Camila não aguentava mais subir as escadas. Não que fossem tantos andares assim, mas, com toda essa historia de poderes sobrenaturais, por que ninguém pensou em fazer um elevador mágico? Ou mesmo um elevador normal, pelo amor de deus. Ela vira as duas amigas desaparecerem uma por uma nos andares de baixo e agora que finalmente Thomas a puxara para um corredor ela se perguntava por que não tivera a sorte de ter um quarto mais perto do térreo.

— Você sobe isso aqui todo dia? — Ela perguntou ofegante atraindo um par de olhos turquesa para a sua direção.

— Acredite, eu prefiro mil vezes ter que subir escadas do que ficar nos quartos perto da sala de treinamento. — Riu — Você não conseguiria fechar o olho sem ouvir o som de algo explodindo.

— Então vocês são bruxos que podem fazer o que quiserem menos ter um elevador ou uma sala com isolamento acústico? Fantástico.

— Você é sempre sarcástica assim ou é algo pessoal?

— Desculpe. — A garota suspirou — Hoje só não está sendo um bom dia.

— Sem problemas. Eu mal posso imaginar como deve ser pra vocês. Um dia ser um adolescente normal estudando para uma prova de cálculo e no outro estar aqui. Deve ser enlouquecedor.

— Enlouquecedor é a palavra. Como foi pra você?

— Como foi o que?

— Descobrir isso tudo. Você também já deve ter sido um “adolescente normal”. Quando te contaram?

— Ah, bem — Ele esfregou a parte de trás do pescoço corando levemente — Eu já te disse. Meu pai era como nós. Mais poderoso do que qualquer um de nós, na verdade. Minha mãe morreu no meu parto então sempre fomos somente eu e ele. Nunca houve necessidade de esconder a verdade. Então acho que eu nunca tive que passar por toda essa coisa de vocês.

— Wow. Eu não posso imaginar como deve ser crescer sabendo de tudo isso. Sabe, sem poder contar pra ninguém, sabendo de um mundo que as outras pessoas nem imaginam.

— Ah não era tão ruim assim. Eu fiz alguns amigos normais, estudei em uma escola publica até os 15 anos, sai com garotas, essas coisas. A única diferença é que, em vez de me dar uma bola de futebol de aniversário, meu pai me dava livros sobre como criar venenos mortais em sete passos.

— Seu pai parece ser legal. Por que não mora com ele? Quero dizer, se eu tivesse a opção de aprender tudo isso em casa, eu estaria agora bem longe daqui. — A expressão do garoto pareceu murchar aos poucos.

— Eu também. Ele morreu dois anos atrás. Foi por isso que eu deixei de ir à minha escola normal e passei a morar aqui. Isso na verdade é bem comum entre nós. A maioria ou não conheceu os pais ou não se da bem com eles. Eu tive sorte por viver 15 anos com ele.

— Eu sinto muito. — Camila disse e esticou o braço para encostar no ombro do garoto — Deve ter sido complicado.

— Ele me alertou. Sabia que ia morrer na guerra então me trouxe para cá. Ele me apresentou à Lana, que era uma antiga amiga dele, e me preparou para como a vida seria depois que ele fosse. Ele era parte de uma missão suicida, mas, graças a ela, nós ganhamos a guerra. Eu me orgulho muito disso.

— Guerra? Dois anos atrás? Como é que eu não ouvi falar disso?

— Ah, nós sabemos esconder bem os problemas do resto dos humanos. Muitas das suas batalhas têm origem mágica, mas eles nem ao menos percebem. Gravrilo Princip e Franz Ferdinand eram dois bruxos de clãs inimigos. É claro que as pessoas preferiram inventar uma historia boba de conquista de territórios ou algo assim. Os humanos sempre tiram toda a diversão das coisas.

— Espera, você tá tentando me dizer que a Primeira Guerra Mundial foi uma guerra mágica? E que o arquiduque era na verdade um bruxo? Você só pode estar brincando! – Exclamou incrédula.

— Eu juro! Ou você achava que aquela historia de cianeto vencido, granada jogada antes do tempo e carruagem tomando o caminho errado era verdade? Claro, porque um cara pode estar casualmente comendo um sanduiche quando, por mero acaso, seu alvo aparece por perto e ele tem uma arma! Tudo aquilo foi friamente calculado. Princip era um bruxo e tanto!

