Intermittente

Capítulo II


Sasha andava pelo corredor do primeiro andar enquanto segurava uma muda de roupas nas mãos. Era uma blusa branca de botões, uma calça preta e um sobretudo longo da mesma cor com bolsos internos e externos. Esse conjunto de roupas era para Levi Ackerman vestir ao invés da farda de Cavaleiro Real.

Sasha seguia saltitante e cantarolante em direção ao quarto de hóspede agora ocupado por Levi. Ela estava feliz porque Connie invadiu a cozinha e entregou um pedaço de carne para ela como recibo da aposta que fizeram no dia anterior. A aposta era onde Eren Yeager estaria; na árvore ou nos estábulos com Jean Kirstein. Obviamente, a garota venceu.

Sasha chegou em frente a porta e girou a maçaneta enquanto exibia um grande sorriso.

— Bom diAAAAAAAAAAAAH!

Sasha derrubou a roupa no chão ao colocar as duas mãos na boca. Levi Ackerman, ainda vestido com a farda de Cavaleiro Real, estava deitado no chão ao lado da cama. Ele acordou com o grito da garota e sentou-se com uma cara mal-humorada.

— Isso é jeito de acordar alguém? - resmungou Levi, bocejando.

— S-Sinto muito, s-senhor Ackerman! - gaguejou Sasha com o rosto vermelho - Eu pensei que você tivesse mor... mor...

— Eu estou vivo. - retrucou o garoto, esfregando os olhos com as costas das mãos. A sua voz era inexpressiva do jeito que ele foi instruído a manter durante o treinamento - Não está vendo?

— E-Estou vendo agora, sim, s-senhor!

Levi levantou-se enquanto Sasha pegava as roupas do chão de maneira atrapalhada. Ela estendeu o conjunto para o garoto, que franziu a testa sem entender, mas pegou a roupa silenciosamente.

— S-Senhor S-Shadis pediu para usar uma roupa s-sem ser a d-dos Cavaleiros Reais. - explicou Sasha, nervosa - S-Se alguém de fora vie-er para a mansão vai estranhar o porquê tem um ca-cavaleiro numa ca-casa de nobres, já que um Cavaleiro Real é-é exclusivo da Família Real.

"Kenny não tinha comentado sobre isso...", pensou Levi. Era uma informação que nem foi falada durante o treinamento que teve. Talvez foi falado numa das aulas teóricas, mas o garoto se entendiava rápido e provavelmente não prestara atenção no que o instrutor falava. "Eu tive muita sorte de não ter falado para o Eren que sou um Cavaleiro Real, mas um guarda-costas".

— S-Senhor S-Shadis pediu para que o s-senhor fosse até o porão. - informou Sasha, ainda nervosa - O s-senhor Shadis que conversar com o s-senhor.

— Sasha, certo? - falou Levi.

— S-Sim! - afirmou a garota, fazendo uma continência - S-Sasha Braus ao seu dispor, s-senhor!

— Fale normalmente.

Sasha ficou desconcertada.

— P-Perdão, senhor?

— Fale como você falaria com qualquer um no interior. - respondeu Levi, deixando a roupa em cima da cama - Não precisa me chamar de "senhor". Me sinto um velho.

— D-Desculpe, se... - Sasha se interrompeu - Digo... - ela encarou o garoto com um olhar ansioso - E-Eu não sei como te chamar!

— Pelo meu nome. - respondeu o garoto, indiferente.

— L-Levi Ackerman? - falou Sasha.

— Apenas o meu primeiro nome. - resmungou ele um pouco ríspido.

— O-Ok.

— Ah, verdade. - Levi se lembrou de algo - Obrigado pela roupa.

Sasha sorriu largamente.

— Por nada, Levi.

Levi a encarou. Finalmente tinha caído a ficha de que a garota a sua frente era mais nova que ele, assim como as outras três crianças que viviam nessa mansão e serviam o jovem príncipe - Levi deduzira que a terceira criança fosse mais nova também. Como qualquer outra criança, eles ficavam felizes quando recebiam atenção dos outros.

