem me desapaixonar – depois de algumas noites insones qualquer argumento infundado passou a fazer sentido para mim.

Mas já faziam cinco meses e eu não tinha chegado a absolutamente nenhum lugar que não fosse o fundo do poço. Os sábios já diziam desde muito tempo que se apaixonar por amigo é estupidez, mas não teria se tornado um ditado tão popular, um clichê, se não acontecesse com tanta frequência – e infelizmente eu nasci para protagonizar esse drama. Se eu pudesse escolher preferiria algo mais trágico e sem incógnitas – talvez uma paixão que definitivamente me levaria a morte ao invés de um “será que ele gosta de mim também?”.

Em minha defesa a culpa era inteiramente dele. Ele deveria tomar mais cuidado com os tipos de interação que tinha com as pessoas porque era quase impossível não sentir algo depois do quinto sorriso. E ele não era só bonito, legal e gentil, ele também era alguém confortável. O tipo de pessoas que quando você notava já fazia parte do seu cotidiano e se não estava ali fazia falta.

Bom, com noites mal dormidas e ansiedade no talo a minha irritabilidade estava em seu ápice. Meu rosto estava pipocado de espinhas e eu comia tanto chocolate que chegava a ter diarreia quase toda semana. Eu teria a morte mais patética de todos os dramas: morte por evacuação insistente e autoinduzida.

A alternativa que havia encontrado no último mês era evitar Haechan o máximo que conseguia, o que não era muito porque ele era insistente e eu era completamente fraco em relação a tudo que o envolvia. A única meta que conseguia cumprir era a de me manter na sala “dormindo” durante o intervalo ao invés de sair com ele e o pessoal. O que era insignificante uma vez que sempre que ele me convidava para assistir um dos seus jogos depois da escola eu ia. A verdade é que eu estava tão de quatro por ele que se ele me pedisse para acompanha-lo em uma caminhada até o meu país natal eu iria como quem aceita tomar um milkshake em um dia quente.

**

— Renjun. Renjun. Renjun. – A voz foi ficando cada vez mais próxima. Jeno vinha em minha direção, esbaforido. Algo tinha acontecido, eu podia sentir na apreensão de sua voz. Um alarme soou no meu peito e senti vertigem. Eu estava caindo.

Pera... eu estava caindo?

Foi com um baque doloroso que eu acordei no chão, o professor de biologia com as orelhas vermelhas me encarando da frente da sala, a turma toda me olhando, Jeno pedindo perdão na minha visão periférica. Não entendi nada e também não tive tempo para assimilar nada que não fosse o pedido para recolher meu material e me retirar da aula. Peguei somente o celular e fone de ouvido e sai trotando, quase correndo, corredor a fora.

Parei somente quando cheguei ao refeitório e me escondi atrás da cantina. Em respeito a nossa breve amizade no começo da minha vida escolar na Coréia a moça do refeitório sempre permitia que eu me refugiasse ali quando precisava. Recentemente acontecia bastante.

Meu celular vibrou. Ignorei enquanto recuperava o fôlego, mas na quarta vez quando fui obrigado a olhá-lo. As duas primeiras mensagens eram de Jeno.

Me desculpa cara. Tentei te acordar discretamente, não pensei que se assustaria. Tudo bem?

Eu levo suas coisas depois. Ta no refeitório?

Respondi que não tinha problema e que a culpa era minha de dormir na aula. Agradeci e falei que estava bem, confirmando estar em minha batcantina.

Jeno era um bom amigo.

A terceira era de Chenle e era uma foto minha babando na aula minutos atrás:

Existe material genético na sua carteira suficiente para três condenações.

Chenle era um péssimo amigo.

A quarta e última era dele.

Onde você ta?

E vinha seguida da quinta, sexta e sétima.

Ren?

Ren?

Reeeeeeeeeeeeeeeeeenjuuuuuun?

— Paciência definitivamente não é uma das virtudes pela qual me apaixonei em você.

Estou na batcantina.

Haechan que tinha dado esse apelido ridículo ao meu refúgio favorito. Sempre o considerei o meu lugar seguro – isso até eu enviar a mensagem e um celular apitar o recebimento instantaneamente do meu lado.

Eu tenho certeza que li em algum lugar que a privação de sono causa alucinação. Aquele só poderia ser o caso ali, não existia absolutamente nenhuma possibilidade de aquele ser realmente Haechan ali, a uma distância perfeitamente segura para ouvir o que havia sussurrado momentos antes.