— Você não pode está falando sério! E quanto a Hitler?

— O que tem ele? — O garoto pareceu confuso.

— Ele também era um bruxo?

— Ah, não! Aquele cara era realmente apenas um maníaco babaca. — Ele fez uma careta — Alguns bruxos podem até ser psicopatas, mas não a esse ponto! Nós temos princípios morais, sabia?

— Inacreditável. — A garota gargalhou.

Depois de mais algum tempo andando, os dois pararam em frente à porta que Thomas informou ser do quarto dela. Uma lua crescente adornava o centro da porta e a fechadura. A chave que o garoto a estendeu era prata e brilhante. Quando ela abriu a porta, o cordão queimou feliz como se sentisse confortável com a nova casa. Na realidade, a própria Camila estava extremamente confortável com o quarto. A cama era prateada e o cômodo possuía uma porta de vidro que dava para uma pequena sacada. Suas roupas estavam impecáveis dentro do armário marrom claro e, em uma das paredes, fotos suas com sua família e amigos cobriam-na por inteiro. Era tão parecido, mas ao mesmo tempo tão diferente do seu antigo quarto que a garota suspirou preguiçosamente. Ela estava em casa.

— Legal né? — O garoto disse enquanto examinava os livros que a estante do quarto possuía — Nunca ouvi falar desses. — Ele puxou um dos livros da prateleira e mostrou a capa para ela.

— Como? — O livro era um dos mais grossos e a capa exibia uma lista de nomes, como se o índice estivesse por fora.

— Bite me, Summertime, A Garota da Porta Vermelha, Walk a Mile, Hard Road. — O garoto começou a recitar os nomes fazendo-a corar fortemente — Nunca li nenhum deles. Acha que pode me emprestar um dia desses?

— Não! — Camila quase gritou arrancando o livro da mão do mais alto — Quer dizer, eu não acho que você vá gostar deles. — O garoto ia abrir a boca para protestar, mas ela o interrompeu — Não! Sério. Fique longe desse livro. Eu falo isso pro seu próprio bem. — Ela o colocou de volta na estante. Como que eles conseguiram uma copia impressa disso?

— Tudo bem então. — Ele riu meio sem jeito e voltou seu olhar para os DVDs — Espera, você gosta de Doctor Who?

— Hãn? Ah, sim. Eu ainda to nas primeiras temporadas. Deus, nem quero imaginar quando ele se regenerar de novo!

— Olha, por favor, não interprete mal, mas, se você quiser alguém pra assistir com você... Eu prometo me controlar com os spoilers! — Riu — Como nós não temos atividades até amanha, nós podíamos ver alguns episódios.

— Ah, sabe, eu adoraria, mas acho que preciso de um tempo para arrumar as minhas coisas e descansar. O dia foi bem puxado.

— Oh, tudo bem. — Ele pareceu decepcionado, mas sorriu de lado ajeitando os óculos — Foi só uma ideia. Eu acho que já vou indo então.

O garoto saiu pela porta, fechando-a com delicadeza. Camila ficou parada no centro do quarto, confusa. O que tinha de errado com ela? Ela não sabia exatamente porque havia recusado o pedido. Thomas parecia ser um cara legal e havia sido gentil o suficiente para convida-la para assistir alguns episódios de sua série favorita, mesmo ela tendo o chamado de louco e, indiretamente, até mesmo de aberração diversas vezes naquele dia. Sem perder tempo ela suspirou e saiu do quarto, andando rapidamente pelo corredor até alcançar o garoto.

— Hey, espera! — Ela disse meio sem folego se apoiando no braço dele — Eu realmente estou bem cansada agora, mas não passou nem da hora do almoço ainda. Se a proposta estiver de pé, — A garota trocou o peso do corpo de lado — Quem sabe mais tarde a gente não possa ver um pouco da série?

— Sério? — O rosto dele se iluminou — Claro! É, depois do almoço então? Ele deve ser servido daqui a umas três horas. — Ele conferiu o relógio em seu pulso.

— Certo. Até daqui a pouco? — Ele concordou sorrindo animadamente — Então está marcado.

Ela deixou o garoto sorrindo bobamente no corredor e voltou em direção ao seu quarto. Assim que entrou, trancou a porta e se jogou deitada na cama. É, talvez aquele lugar não fosse tão ruim assim.