— Por que você tava dormindo no chão? - questionou Sasha com curiosidade - A cama não tá muito boa para você?

Levi ficou surpreso. Para pensar, o que levou o garoto a dormir no chão? Ele não conseguia achar uma resposta de imediato.

Sasha soltou uma risadinha.

— Você é estranho. - comentou com divertimento.

Levi se sentiu ofendido.

— Eu não sou estranho. - resmungou ríspido.

Sasha riu. A discussão teria continuado se a mãe da garota, que era uma empregada adulta, não tivesse aparecido e arrastado a filha para voltar aos seus afazeres de empregada.

Levi suspirou. Ele tinha que manter a calma e o controle, como fora treinado para ser Cavaleiro Real, mas estava perdendo a paciência muito rápido. Se os instrutores do treinamento do Clã Ackerman o visse agora, Levi teria sido repreendido e punido mais de uma vez.

O garoto olhou para a cama, finalmente encontrando a resposta. Foi durante um treinamento longo de sobrevivência, onde os aprenzides tinham que lutar entre si até acabarem gravemente feridos. Quem não conseguisse sobreviver com ferimentos mínimos durante quinze dias era reprovado e punido. Levi teve que dormir várias vezes no piso frio e duro de uma caverna no meio de uma montanha, passando por momentos de fome e hipotermia.

Não era a toa que dormira no chão. Não se sentia confortável com tanto conforto como estava recebendo. Ele recebera um quarto bastante arejado e limpo, uma cama confortável, um armário grande e uma mesa com uma cadeira. E, segundo Keith, o garoto tinha a liberdade de fazer o que quisesse na mansão.

Mas Levi não compreendia bem o que era liberdade.

Balançou a cabeça como estivesse afastando os seus próprios pensamentos da mente. Começou a abrir os fechos da farda para trocar de roupa.

Depois disso, Connie, o jovem empregado, bateu na porta para entregar uma bandeja com um café da manhã pronto para o Cavaleiro Real.

Connie Springer tinha um corpo esguio com olhos castanhos num tom claro que lembravam avelãs. O seu cabelo castanho era levemente raspado, o que lhe dava uma impressão de ser um pouco mais velho e exibia um sorriso animado em seu rosto fino. Vestia uma camisa branca de botões por baixo de um blazer preto, uma calça preta e sapatos de couro.

Ao contrário de Sasha, Connie apenas deu um "bom dia" depois de entregar a bandeja e saiu correndo do quarto como tivesse algo urgente para fazer.

Levi botou a bandeja em cima da mesa, observando o que tinha para comer. Era um prato com baguetes pequenas recheadas com queijo e uma xícara de chá com um líquido escuro dentro. O cheiro dessa bebida misteriosa era forte e lembrava cafeína. Embaixo do pires havia um pequeno papel escrito "chá preto". O garoto levou com hesitação a xícara até a boca para experimentar esse chá que nunca viu em sua vida.

Esse dia foi marcado como o começo do vício de Levi Ackerman pelo chá preto.

Levi saiu do quarto e andou pelo corredor depois de ter terminado o seu café da manhã. Sasha havia dito que o mordomo queria vê-lo no porão, porém o garoto não sabia onde ficava a entrada desse lugar. Então seguiu em direção a escada lateral que dava para o térreo e encontrou Keith em pé ao lado do corrimão junto com Eren Yeager. O Ackerman desceu os degraus sem fazer barulho para não interromper a conversa entre os dois.

O mordomo, Keith Shadis, estava de braços cruzados e lembrava um disciplinador repreendendo um aluno.

— ... por isso entenda de uma vez que você está proibido de ir ao estábulo de novo. - dizia o mordomo - Da última vez você quase caiu de um cavalo! Foi por pouco que Jean conseguiu evitar um acidente.

Eren tinha uma expressão contrariada em seu rosto de traços delicados. O seu cabelo castanho estava bagunçado como se um vento forte tivesse passado há pouco tempo...

