O silêncio preenchia aquele lugar como um parasita, a noção de tempo havia sido perdido há muito e tudo o que os restava era esperar. Blut nem se dava mais ao trabalho de não fingir estar entediado, ele simplesmente dormia sem se preocupar com nada em sua poltrona. A vibração de seu celular lentamente o acordou. Ele atendeu seu celular com a maior despreocupação possível mas sua sonolência foi rapidamente interrompida quando ele percebeu com quem falava:

—Você estava dormindo, Blut? -Perguntou aquela voz grossa.

—Não...de maneira nenhuma, senhor. -Respondeu Blut.

—Você é tão desleixado...mas não temos tempo para isso agora. -O homem do outro lado da chamada fez um pausa para respirar. -Pegue o seu grupo e dirija-se para o campo de batalha. Te darei mais detalhes mais tarde.

Blut levantou-se imediatamente com um sorriso no rosto:

—Com todo o prazer...

Enquanto tudo começava caminhar na direção do inevitável, Kurokawa fazia o seu melhor para manter-se vivo. Ele e o Herói tiveram que fugir sem nem serem capazes de andar corretamente enquanto eram perseguidos pelo exército inimigo. A perseguição já durava mais de 4 horas e os inimigos não pareciam querer desistir enquanto Kurokawa lentamente perdia sua consciência:

—Herói...eu não vou conseguir andar...por muito mais tempo... -Disse Kurokawa.

—Cale a boca... -Respondeu o Herói. -Não temos tempo para isso...eles estão se aproximando...

Kurokawa tentou dar um passo em diante mas perdeu o equilíbrio de seu corpo e acabou por cair no chão. Ao tentar levantar-se, ele percebeu que suas pernas não respondiam ao seus comandos:

—Merda... -Sussurrou ele. -Parece que é o final da linha...para mim...

O Herói concentrou suas últimas forças em seus braços e começou a arrastar Kurokawa:

—Eu consigo ver uma floresta não muito longe daqui...podemos nos esconder lá... -Comentou ele puxando Kurokawa.

—Você sabe...que nesse ritmo, nós dois vamos morrer, certo?

—Cale a boca...se tem forças para falar...então ande com as suas próprias pernas...

Kurokawa soltou um pequeno riso antes de perder a consciência:

—Idiota...

Ao abrir seus olhos novamente, ele percebeu que a noite já havia se estabelecido. Ele olhou a sua volta e viu uma grande floresta e não muito longe dele, o Herói encostado em uma árvore enquanto dormia. O solo e suas roupas estarem molhados indicava que havia chovido. O que apenas o fazia se questionar sobre o tempo que eles passaram ali. Ele levantou-se com muitas dificuldades, seu corpo inteiro doía e as condições atmosféricas não ajudavam nenhum pouco.

Ele observou tudo a sua volta e percebeu que os inimigos haviam desistido de os perseguirem. O mais impressionante que ele descobriu foi o fato de não existirem pegadas ou vestígios do caminho que eles fizeram até esse lugar:

—Então ele foi capaz de apagar os nossos vestígios mesmo naquela situação... -Pensou Kurokawa.

Seus movimentos foram interrompidos bruscamente por uma dor crescente em seu estômago, era fome. Ele olhou cuidadosamente a paisagem a sua volta e foi capaz de identificar alguns pequenos animais:

—Perfeito...

Ele abaixou-se lentamente e silenciosamente no chão e começou a rastejar na direção daquele coelho. O pobre animal só sentiu sua presença quando era tarde demais. Kurokawa repetiu o mesmo processo algumas vezes até conseguir uma quantidade razoável de carne. Ele preparou aquilo com as ferramentas que tinha a sua disposição e o resultado foi muito melhor do que o esperado.

Ele fez uma pequena fogueira após novamente certificar-se de que não havia ninguém nas redondezas e começou a assar as carnes. O Herói sentiu o calor emitido pela fogueira e lentamente acordou:

—Então você está vivo... -Brincou Kurokawa.

—Mais ou menos... -Respondeu ele acordando.

O Herói aceitou a comida oferecida por Kurokawa mais rapidamente arrependeu-se:

—Isso tem gosto de merda...

—Você esperava o que? -Perguntou Kurokawa sentindo-se ofendido. -Comida italiana? Você tem sorte de isso estar comestível, eu nunca cozinhei nada na minha vida a não ser macarrão instantâneo!

O Herói soltou uma pequena risada e sentiu uma dor intensa percorrer seu corpo, essas eram as consequências de abusar o seu corpo tanto assim. Os dois terminaram aquela refeição e começaram a pensar no que fariam a seguir:

—Podemos dormir em cima das árvores, eu penso que seja muito mais seguro. -Sugeriu Kurokawa.

—Você está certo mas hoje é o último dia que podemos fazer isso, ficar nessas condições por muito tempo vai acabar te deixando muito pior do que está. -Respondeu o Herói. -Amanhã vamos sair daqui logo pela manhã.