— Sabia que estaria aqui. – Ele sorriu, aproximando-se e sentando ao meu lado. Não existia “espaço pessoal” quando falávamos dele, então ele estava perto demais e o meu coração reagiu instantaneamente. Droga, não era alucinação.

— Você deveria estar em aula. – Foi a única coisa que consegui cuspir.

Ele não parecia ter ouvido nada sobre eu estar completamente apaixonado por ele... será que depois de tantos anos de luta o dia da glória chegou? Eu estava realmente com sorte?

— Você também. – O tom usado era de divertimento, mas seu rosto estava sério. Aquilo era raro. – Você está bem?

Oh, ele estava preocupado. Que fofo.

— Se eu falar que sim você acredita? – Falar sobre a minha saúde precária nos levaria a um caminho pelo qual eu não estava pronto para caminhar, mas era inútil tentar mentir sobre isso. Ainda mais para ele. Eu não estava nada bem e qualquer um poderia perceber isso à quilômetros de distância.

— Sério cara, o que ta acontecendo? Você ta muito mal, a um bom tempo. E eu estava esperando que você fosse vir falar comigo sobre isso em algum momento, ou se não comigo com os outros caras, mas já fazem meses e tu continua assim.

Ok, Haechan estava sério e frustrado. E estávamos caminhando pelo lugar proibido que eu estive muito empenhado em evitar. Eu conseguia sentir a ansiedade começar a sufocar minha garganta, tornando o ar rarefeito. Continuei mudo enquanto o encarava. Percebi que ele mordia a parte interna de sua bochecha.

— Você deveria parar com isso, é um péssimo habito. – Finalmente disse, colocando a mão sobre a sua bochecha, forçando-o a parar de mordê-la. Claramente não era o que ele esperava ouvir, mas eu estava até que surpreso de ouvir minha própria voz dizer algo que fizesse sentido. Provavelmente a última coisa que eu diria, uma vez que Haechan usou sua mão para cobrir a minha e mantê-la no lugar, em sua bochecha quentinha, e qualquer palavra que pudesse passar pelo bolo na minha garganta agora estava perdida.

— O que ta acontecendo? – Ele perguntou mais uma vez, dessa vez mais baixo. – Não gosto de te ver assim. – Sua mão desocupada veio se enrolar em meus cabelos e eu sabia que ele tinha sentido o arrepio que isso me causou porque ele sorriu tão malditamente bonito que meu coração doeu mais um pouco.

Ah que se foda, era impossível eu me desapaixonar. Tão impossível quanto não ter me apaixonado em primeiro lugar. Lei da física nenhuma – deturbada ou não – mudaria isso. Eu nunca recuperaria minhas noites de sono perdida, nem o dinheiro gasto em analgésicos e chocolates, muito menos o ritmo cardíaco saudável que eu costumava ter antes de conhece-lo.

— Eu amo você. – Eu não ouvi minha própria voz, mas sabia que tinha dito por conta da sua expressão atônica. – Tipo, eu tentei não amar, mas eu realmente amo e como você pode perceber eu sou completamente inútil quando se trata de lidar com isso. E bom, você também não facilita. Então é isso que ta acontecendo. No caso você está acontecendo. Você e sua capacidade de bagunçar o meu sistema simpático.

Sistema simpático esse que estava completamente ativado no momento e eu estava pronto para entrar em modo de fuga se ele não tivesse me prendido entre seus braços. Enquanto gargalhava. Gargalhava.

— Caralho, foi mal, foi mal. – Ele repetia enquanto tentava parar de rir ao me ouvir xingá-lo de todos os palavrões que eu conhecia, em todas as línguas que eu sabia. – Eu não to rindo de você. Eu só to feliz.

— Feliz? – Meus neurônios tinham entrado de férias no momento em que sua mão tocou meu cabelo então eu não estava absorvendo nada desde então.

— Isso, feliz. – E ele ria. Muito bonito, mas eu ainda queria acertar um socão naquele rostinho. – Eu to feliz, porque eu também te amo.

E talvez eu levasse uma eternidade para absorver essas palavras, mas Haechan não me dera oportunidade para tal ao se afastar o suficiente apenas para me beijar. Big Bang não era nada perto da explosão que rolava na minha mente naquele momento. Morte neuronal em massa, no mínimo.

Eu te amo Renjun.

Seu sussurro entre o beijo foi minha deixa para tentar parar de tentar raciocinar e só aproveitar.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.