— Eu não vou me machucar! - retrucou o garoto.

— Você quase se machucou escorregando no corrimão agora há pouco! - rebateu Keith.

... mas foi por causa de mais um ato de imprudência do jovem príncipe Eren Yeager.

Eren voltou os olhos para a escada e abriu um grande sorriso. Ele subiu dois degraus, onde Levi se encontrava. O garoto de olhos verdes tinha que levantar a cabeça para olhar os outros porque ainda era baixo, o que acabou sendo a alegria interna do Ackerman por um tempo.

— Seu nome é Levi, não é? - o garoto de olhos azuis cinzentos assentiu - Vamos brincar?

Keith bateu uma mão na cara, praguejando palavras inaudíveis enquanto ia para o corredor do lado esquerdo - direção usada como referência a entrada da mansão. Já perdera a paciência de lidar com o jovem príncipe e decidiu voltar ao seu trabalho, deixando o assunto nas mãos do cavaleiro.

Levi manteve a inexpressividade em seu rosto, como fora instruído durante o treinamento do Clã Ackerman.

— Não. - respondeu Levi - Eu sou seu guarda-costas, não uma pessoa para fazer companhia.

"O que é brincar para essa criança?", perguntou ele para si mesmo. "Subir em árvores? Escorregar nos corrimãos de uma escada? Montar em cavalos? Eu não faço ideia, para mim parece impulsivo demais... O que seria brincar, afinal?".

Eren fez uma careta de contrariado.

— Não seja mais o meu guarda-costas! - rebateu.

Levi conteve um suspiro.

— Se eu não for mais o seu guarda-costas, - explicou - eu não poderei mais protegê-lo.

— Eu não ligo! - exclamou Eren irritado - Não quero que me proteja!

Levi colocou as mãos juntas atrás da costas, apertando os dedos para controlar a sua impaciência.

— Então, jovem mestre, - falou com um tom levemente sarcástico- o que você deseja?

— Seja o meu amigo!

Eren falou com um sorriso alegre no rosto e os olhos verdes brilhando. Levi piscou os olhos, soltando inconscientemente as próprias mãos das costas.

— Como? - murmurou Levi, confuso.

Eren franziu a testa, inclinando a cabeça para o lado.

— "Como"? - repetiu - Você não entendeu o que eu quis dizer?

— Bem...

Levi calou-se. Eren encarou o outro por alguns segundos antes de murmurar:

— Você é muito estranho.

— Eu não sou!

Levi lançou um olhar fulminante para o garoto mais novo, que sustentou o seu olhar até exibir um sorriso risonho.

Então o cavaleiro percebeu a sua atitude impulsiva. Sentiu o rosto levemente quente e voltou a sua compustura calma e fria, mas não falou mais nada e desviou os olhos para o lado, evitando de olhar o jovem príncipe nos olhos.

— Até eu sei o que é um amigo. - comentou Eren.

Levi respirou fundo, se controlando, mas ao encarar o garoto, a sua raiva se foi. Eren tinha um sorriso inocente em seu rosto e a sua voz não transpareceu deboche.

— Ter um amigo é muito legal. - exclamou Eren. Os seus olhos brilhavam de forma encantada - Para brincar, para conversar sobre muitas coisas, para jogar xadrez por horas, para montar cavalos, para ler livros e até mesmo para estudar! Ter um amigo é passar todo o tempo possível de forma divertida. E assim, continuar com a amizade para sempre.

Eren falou "para sempre" como se fosse algo maravilhoso.

— Não é legal? - perguntou alegremente - Eu sempre quis ter um amigo.

Eren estendeu a mão para Levi, sorrindo radiante.

— Quer ser meu amigo, Levi?

Levi ficou sem ter o que responder. Ele não compreendia sobre amizade, mas estava impressionado como Eren fazia parecer algo incrível. A visão do jovem príncipe era inocente e pura, como se ter um amigo fosse a coisa mais preciosa que existia. Algo tão abstrato e incerto se tornou repleto de maravilhas com as palavras proferidas por uma criança de oito anos.