Eles apagaram a fogueira e subiram as árvores com bastante dificuldade. Em meio a falta de sono, um assunto aleatório surgiu:

—Herói, porque você tem essa sua obsessão por justiça? -Perguntou Kurokawa de forma desinibida.

—Primeiro de tudo...porque você me chama de Herói?

—Porque eu não sei seu nome e você parece o protagonista daqueles filmes estúpidos que sacrifica tudo para concretizar seu ideal. -Respondeu Kurokawa. -Ai eu pensei, porque não Herói?

—Youmu.

—Youmu?

—Sim, esse é o meu nome.

—Que nome tão...estranho...

—Você tinha perguntado porque eu faço o que faço, certo? Vamos lá então. Faz tanto tempo que eu não penso no passado que eu não sei se realmente o superei. Eu não nasci em Euler nem em Kepler, eu nasci numa outra cidade que atualmente não existe, Masteam. Vai me dar um pouco de trabalho te explicar isso mas eu acho que valha a pena. Há quinze anos atrás, o último rei demónio morreu. Ele morreu num pequeno vilarejo de Masteam e esse lugar foi contaminado por a sua essência. O solo tornou-se infértil, o ar tornou-se tóxico e vida foi expulsa daquele lugar.

Kurokawa decidiu interromper seu discurso para colocar uma pergunta:

—Pelo jeito que você falou...saber o que é um rei demónio parece ser conhecimento comum...mas bem...eu sou uma pessoa estranha...

—Eu também não sei muito bem o que é um rei demónio, tudo o que eu sei é que ele é uma criatura estupidamente forte que ocasionalmente aparece no mundo de IP. E de acordo com as lendas e tradições, esse monstro só pode ser morto por um guerreiro. Esse guerreiro deve matar o rei demónio, salvar o mundo e ele será compensado com riqueza e glória infinitas. Cliché, não é mesmo?

—E quem derrotou esse monstro na última vez?

—Não sei, na época, a pessoa que fez isso não quis receber o mérito dessa conquista e apenas desapareceu. -Respondeu Youmu. -Mas voltando ao assunto principal, por causa do veneno do rei demónio, a cidade foi lentamente ficando desabitada. Aquilo virou um lugar sem lei, pessoas matavam e roubavam sem se importarem com nada. Eu vivia num orfanato nesse época já que eu nunca conheci meus pais biológicos. Eu vi incontáveis vezes irmãos meus serem mortos por motivo nenhum, eu tive que suportar e viver com isso por anos da minha vida. Ao ficar um pouco mais velho, a primeira coisa que fiz foi começar a trabalhar e tirei o resto da minha família daquela cidade. Nos mudamos para Euler e lá eu conseguia sustenta-los trabalhando mais de 16 horas por dia. Mas...um dia, enquanto eu estava fora trabalhando...alguns bandidos invadiram minha casa e não satisfeitos com o que roubaram...mataram...minha mãe...minhas duas irmãs e meu irmão...

Mesmo sendo apenas uma lembrança do passado, Youmu estava visualmente perturbado por ter que pensar naquilo:

—Eu larguei meu emprego e descobri que eu tinha um talento bem grande para...cortar coisas. Eu descobri também que meus pais biológicos também eram do mundo de IP e por isso eu tinha acesso a mais de uma classe, o que me ajudou bastante no começo. Eu comecei a trabalhar como caçador de recompensas e não demorou muito para eu encontrar os malditos que mataram minha família. Eu me lembro desse dia todas as manhãs, aquilo foi um presente divino. Deus me deu a oportunidade de tirar aquele peso de minhas costas. E eu aceitei! Eu aceitei sem pensar duas vezes! Agora que eu penso nisso, eu fui bom demais para escumalha como eles. Eu devia ter cortado devagar...sem pressa...eu devia ter feito eles sofrerem mais.

Ele fez outra pausa para se recompor:

—Mas o tempo passou e eu decidi que mataria cada um dos criminosos deste mundo, essa é a minha forma de agradecer deus por ter me dado aquela oportunidade e essa também é a minha missão. -Continuou ele. -Eu decidi que no final disso tudo, depois de ter limpado o mundo destes miseráveis, eu daria um descanso a este corpo e cometeria suicídio. Minhas mãos já estariam manchadas demais de sangue e nesse ponto, eu não seria muito diferente deles. E depois...se eu pudesse me encontrar com a minha família...eu abraçaria a morte com um sorriso no rosto. Essa é a minha história.

O silêncio de um segundo para o outro preencheu tudo. Kurokawa não tinha formas de comentar aquilo e seu pequeno comentário inocente anterior parecia errado agora. Os dois acabaram por adormecer enquanto buscavam algum descanso. Passado algum tempo, no momento em que o sol nasceu, Kurokawa foi acordado com o barulho de alguns passos:

—Olha isso aqui...são os restos de uma fogueira. -Comentou uma voz. -Eles estão por perto...

Ele apenas rosnou para si mesmo:

—Quanta persistência...