Aceitar que você tem um problema é o primeiro passo. Leticia havia ouvido aquilo de todos os psiquiatras e terapeutas aos quais sua mãe a havia arrastado. Ela começava contando sobre os pesadelos, depois sobre a angústia que sentia e, quando finalmente sentia-se confortável o suficiente com o médico, contava sobre o que fazia quando ninguém a olhava. Era ai que eles receitavam os remédios e os antidepressivos. Depois eles se despediam com o famoso bordão motivacional e ela nunca mais voltava.

A primeira vez que ela fez, tinha apenas seis anos. A garota caíra em cima do jardim dos fundos de sua casa e, como qualquer criança faria, chorara ao perceber que matara as flores plantadas. A próxima coisa de que ela se lembra é fechar bem os dedos ao redor das pétalas soltas e desejar que elas pudessem viver de novo. Em menos de um minuto, o pequeno canteiro já estava impecável novamente, mesmo sem ninguém tê-lo tocado. Quando ela tinha nove, seu cachorro morrera e, dois anos depois, ele morrera pela segunda vez. Ela não sabia como explicar, ela simplesmente estava triste porque perdera seu melhor amigo e foi visitar o local onde seu pai o enterrara nos fundos da casa. No dia seguinte, seus pais encontraram a terra do túmulo revirada e o cão latindo vigorosamente ao lado. Ela nunca se sentira tão feliz e tão assustada ao mesmo tempo.

O animal não era mais o mesmo, no entanto. Ele não brincava com ela ou corria. Ele vivia, mas não tinha vida. Até que um dia ele parou de comer e acabou morrendo de tristeza. Foi no segundo enterro do seu melhor amigo que ela jurara que nunca mais faria algo igual novamente. As coisas precisavam descansar e a morte era um bem precioso e merecido. Por isso que, quando a diretora dissera que faria com que ela ficasse apenas usando uma palavra, Letícia achou impossível. Nada poderia convencê-la a ficar em um lugar para aprimorar uma coisa que ela preferia apenas esquecer.

A mulher sussurrar o nome de seu antigo bichinho de estimação, porém, não estava nos planos. Ao longo dos anos, controlar-se nos momentos de raiva havia se tornado inviável. A memória do que poderia voltar a acontecer a fez perceber que, por mais que não quisesse, ela precisava de ajuda. Ela não cometeria aquele erro outra vez. A morena havia ficado sem rumo após ser deixada sozinha no cômodo. Seu quarto, antes arrumado meticulosamente para ter todas as coisas que lhe traziam paz, agora estava uma bagunça.

Por horas ela tentou focar em toda a vida ao seu redor. Aquela casa era cercada por árvores, tudo o que ela tinha que fazer era se concentrar na vida que emanava delas. Esse era um exercício que ela aprendera ao longo dos anos. Focar na vida e não na morte. No entanto, sua mente sempre acabava escurecendo. Quantas pessoas já deviam ter morrido naquela casa? Um lugar com tantas pessoas como ela... Alguém já deve ter ao menos cometido um erro. Seria tão fácil devolver a vida que fora tomada. Ela apenas tinha que desejar com bastante convicção...

— Não! — A garota gritou para si mesma massageando as têmporas — Cala a boca! Nunca mais! Eles merecem descansar. Você não tem o direito... Não tem o direito de...

Ela sentiu as pernas fraquejarem e caiu, machucando os joelhos no impacto. Com calma, se arrastou até o canto do quarto e se encolheu abraçando os joelhos. As lágrimas desciam quentes pelas suas bochechas e ela não tentou contê-las. O quarto todo estava abafado e ela sentia os membros ficarem dormentes, mas não se atreveu a levantar. O que ela fizera para nascer assim? Ela não era boa o suficiente para ser normal?

— Hey Leticia. — Uma batida na porta e o sotaque forte da garota do outro lado interromperam seu monólogo — O almoço está sendo servido lá em baixo. Eu pensei que talvez você quisesse companhia?

A mais velha sentiu a boca do estomago revirar. Ela não havia comido quase nada na última semana, apenas o suficiente para não desmaiar, na verdade. O pensamento de comer uma refeição de verdade ao lado da outra garota era um alívio em sua mente esgotada. Ela sacudiu a cabeça. Não! Ela não podia se dar ao luxo de coisas como essas. Ela tinha que se manter longe deles. Ela podia machuca-los e, Deus, ela nunca se perdoaria se isso acontecesse por conta de um capricho.

— Você está ai? — A garota atrás da porta questionou.

— Eu... — Ela engoliu as lagrimas e tentou fazer com que sua voz não soasse patética — Não estou com fome. — Mentiu — Apenas me deixe em paz.

— Tem certeza? A próxima refeição é só daqui a horas. — Ela fez uma pausa e suspirou — Foi algo que eu disse? Olha, se você não quiser ir comigo...

— Não! — A morena se apressou em dizer, não querendo que a outra pensasse que tinha algo a ver com o isolamento dela — Eu apenas realmente não estou com fome.

— Tudo bem então. — A ruiva pareceu comprar a desculpa — Vejo você mais tarde.