Levi não entendia, mas se viu tentado a apertar a mão do garoto a sua frente. Sentia uma enorme vontade de aceitar as palavras inocentes do jovem príncipe. Algo dentro do Ackerman queria fazer parte do mundo puro de Eren Yeager.

Como estivesse hipnotizado, Levi levantou a sua mão lentamente.

A sua missão atual é manter Eren Yeager seguro.

Levi parou no lugar igual a uma estátua.

Se tiver que torturar alguém, torture. Se tiver que prender alguém, prenda. Se tiver que sumir com alguém, suma. Se tiver que matar alguém...

"Mate...".

Levi sentiu-se gelar por dentro quando a memória do teste final do treinamento voltou a sua mente. Abaixou a mão, o que fez Eren ficar confuso.

— O que foi?

Levi não respondeu, apenas recuou um degrau para cima enquanto juntava as mãos atrás das costas. Eren não subiu o degrau, pois ficou olhando para o outro com as sobrancelhas unidas numa mistura de confusão e chateação.

Os dois ficaram se encarando em silêncio por alguns segundos até Eren abrir a boca.

— Não posso.

Porém, Levi sussurrou, interrompendo o que quer que fosse que o jovem príncipe ia falar.

— Por quê? - questionou Eren, ainda confuso - Por que não?

Levi mordeu o lábio inferior, irritado com si mesmo. Não era a sua intenção ter falado essas palavras em voz alta.

— Porque eu sou o seu guarda-costas. - respondeu com firmeza e tentando manter a voz mais inexpressiva possível - Seja amigo da Sasha ou do Connie ou até mesmo desse garoto chamado Jean, mas não de mim.

— Sasha gagueja muito, Connie não é divertido e Jean é... - Eren olhou para cima, pensativo - Ele tem uma cara de cavalo.

A tensão que se acumulava em seu corpo era tanto que Levi quase sorriu de canto diante desse absurdo, porém se sentia ansioso demais até mesmo para pensar num comentário sarcástico.

— Não é a mesma coisa. - rebateu Eren - Eu quero ser o seu amigo!

— Por que eu?

— Porque você é diferente!

Ambos voltaram a se encarar num profundo silêncio que parecia durar a eternidade.

— Eren, pare de perturbar Levi! - falou Keith, surgindo ao pé da escada - Vá para o seu quarto!

Eren lançou um olhar fulminante para o mordomo, mas subiu a escada sem falar nada e nem olhar para trás. Levi observou o jovem príncipe até cruzar o corredor do andar superior.

Keith cruzou braços, franzindo a testa ao olhar para o garoto ainda na escada.

— O que foi que ele disse? - questionou o mordomo, sério. Levi olhou para ele - Você está mais branco que o seu normal.

— Eu...

Levi tornou a olhar para o topo da escada e depois voltou os olhos perdidos para o adulto.

— Ele quer que eu seja amigo dele. - respondeu.

Keith levantou as sobrancelhas, impressionado. Essa foi a primeira vez que o jovem príncipe havia pedido a amizade de alguém.

— E então? - indagou.

Levi abriu a boca para falar, mas calou-se. Esfregou a testa com uma mão ao sentir uma pontada de dor forte por dentro da cabeça.

— Não faz nem um dia que estou nessa mansão e já estou entendendo mais nada. - declarou o garoto com irritação enquanto descia o resto dos degraus - Primeiro a Sasha e agora ele.

"Sasha? O que essa garota fez?", Keith ficou intrigado, mas continuou ouvindo o garoto a sua frente em silêncio.

— Como é que essa criança pode ser assim? - Levi continuou reclamando - Eu não consigo entender nada do que ele fala, mas ao mesmo tempo parece que eu sei o que ele está falando.

Keith sorriu de canto com sarcasmo.

— Sabe o que isso significa? - num segundo, ele ficou sério - Você também é uma criança. Só vai entender certas coisas com o tempo.

