P.O.V Aylee

A comida que Hipólita nos deu era surpreendentemente muito boa. Eu não era muito fã de peixe, mas o ensopado que ela fez era muito bom. Era um pouco estranho tomar ensopado de peixe como café da manhã, mas como quem fez lebre cozida, eu não podia reclamar. Comíamos no convés, com o sol da manhã iluminando a madeira em um tom rosado. Eu me apoiava em uma das paredes, enquanto os outros se sentavam no convés, em círculo. Maggie e Aurora não estavam conosco, e supus que Maggie não pôde andar, e precisou de que Aurora levasse sua comida. Hipólita ia e voltava, trazendo cada vez mais porções de peixe, e eu sinceramente não me importava em comer muito. Não havíamos tido uma refeição decente à um bom tempo, e qualquer coisa que sustentasse era ótimo, então engoli o ensopado com gosto.

Hipólita ofereceu para levar nossos pratos, e mesmo com todos nós oferecendo para levar nós mesmos, ela insistiu e acabou os levando mesmo assim. Enquanto isso, fui para o ponta do convés, onde me apoiei em uma barra metálica em forma de corrimão. Olhei para a imensidão azul, com os raios da manhã causando feixes brancos na água. “A vista nunca cansa, não é?”, disse Nick, se apoiando ao meu lado no corrimão. “A gente pode quase ser assassinado por ciclopes, quase se afogar em uma tempestade e ouvir o Eve reclamando nos jet-skis, que eu não vou enjoar dessa vista. Bom, isso meio que já aconteceu, mas você entendeu”, respondi, sorrindo. Ele sorriu de volta, mas algo estava fora do lugar, ele estava preocupado com alguma coisa.

“O que foi?”, perguntei, colocando meu braço em seu ombro, em consolo. “É a Maggie. A tempestade não fez muito bem pra ela… O machucado parece que infeccionou, e ela tá tendo um surto de hipotermia”, respondeu, e apoiei minha cabeça no ombro que eu apoiava o braço, em um sinal silencioso de consolo, como se eu dissesse “eu tô aqui por você”. “Ela vai ficar bem, cara. Já vi ela lutar contra monstros, Quimeras e o fedor da ferraria. Eu acho que ela aguenta uma flechada na perna”, eu disse, tentando colocá-lo pra cima..

Ficamos em um silêncio agoniante, e batuquei com os dedos no corrimão. Eu era péssima em manter uma conversa fluindo, e sempre ficava envergonhada quando essas pausas aconteciam. “Você sente saudade de casa? Tipo, de antes do Acampamento?”, ele perguntou, cortando o silêncio. “Não sei… E tu? Você tem um irmão mortal, né?”, respondi com uma pergunta, tentando desviar o assunto de mim. Eu realmente não queria falar com ninguém sobre o que tinha acontecido antes. E por mais que ele fosse a pessoa que eu mais confiava no grupo, ainda doía muito falar sobre o passado. Já era ruim o suficiente ver todos os roxos e cortes quando eu me olhava sem camisa pelo espelho, eu não precisava lembrar em detalhes contando à alguém. Pela expressão sutil de Nick, eu notei que ele percebeu minha relutância, mas ao invés de me pressionar, ele fingiu não perceber o desvio e respondeu a pergunta casualmente.

“Por muito tempo, confesso que eu odiava meu irmão. Ele era a lembrança viva do que aquele assaltante tinha feito com minha mãe, e ouvir aquele berreiro do berço à noite era um inferno. Demorou, mas eu finalmente aceitei que não era culpa dele, e passei a tratar ele melhor. Claro que ele tinha 3 anos, então ele não lembra, mas pelo menos estávamos estáveis. Claro que eu nunca entrava nas lojas de brinquedo nos aniversários dele, mas tínhamos uma boa relação. Quando eu tinha 15 anos, Ares se apresentou, para desgosto da minha mãe, e me falou sobre o Acampamento. Ele e mamá brigaram por um bom tempo, mas eventualmente ela me deixou ir com a condição de que eu voltasse todo inverno. Como eu também conhecia a Maggie à um bom tempo, foi muito revigorante saber que ela era filha de Hefesto, e que a gente iria junto pro Acampamento”, respondeu, com o azul do mar refletindo nos seus olhos cinza. “Eu sinto muita saudade dele, principalmente agora”, concluiu.

“Você via seu irmão no Mevans, não é?”, repliquei. Eu ficaria surpresa se ele negasse, todas as ações que ele teve em relação ao Mevans eram algo que dois irmãos fariam. Tudo bem que o Mevans era apaixonado por ele, mas Nick não sabia disso ainda. “De uma certa forma. Ele era tipo a versão mais velha do Terry, que eu tratava parecido. Aí e ele falou que me amava e-”, ele parou de falar, e começou a chorar. Ele nem precisava terminar, e por mais que eu não conhecesse Mevans tão bem, eu ainda fiquei triste com a perda dele. Havíamos passado por tantas situações intensas ultimamente que era só nesses momentos mais calmos em que a ficha caía. Claro, havíamos tido a conversa nos jet-skis, mas além da adrenalina causada pela velocidade, ainda tinha o fato que ele estava com Viren atrás dele, e Vi era ótimo em fazer as pessoas esquecerem de seus problemas.