Ela esperou para ter certeza de que a outra já havia se afastado da porta e voltou a tremer. Quando as lágrimas começaram cair, um dos vasos decorativos de sua janela veio ao seu encontro e se estraçalhou ao seu lado. A pequena flor cor de rosa antes plantada ali agora estava amassada e com o talo quebrado. Seu coração apertou. Após relutar muito, acabou a acolhendo delicadamente em sua mão.

— Desculpe. — Sussurrou — Eu não queria ter te machucado. Eu não pude controlar.

A flor não respondeu; em vez disso, se contorceu na palma da mão da menina como uma corrente de calor emanando até alcançar cada fibra do corpo. Ela podia sentir as moléculas do pequeno ser vivo mudarem até que a planta estava nova em folha. Suspirou se amaldiçoando internamente. Ela não podia controlar os poderes. Do que adiantava poder consertar as coisas se ela era o motivo delas se quebrarem? Ela ficou ali pelo que pareceram horas, mas foram apenas alguns minutos. Abria e fechava a mão sentindo cada átomo da flor se modificar de acordo com o que ela queria. No entanto ela nunca conseguia devolver o descanso para aqueles que ela revivia. Podia oferecer uma pseudo-vida, mas não podia tira-la. Que tipo de castigo cruel era aquele?

Foi enquanto pensava nisso que ela reparou na porta aberta e as duas garotas paradas encarando-a surpresas. Seu sofrimento rapidamente passou para vergonha e então raiva. Elas não podiam vê-la daquela forma. Ela não podia ser tão patética assim ou tudo o que receberia em troca seria pena. A morena levantou rápido com os punhos cerrados e o rosto virado tentando esconder as marcas que as lágrimas deixaram.

— O que vocês querem? — Disse entredentes — Já disse que não estou com fome.

— Por que será que eu não acredito em você? — Camila revirou os olhos e caminhou até a amiga, mas esta apenas recuou o mesmo número de passos que a outra avançara — Você não pode fugir toda vez que ficar nervosa. Eu não vou deixar você ficar se isolando de novo e nem tentar se matar de inanição. Nós vamos descer, almoçar e então você vai tentar se adequar a situação. Entendeu?

— Ah é? E posso saber quem vai me obrigar? — Bufou — Eu não estou fugindo de nada. Eu só não estou com fome! Será que eu não posso nem ao menos ficar um pouco em paz?

— Você está ouvindo o que tá dizendo? Eu posso não te conhecer tanto quanto a Camy, mas eu sei o suficiente pra saber que você está evitando esse lugar! Não fazer amigos não vai fazer com que isso seja mais fácil!

Antes que pudesse responder, a do meio sentiu uma mão apertar a sua fazendo uma onda de calor subir por todo o seu corpo. A mais nova das três, que até agora não havia falado uma só palavra, parou no meio das outras duas e sorriu como se entendesse o que a morena sentia. Ela a puxou levemente em direção a saída e, estranhamente, Leticia não resistiu.

— É só um almoço. — A ruiva disse dando de ombros — Qual o pior que pode acontecer?

— Eu... Hãn, o quê? — Ela gaguejou corando e fazendo Camila juntar as sobrancelhas, confusa. Ela nunca vira a amiga sem palavras desse jeito. Normalmente ela começaria a fazer comentários sarcásticos e não a ficar tímida. A mais velha então focou toda a sua atenção na interação das outras duas, decidida a encontrar qualquer detalhe que explicasse a reação.

— Eu sei que pode ser um pouco frus... Hãn, frustrante? — Ela se embolou um pouco com a última palavra, mas sorriu quando conseguiu pronunciar quase sem problemas — Mas podemos fingir que é só um almoço. Eu garanto que não vai ter nada de esquisito. Vamos só almoçar como um grupo de adolescentes normais. Acha que pode fazer isso?

— Eu, é... Talvez. Acho que sim. — Ela franziu o cenho — Eu só...

— Ótimo! — A mais nova interrompeu — É uma boa forma de você me contar um pouco mais sobre essa sua obsessão — Ela apontou para os pôsteres de filmes de ficção cientifica presos na parede — Eu também adoro Star Wars por falar nisso.

— Você quer que eu, digo, almoçar com vocês? — As frases saiam desconexas e Camila, incrédula com a cena, alternava o olhar entre as duas, as sobrancelhas agora erguidas conforme ela criava suas suspeitas do motivo. Ah, isso ia ser interessante — Hãn, tudo bem então. Acho que não tem problema.

A ruiva sorriu e guiou a outra garota para a saída do quarto sendo seguida pela mais velha. Camila conteve um sorriso aliviado, forçando-se a controlar o lado shipper e lembrar-se que aquela mudança tinha acabado de acontecer e ela podia estar apenas lendo em entrelinhas que não existiam. Ela só torcia para que a mudança fosse permanente e, se fosse, precisaria agradecer Sarah. Se tudo o que Leticia precisava para deixar de se isolar era a ajuda de uma garota qualquer, quem era ela para se colocar no caminho? Ao contrário, ela seria a primeira a incentivar a aproximação das duas e observar de perto o resultado...

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.