Levi estalou a língua num "tsc". Keith virou de costas para ele.

— Anda. - mandou, seguindo para o corredor esquerdo - Tenho que mostrar uma coisa para você.

Ao contrário dos outros corredores da mansão, esse era mais curto e tinha apenas uma porta nos fundos. Keith abriu a porta, revelando o interior de uma cozinha espaçosa e limpa, sem nenhum empregado trabalhando naquele momento. Na lateral direita tinha uma porta que estava trancada com um cadeado.

O mordomo pegou um molho de chaves e retirou uma chave dourada com um formato de cruz, logo entregando para Levi.

— É uma cópia. - explicou quando o garoto pegou a chave - Você vai entender melhor quando chegarmos lá embaixo.

Levi guardou a chave no bolso externo do sobretudo. O mordomo abriu o cadeado com a chave original e empurrou a porta, revelando uma escada de pedra que seguia para baixo. Não havia iluminação nas paredes, mas era possível ver um ponto brilhante no final dos degraus. Os dois desceram em silêncio.

Quando desceu o último degrau, Levi teve que tampar o nariz e a boca temporariamente. A sala subterrânea emitia um forte cheiro de produtos químicos com uma mistura podre de sangue e decomposição que o garoto reconhecia muito bem. Havia duas mesas gigantes nas laterais com vários instrumentos de tortura e produtos de limpeza, assim como aventais limpos esperando para serem usados. No fundos tinha um armário que estava aberto, mostrando um arsenal de espadas, várias armas de tiro, arco e flecha, punhal, facas, chicotes, correntes e outras armas, cada uma mais inacreditável que a outra. E no meio, uma cadeira de madeira com algemas que apresentava indícios de que já fora usadas várias e várias vezes.

Calafrios percorram o corpo do garoto após se lembrar novamente das palavras de Kenny Ackerman. No momento seguinte, também lembrou-se da sua conversa com Eren, sobre o jovem príncipe querer ser amigo do jovem cavaleiro.

Levi esfregou a testa novamente, sentindo outra pontada de dor.

— Volte e meia algum espião de Marley ou algum assassino de aluguel passa ao redor da mansão para saber quem mora aqui dentro. - contou Keith com uma expressão sombria ao encarar Levi - Há boatos pela Corte sobre a traição do Rei Grisha Fritz. Para evitar que a verdade venha a tona é necessário eliminar qualquer evidência.

O mordomo franziu a testa.

— Vamos subir.

Levi não respondeu. Continuava a esfregar a testa com a mão sem conseguir pensar direito, então seguiu Keith. Pelo o que aprendera durante o treinamento era comum os Ackermans sentirem dores de cabeça fortes e repentinas, o que ocorria apenas quando já estavam despertados. O garoto não se recordava como funcionava, mas lembrava-se bem que em nenhum momento despertou o instinto Ackerman.

Havia uma história longa e antiga por trás sobre os Ackermans que Levi não prestara muita atenção durante as aulas teóricas.

Ao chegarem na cozinha, Keith fechou a porta com o cadeado e virou-se com um olhar sério e sombrio para o garoto.

— Não ouse contar sobre isso para ninguém, nem mesmo para os Ackermans. - falou o mordomo gravemente - Sasha, Connie e Jean ainda não sabem o que têm no porão, por isso a porta fica trancada com cadeado. Estou treinando esses três para serem empregados e soldados para protegerem o príncipe.

A imagem dos rostos sorridentes de Sasha e Connie passaram na mente de Levi. Ele ainda não conhecia Jean, mas tinha uma imagem mental de que ele não era diferente dos outros dois.

— Em outras palavras, - murmurou o garoto de olhos azuis cinzentos - você está permitindo que eu tenha acesso ao porão por causa do treinamento que passei, não é?

Keith assentiu com a cabeça.

— Você sabe algo sobre o treinamento do meu Clã? - questionou Levi levemente desconfiado. O mordomo assentiu - Como?