Deixei ele me abraçar enquanto chorava, e dei uns tapinhas nas suas costas em consolo. Eu não era boa em consolo, então fiquei em silêncio, mas ele entendeu a intenção. “Brigado… Eu precisava falar com alguém…”, ele murmurou, saindo do abraço. Dei um sorriso fraco para ele, e me virei, começando a andar para longe. “Eu tô sempre aqui caso você queira falar”, ele disse quando eu estava na metade do caminho, dando ênfase em “você”. “Algum dia, Nick, algum dia”, respondi desanimadamente. Nem percebi se ele me ouviu ou não, mas continuei andando. Algum dia…

Minha primeira idéia era checar para ver como Maggie estava, mas me conhecendo eu sabia que eu provavelmente ficaria parada olhando a situação, e que não ajudaria em nada. Voltei para a parede que eu estava apoiada, e coloquei um fone no ouvido. Por alguma mágica, o toca-fitas ainda funcionava, mesmo com um chiado constante me irritando. Fechei meus olhos em meio às músicas que eu nem sequer prestava atenção, e me imergi no mundo musical.

Por mais que as coisas estivessem uma bagunça ultimamente, tentei ignorar tudo por um momento, estando simplesmente em um outro plano de existência. Obviamente esse momento não durou muito tempo, mas nesse ponto eu já nem me surpreendia. Alguém chacoalhou meu braço, e ao abrir os olhos, vi que era Hipólita. “Tua amiga dos cachos dourados tá te chamando, e ela tá bem estressada. Sugiro tu ir lá”, ela disse, sem nenhuma cerimônia.

Me levantei, um pouco confusa, e me arrastei para o dormitório, com Hipólita logo atrás de mim. Entrei no minúsculo quarto, e Aurora se virou ao ver eu entrando. Seu rosto brandia uma expressão preocupada, e seus olhos estavam um pouco vermelhos, provavelmente de chorar. “E-ela começou a t-ter f-febre, eu n-não sei o q-que fa-fazer”, ela gaguejou, com a voz falhando. Me aproximei de Maggie, que estava ainda mais pálida que antes, e coloquei minha mão em sua testa. Estava quente, mas menos do que imaginei, o que era um bom sinal.

Ela suava, e seus lábios estavam secos, parecendo rachaduras. “Você deu alguma coisa pra ela? Água, ambrosia, peixe, qualquer coisa?”, perguntei, tentando ficar o mais calma possível. “N-não, ela d-disse q-que não t-tava c-com fome n-nem sede”, ela respondeu, mordendo as unhas da mão. “Traz água, sal e açúcar. Ela tá desidratada e o espaço fechado daqui não ajudou”, repliquei, e ela saiu correndo.

“Por que você não me falou antes?”, perguntei para Hipólita, que ainda se apoiava na porta. “Eu não tinha visto. Ela piorou só agora, ela tava inteirinha de manhã”, respondeu, se aproximando. “Eu não quis falar nada na frente da goldilocks pra ela não entrar em pânico, mas eu acho que essa Hefesto aqui foi envenenada pela flecha”, respondeu, se aproximando da perna de Maggie. “A gente tem nomes, você sabe disso né?”, intervi, um pouco enraivecida.

“Nomes vêm e vão, você aprende a ignorar eles quando se é imortal”, respondeu com desinteresse, enquanto desenrolava a gaze na perna de Maggie. “Bingo”, ela disse, terminando de desenrolar o tecido do ferimento de Maggie. A região estava enruguada e escura, como se tivesse sido queimada, e pequenas linhas verdes parecendo veias cercavam o ferimento. Era extremamente nojento e completamente diferente do que qualquer coisa que eu jamais havia visto.

Nem percebi que Aurora tinha voltado até ela desmaiar no chão atrás de mim, causando um estrondo alto. “Sorte a sua, eu tenho o antídoto aqui, eu só precisava identificar qual o tipo de veneno para não dar o errado para ela”, Hipólita disse, sem esperar uma resposta. Ela saiu, e enquanto esperava, ajudei a colocar o saco de batatas que era Aurora em uma das camas. Ela era bem mais pesada do que imaginei, mas depois de algumas falhas tentativas, finalmente consegui colocá-la na cama perpendicular à de Maggie.

Hipólita voltou com um tubo metálico em mãos, e depois de abrir uma tampa no topo do cilindro, jogou um líquido que havia ali dentro na boca de Maggie. “Agora é só esperar o melhor remédio de todos entrar em ação”, ela disse, guardando o tubo vazio no bolso. “E o que seria isso?”, indaguei, enquanto ela voltava para a porta. “Tempo, minha amiga. Tempo, tempo, tempo”, respondeu.