P.O.V Hanna

A pior parte que poemas como a Ilíada deixam de mencionar em suas grandes batalhas é o fato de que é preciso limpar tudo depois, e cada corpo carregado é uma memória sobre o massacre da luta. Não há nada no mundo mais avassalador do que ter um lembrete constante que mais de 100 pessoas morreram, e que não há nada que você possa fazer a respeito. Eu e Nard carregamos o trigésimo sexto campista morto para os buracos que todos no Acampamento estavam cavando, e nenhuma palavra saía de nossas bocas. Não havia nada que pudesse ser comentado, e a dura tarefa de carregar mortos para as valas e ciclopes para as pilhas de lenha tirava nosso foco em qualquer conversa. A atmosfera pesada parecia como se um novo alguém estivesse no comando do lugar, uma presença silenciosa e destrutiva. Até mesmo o Senhor D, que nunca parava de falar, olhava silenciosamente o massacre que ocorreu no local.

Os únicos sons eram os passos pesados, as pás cavando, e os gritos daqueles sendo cuidados pelos médicos. Flower ainda estava inconsciente, e sua respiração parecia instável, mas ela ainda estava viva, mesmo que com uma enorme poça de sangue estivesse ao seu lado. Eu não vi onde Sophie tinha ido, e me tive um receio de que ela estivesse em uma das valas, já que não a vi desde os preparativos para a batalha. Nard estava taciturno, e receei que ele pudesse explodir ou ter um episódio se mais algum choque ocorresse. Enquanto ele tomava alguns comprimidos, percebi que minha audição estava estranha. Não que ela já não fosse estranha por si só, mas eu nunca havia tido um problema enquanto estava com os aparelhos.

Estalei meus dedos perto do meu ouvido, e era notável que o meu ouvido esquerdo estava menos nítido, o que me levou a concluir que os aparelhos deviam ter sido danificados durante a batalha. Uma pergunta que não saía da minha cabeça era “Por que os Deuses não intervieram mais cedo?”. O tanto de mortos e feridos, a tamanha destruição, todo o sangue e tripas poderiam ser evitados se Zeus usasse seu raio mais cedo. Era como eles se deleitavam no nosso sofrimento, e comecei a entender o ódio de Alan por eles.

Após horas e horas de limpeza, o Acampamento parecia levemente mais habitável. Os ciclopes eram só cinzas, e havíamos enterrado a maioria dos nossos mortos. O acampamento continuou em silêncio mortal: não haviam mais risadas, jogos e brincadeiras, o cheiro de morangos estava substituído pelo cheiro de morte, e até o sol parecia estar menos brilhoso. Quando a hora do jantar chegou, as mesas estavam notavelmente mais vazias, e as tochas mais escuras. A comida estava sem gosto e triste, mas pelo menos tive um momento de felicidade ao ver que Sophie ainda estava viva. Se é que você pode considerar a nossa situação atual como viver.

Devido às circunstâncias, a hierarquia normal de cada chalé ficar em uma mesa foi quebrada, e fiquei sentada junto com Nard, Sophie e Raven. Embora ela não quisesse demonstrar, era claro que a Rav tinha chorado muito antes do jantar, visto que o rosto dela estava vermelho e levemente tremendo. Eu não a culpava por se sentir daquela forma, mas parte de mim não conseguia parar de imaginar que ela era parcialmente responsável pela morte de tantas pessoas. Ela parecia pensar o mesmo de si, e ela mal comeu durante todo o jantar. Nem mesmo Lilith, que sempre a seguia, estava presente. Com sorte, ela havia se escondido durante o ataque, embora também fosse possível que os ciclopes tenham a matado.

Na distância, vi uma figura familiar se aproximar, e logo reconheci Flower, que havia uma atadura enorme em sua bochecha. Eu não podia imaginar em quanta dor ela devia estar, mas ao menos ela não expressava sofrimento.

Ela não se deu ao trabalho de pegar comida e simplesmente se sentou na mesa. Considerei perguntar se ela estava bem, mas desisti depois de um tempo, concluindo que seria uma pergunta idiota. Ela acabou sendo a primeira a quebrar o gelo, começando a falar abruptamente

“Odeio ser essa pessoa mas… Acabei de receber uma mensagem do Eve e… O Mevans morreu”, ela disse taciturna, e imediatamente Nard começou a ter um leve tique na perna.

“Aqui não…”, ele disse, quase sussurrando, e não soube dizer se era para Flower ou para as vozes

“Nard…”, tentei o consolar

“AQUI NÃO!”, ele gritou, se levantando em um pulo, fazendo todas as mesas se virarem para o olhar. Ele olhou para todos com uma expressão mista de raiva e medo, e saiu correndo para longe. Olhei para Flower com um olhar duro, e me levantei, vendo ela fazer o mesmo, e Sophie quase caindo ao tentar. Acabamos tendo que a ajudar, e fomos andando na direção onde Nard correu.

Enquanto andávamos, eu digeria o fato de Mevans ter morrido. Cenários horrendos começaram a tocar na minha cabeça, e eu não esperava ter que lidar com a morte de mais uma pessoa que gostávamos. Embora já soubéssemos que alguém tinha “ficado para trás”, era melhor quando não sabíamos quem. Pensei ainda que era possível que ele não tivesse sequer o privilégio de um túmulo. Chacoalhei minha cabeça silenciando os pensamentos, e considerei que Nard devia ter ido para a Cabana de Ares.

Minha previsão se provou certa quando entramos na Cabana escura, revelando Nard encolhido em um dos beliches. Ele tremia e abraçava os joelhos, com lágrimas caindo de seus olhos. Me aproximei cuidadosamente dele, e pedi para que os outros ficassem na porta para não o estressar. Me agachei do lado dele e tentei o abraçar, mas ele me empurrou para o lado. Murmurei em voz baixa nossas 7 palavras, e ele começou a repeti-las também, se acalmando um pouco.

“Minha cabeça tá me matando”, ele disse, secando as lágrimas. “Acho que tomei comprimidos demais”, completou

O abracei e deixei ambas nossas lágrimas descerem como um córrego no chão. Nos abraçamos com a memória daqueles que não mais veríamos novamente. Choramos por Lana, choramos por Hernold, choramos por Rogelio, choramos por Alana e principalmente, choramos por Mevans.