— Através do acordo entre o Rei e Kenny Ackerman.

Levi não conseguiu esconder a surpresa. Keith deu de ombros.

— Eu tinha que saber o mínimo sobre o Clã Ackerman. - explicou o mordomo com indiferença - Não posso deixar um estranho pisar nessa mansão sem saber nada sobre ele, nem mesmo que esse estranho seja uma criança Ackerman. Não posso arriscar ao deixar a segurança do jovem príncipe e dos empregados nas mãos de um incompetente.

— Como chegaram a conclusão de deixar uma criança ser guarda-costas do Eren era algo competente? - perguntou Levi, sarcástico.

Keith olhou com frieza para ele.

— A ideia foi de Grisha e Eren colocou uma condição para aceitar ter um guarda-costas. - contou ele - O guarda-costas deveria ser uma criança próxima da idade dele, fosse mais alta que ele e aparentasse que era bem treinada para se gabar que tem um guarda-costas forte.

"Então, a primeira impressão que Eren teve sobre mim foi uma decepção", pensou Levi, mordendo o interior da bochecha. "Poderia ter sido qualquer outra criança que estava no treinamento junto comigo, mas acabou sendo eu, o oposto do que ele queria... Espera", interrompeu o próprio pensamento. "O quanto esse garoto é mimado?!"

— O Clã Ackerman é conhecido por ser o meio da divisão entre eldianos e maleryanos por prestar qualquer trabalho sujo ou sigiloso para ambos os lados. - continuou Keith, fazendo Levi sair dos devaneios - O Sr.Fritz conhecia Kenny Ackerman, então recorreu um pedido para ele, que recomendou você.

— E ele contou sobre mim. - murmurou Levi, cabisbaixo - Você soube tudo pelo Rei.

— Não sei de tudo, apenas quais são as partes essenciais. - revelou Keith com indiferença - Por exemplo, a parte de que você não é um Ackerman despertado.

Ele semicerrou os olhos.

— Mas parece que eu fui enganado.

— Hã? - o garoto ergueu os olhos - Eu não despertei. Kenny não mentiu.

— A sua dor de cabeça diz o contrário, mas os seus olhos parecem dizer a verdade. - falou o mordomo e ficou em silêncio, pensativo - Por enquanto, eu irei depositar a minha confiança em você, Levi Ackerman.

Keith Shadis saiu da cozinha, deixando Levi sozinho na enorme cozinha vazia.

*

— Cadê o Levi?

Eren fez a pergunta para a empregada Sra.Braus. O garoto estava tomando uma sopa feita com legumes e carnes no salão de jantar da mansão. Ele comia sozinho a na ponta da gigante mesa de doze lugares e a mãe da Sasha estava em pé ao seu lado para fazer companhia.

Eren não havia visto Levi desde a conversa de mais cedo. O seu guarda-costas parecia estar em lugar nenhum e nem mesmo apareceu para o almoço. Acabou sabendo por Connie que o garoto Ackerman estava trancado em seu quarto e queria que ninguém o perturbasse.

A Sra.Braus sorriu levemente.

— O Senhor Ackerman pediu para que não o chamasse para o jantar, jovem mestre. - respondeu ela calmamente.

— Por quê? - perguntou Eren.

— Eu não entrei em mais detalhes, jovem mestre.

— Por quê?

— Porque não é educado perguntar tanto, jovem mestre.

— Por quê?

— Porque não é, jovem mestre.

— Por quê?

— Jovem mestre, por favor, pare de falar e tome a sua sopa inteira antes que esfrie.

— Por quê? Não quero.

— Jovem mestre!

A Sra.Braus colocou as mãos na cintura, revoltada.

— Nós, os cozinheiros, damos muito duro para fazer as comidas deliciosas para os nossos amos. - falou ela com orgulho - O mínimo que eles devem fazer é apreciar uma refeição inteira!

