P.O.V Eve

Eu ainda estava um pouco surpreso com o beijo que Nard tinha me dado alguns minutos atrás, no refeitório. Não posso dizer que eu não desejava aquilo por algum tempo, mas ainda sim fui pego desprevenido. Vi Lara chamar ele pouco depois, e aproveitei a chance para escapar dos olhos dele(e que olhos!).

Enquanto eu procurava Zed e Rogelio para me despedir, e enquanto andava pelo Acampamento, ouvi o som de um violino. Era uma melodia bonita, bem tocada e até um pouco hipnotizante. Reconheci “Inverno”, de Vivaldi, que era até um pouco cômico, já que íamos para o Everest.

Sentada em um pedra perto da floresta, estava uma filha de Apolo que eu não conhecia muito bem. Pelo que eu sabia, o nome dela era Flower e que o arco do violino dela virava um arco de verdade, mas nada além disso. Me aproximei, e a música foi lentamente acabada. “Você toca muito bem”, eu disse, sincero. “Eu toco desde que eu tinha uns 12 anos. Eu tinha que tocar escondida, porque o meu padrasto não aprovava, mas era um dos únicos jeitos que eu me sentia realmente ‘livre’”, ela respondeu, com um pequeno tom de tristeza na voz.

Olhei um pouco melhor para suas feições; ela era extremamente pálida, havia um cabelo marrom que ia até a cintura e olhos azuis, grandes e expressivos, porém um pouco tristes. “Eu posso até não ser um ‘especialista’, mas eu entendo ter que passar por uma infância ruim”, respondi, tentando fazê-la sentir-se melhor, mas não pareceu dar muito certo.

“Minha infância foi até relativamente tranquila. O problema foi na adolescência” ela disse, e notei uma certa raiva na voz dela. “Não precisa falar se você não tiver confortável, eu não vou te pressionar”, eu disse, mesmo com uma parte de mim explodindo de curiosidade. “Relaxa, eu até que me orgulho de quando eu saí do armário na frente de todo mundo. O problema foram os 3 anos antes disso”, ela respondeu, o que atiçou ainda mais minha curiosidade. Ela respirou fundo e começou a contar a história dela.

“Bom, desde que minha mãe tava grávida, a gente teve que conviver com o babaca do meu padrasto. Quando eu era pequena, eu até que não percebia quando ele batia na minha mãe. Acho que era porque naquela época, nenhuma de nós duas sabia que eu começaria a questionar meu gênero. Foi mais ou menos no sexto ano quando eu comecei a perceber que eu não me encaixava bem com os ‘os outros meninos’, e aí que as merdas começaram”

“Meu padrasto começou a achar que eu era ‘muito viadinho’ e constantemente tentava me ‘masculinizar’. Ele me forçou a aprender arco e flecha porque eu era ‘muito magrelo pra futebol e muito baixo pra basquete’, o que sinceramente, foi a única coisa útil que ele fez. Minha mãe sabia que eu era ‘diferente’, e até deixava eu ficar com o cabelo grande. Os outros moleques me sacaneavam por causa de um boné que eu usava pra cobrir os cabelos, e eu era bem insegura.”

“Quanto mais eu duvidava da minha identidade, mais babaca Ele foi ficando. Eu constantemente tinha que fazer uns curativos na minha mãe, e em algumas situações, em mim mesma. Como eu disse antes, eu aprendi a tocar violino, que era minha válvula de escape. Uns 2 anos depois, eu estava prestes a tocar em uma apresentação da escola quando ele descobriu que eu tocava. Ele quebrou o arco do meu violino no backstage, e fiquei chorando por quase uma hora.”

“Enquanto eu chorava, um homem chegou perto e me chamou pelo nome. Pelo meu nome CERTO, Flower, ao invés de me chamar de Floyd como todo mundo. Ele disse que ele era o Deus grego Apolo e meu pai verdadeiro. Obviamente, achei que ele era só um pervertido tentando se aproveitar de mim, mas quando ele fez uma bola de luz, de luz SOLAR na mão dele, fiquei encantada. Tipo, meu pai era O DEUS GREGO DA MÚSICA E DO SOL, tá ligado? Ele me deu um vestido roxo, que eu tenho até hoje, e um arco novo”, ela me mostrou o arco do violino dela, que era de um tom marrom e dourado muito bonito, antes de continuar:

“Ele me olhou nos olhos, um pouco emocional, e disse: “Flower, você é muito especial, muito especial mesmo. Vai lá naquele palco e mostra pro mundo que você é. Brilhe’. Eu queria abraçar ele e não soltar mais, aquilo foi a melhor coisa que alguém já tinha dito pra mim. Coloquei o vestido, subi no palco e toquei ‘Primavera’. Foi glorioso”, ela completou.

“Caralho… Deve ter sido muito foda mesmo”, eu respondi, ainda um pouco pasmo com toda a história. Ela deu uma risada curta e respondeu “foi mesmo”, sorrindo. Conversei com ela por alguns minutos, mas infelizmente, me lembrei que tinha que terminar de me arrumar para a missão. Me desculpei e me levantei, indo em direção à Cabana 10.

Olhei com melancolia para as camas simétricas e perfeitamente arrumadas da Cabana. Fiquei com medo de que essa fosse a última vez que eu veria o lugar e comecei a suar um pouco. Afastei o pensamento, mas ele continuou lá, se esgueirando, esperando o melhor momento para me pegar desprevenido.

Cheguei na minha cama, onde todas as minhas roupas estavam dobradas, além dos meus leques. Enquanto colocava as roupas dentro da mochila, olhei umas trẽs camas à esquerda e vi o arco e a aljava novos de Aurora. Sorri um pouco, pensando que pelo menos eu iria com uma irmã. Bom, meia-irmã, mas mesmo assim. Coloquei a mochila nas costas, e fiquei em dúvida se levava o espelho na parede perto da minha cama. A mochila já estava cheia, mas não pensei nisso enquanto via meu reflexo.

Temi estar sendo narcisista demais e me afastei do espelho. Ele teria que esperar. Saí da Cabana, surpreso com o quão mais escuro estava do lado de fora. Nuvens grossas e cinzas se aproximavam rapidamente, e mesmo que não chovesse no Acampamento a não ser que Quíron ou D queiram, ainda era um pouco assustador. Vi Nard na distância, e sorri, me lembrando dos lábios dele nos meus, mesmo que só por aquele breve momento.

Não acho que havia uma pessoa no Acampamento que ele não conhecesse, porque quase sempre que eu o via conversando com uma pessoa diferente.

Me despedi de várias pessoas, e até joguei a “última partida de truco em vida”, com Nick, Nard e Maggie. Fomos em direção à saída, sentindo o cheiro de morangos ficar cada vez mais para trás. Ao chegar na frente da saída, me virei e encarei a paisagem. Observei desde as Cabanas em “U” até o lago e a Casa Grande. Quase chorei de pensar que não veria esse lugar em várias semanas, ou até meses. Respirei fundo, engoli o choro e me virei.