Eren apenas mostrou a língua, deu uma última colherada na sopa e saiu correndo da sala de jantar. Passou pelo corredor do lado direito no térreo - direção usada como referência a porta de entrada da mansão. Subiu a escada, correndo para a porta do guarda-costas, que era a terceira do lado esquerdo. Mais a frente, o quarto do jovem mestre ficava nos fundos do corredor.

Eren parou em frente da porta do quarto de Levi e, quando ia bater, Keith pegou o garoto pela cintura e o colocou por cima do seu ombro. O jovem príncipe começou a se debater inutilmente.

— De onde você surgiu?! Me larga! Me larga, Keith!

— Estava indo te buscar, Eren. - respondeu o mordomo, ignorando os protestos do garoto. Pegou o molho de chaves para abrir a porta do quarto do jovem príncipe - Já está na hora de ir dormir.

— Não quero dormir! - gritou o garoto, socando as costas do adulto - Eu quero ver o Levi!

Eren estendeu o braço, se esticando para alcançar a maçaneta, porém a porta de seu quarto começou a fechar diante de seus olhos, cobrindo aos poucos a visão que tinha do corredor e da terceira porta.

*

O céu estava estrelado e a lua iluminava com a sua luz azulada, e o vento balançava levemente as cortinas da janela do quarto no primeiro andar de uma mansão no meio do campo. Num movimento do balanço do tecido de seda, a silhueta agachada de um homem vestido de preto apareceu no parapeito.

O homem desceu ao chão sem emitir nenhum som, o rosto escondido por uma meia preta que deixava os olhos escuros a mostra. Andou sorrateiramente até a cama de tamanho "king", onde uma pequena criança de cabelo castanho e liso dormia tranquilamente por baixo dos cobertores. Retirou uma faca escondida nas costas por baixo da blusa preta. Ergueu a arma branca acima da cabeça, que emitiu um brilho por causa do luar, pronto para o golpe fatal.

O assassino teve a sua cabeça puxada para trás com um lenço branco numa força e velocidade surreais. A faca caiu no tapete de veludo que cercava a cama, sem fazer barulho. O homem tentou desvencilhar do ataque surpresa, soltando grunhidos raivosos. Recebeu um chute no meio das pernas, que o fez ficar de joelhos e, num segundo, recebeu um chute nas costas, acabando por ficar sem fôlego para debater-se.

Uma presença fria e ameaçadora estava às suas costas, fazendo o assassino suar frio. O dono dessa presença puxou com uma mão o lenço enquanto pressionava a lâmina platinada de uma espada com a mão esquerda.

— Identifique-se.

"Esse voz...", pensou o assassino, incrédulo "É uma criança?!". Virou a cabeça para trás da melhor forma possível e acabou por ver uma metade da criança, mas foi o suficiente para perturbar a sua mente pelo resto da sua vida.

Os olhos frios e penetrantes de Levi Ackerman emitiam um brilho azul claro em suas íris.

— Responda. - sussurrou, afrouxando um pouco o lenço, o suficiente para continuar prendendo o assassino - Quem é você?

O homem de preto levantou os braços em rendição, trêmulo. Conhecia aquele olhar, não tinha como esquecer esse brilho surreal. Já vira esse brilho há muito tempo atrás nos olhos de um homem com chapéu. Por pouco o assassino não escapou das mãos desse cara ameaçador.

Se conseguiu escapar nas mãos de um Ackerman adulto, então conseguiria escapar de uma criança, foi o que o assassinou pensou na hora.

— Sinto muito. - sussurrou num tom falsamente arrependido - Eu não irei invadir mais essa mansão e não contarei sobre essa criança para ninguém. Por favor, não me mate. Eu tenho uma família para cuidar.

Era mentira.

Levi o encarou por alguns segundos. Piscou os olhos, o que fez a sua cor azul cinzenta voltar ao normal.

— Está bem. - sussurrou com indiferença, soltando o lenço e guardando a espada na bainha, por baixo do longo sobretudo preto. As suas mãos estavam cobertas por um par de luvas de couro preto - Suma.

O assassinou levantou-se lentamente, sem fazer barulho para não acordar a criança que dormia na cama. Viu melhor o garoto que o ameaçou e reprimiu o riso, ficando o mais sério possível. Não importava o quanto olhasse para essa criança de olhos azuis cinzentos, ele não chegava perto do 1,30m. Como foi vencido por um garoto tão pequeno? O homem mal conseguia controlar o tremor de seus lábios.

O assassino deu às costas para essa criança e seguiu até a janela, sorrindo maquiavelicamente. Logo, logo estaria indo a caminho da casa do nobre marleyano que o contratou e ganharia um montão de dinheiro desviado pela Polícia Militar de Marley, um dinheiro que passava despercebido pelo comandante e vice-comandantes atuais.

Sim, receberia muita grana suja, mas ainda era grana. Passaria a informação de que os boatos sobre a traição do Rei eram verdadeiros e ganharia muito dinheiro que duraria pelo resto de sua vida. Além do mais, ele tinha um fato muito valioso em mãos.

Uma criança Ackerman foi contratada como Cavaleiro Real do príncipe bastardo.

BAM!

O corpo do assassino caiu no chão logo depois do som ensurdecedor de um tiro disparado por uma pistola. Uma poça vermelha começou a espalhar no chão ao redor da cabeça do cadáver. Levi guardou a pistola no bolso interno do sobretudo.

Eren se remexeu na cama, virando em direção de Levi, que sentou na cama ao seu lado para tampar a visão do outro. O jovem príncipe esfregou os olhos, sonolento. Quando percebeu quem estava ao seu lado, um grande sorriso surgiu em seu rosto.

— Levi! - exclamou Eren com alegria - O que você estava fazendo? Você sumiu.

— Eu não sumi, Eren. - respondeu Levi calmamente - Eu estava em meu quarto, pensando em algumas coisas.

— Pensando em ser meu amigo? - perguntou Eren com os olhos brilhando.

— Também.

— Eba!

Eren sorriu de orelha a orelha, mas logo depois a sua expressão se tornou de medo ao sentar-se na cama, jogando os cobertores para o lado.

— Eu escutei um som horrível. - comentou ele, tremendo - Você sabe o que foi?

Em silêncio, Levi fez o jovem príncipe voltar a deitar-se e cobriu o garoto com os cobertores. Quando voltou a encará-lo, a sua voz era calma:

— Um lobo da montanha, que fica aqui perto, passou pelos jardins. Um dos empregados deu um tiro para assustá-lo.

Eren acalmou-se.

— Por que você está aqui? - perguntou o garoto.

— Para vigiar. - respondeu Levi - Sou o seu guarda-costas.

— Não. - falou Eren, inflando as bochechas numa careta de birra - Você é meu amigo.

— Guarda-costas e seu amigo. - o cavaleiro deu ênfase em "e".

— Então, - murmurou Eren, olhando o outro de forma esperançosa - você não vai mais sumir?

Levi suspirou.

— Eu não sumi e também não vou sumir.

— Mesmo?

— Mesmo.

— Promete?

— Prometo.

— Promete que não vai mais me proteger?

— Isso eu não posso prometer, Eren.

Eren sorriu com uma felicidade inocente e voltou a fechar os olhos, caindo no sono logo em seguida. Levi surpreendeu-se pela rapidez do garoto para dormir. O garoto de olhos azuis cinzentos passou a ter intervalos de insônia após o teste final do treinamento, que era matar um eldiano considerado traidor da Realeza de Marley e, se falhasse, custaria a sua vida por desonrar o Clã.

Mas agora, ele havia matado novamente, mas dessa vez não foi um teste que botava a sua própria vida ao lado da morte e sim, por querer proteger Eren.

O treinamento já tinha acabado.

Um sorriso mínimo passou pelos seus lábios, sentindo como se uma corrente tivesse se desenrolado de seu corpo. E como se essa corrente o soltasse, Levi caiu em cima dos cobertores num sono profundo.