Depois de quase matar Matt na tentativa de ajudá-lo, descobrir que teríamos que fazer Helô e Marcy se darem bem, e assistir a distância uma briga por causa do coração partido de Cass, eu estava pronta para me aposentar da vida de semideusa para sempre, e o teria feito se pudesse. Eu havia passado meus anos com tranquilidade – nem tanta, mas comparado à vida no acampamento, o que eu tinha antes era tranquilidade absoluta -, e agora, bem, agora eu estava na minha cama tentando dormir enquanto algo na minha cabeça dizia “você devia ter feito algo, Matt não precisava ter se machucado”. Resolvi que ia me desculpar com ele e me concentrei pra dormir.

Faltavam duas horas para o café da manhã quando acordei, sobressaltada. Ótimo, agora esse pesadelo também ia me perseguir, como se a culpa pelo Matt e as brigas da Helô e da Marcy não fossem suficientes. Eu detesto problemas, gosto das minhas coisas arrumadas e discretas, e sinceramente, meus novos amigos chamam MUITA atenção em tudo que fazem.

Resolvi tomar um banho gelado pra afastar os pensamentos ruins, mas eu tinha uma sensação que aquilo não era nem o começo do final da vida de tranquilidade que eu tinha. Depois de me banhar, e tentar me arrumar o melhor e menos escandalosa possível – o que era difícil, porque eu nunca fui nem um pouco vaidosa, mas todas as meninas do acampamento eram muito superiores a mim no quesito beleza, e a única coisa que eu tinha de bom era meu cabelo ruivo, mas ele era muito chamativo, portanto eu não gostava dele –, tornei a subir no beliche, por pouco não acordando Alicia, que dormia bem embaixo de mim. Reparei em uma mochila sob meu travesseiro e por um momento me perguntei se deveria abri-la. Sim, decidi que era o certo a fazer, então, dois minutos depois eu me encontrava observando um pedaço de pano, uma pequena coleção de poções, um saquinho com dracmas e um bilhete. Segurei com mãos tremulas o pedaço de papel, senti uma essência suave e misteriosa, quando abri ele, observei com cautela a letra.... da tia Tereza?! Corri os olhos pelo bilhete, que dizia:

“Ana

Meu tempo te protegendo acabou. Não posso te ajudar enquanto estiver no acampamento. Isso é tudo que posso te oferecer agora, e devo te contar que estás destinada a feitos grandiosos, mesmo que desastres te persigam, a sorte caminha ao teu lado. Até porque, se não caminhasse, agora, você estaria morta! Hm, apenas não ignore o medo, ele é seu maior inimigo, e é seu dever enfrentá-lo. Você tem um papel importante a desempenhar, seus amigos irão precisar de você em algum momento muito próximo, espero que estejas pronta.

Com amor, ma Trívia.”

Quem diabos era Trívia? Por que ela tinha a mesma caligrafia que tia Tereza? O que seriam “feitos grandiosos”? E medo? Ok, isso estava estranho. Senti como se meu cérebro houvesse decidido dançar Macarena e Ragatanga ao mesmo tempo e estivesse derretendo no processo. Então, observei o pedaço de pano com atenção. Era um tipo de capa, mas sustentava uma aura roxa, que ficava bastante bonita em contraste com o tecido preto. Então, percebi um par de olhos me observando. Na beliche defronte ao meu, Chris me encarava com um olhar de desentendimento. Arregalei os olhos, surpresa, e guardei tudo na mochila.

– Me desculpe, ainda não me acostumei com você por aqui, digo... Ben era um bom amigo e um ótimo líder, a ideia de ter perdido ele... – E se calou quando eu o interrompi.

– Tudo bem... E sinto muito pelo Ben.

– Não faz mal, já me acostumei.

– Se acostumou com o quê? – Perguntei, não tinha certeza se queria saber a resposta.

– Me acostumei a perder quem amo. – Ele sussurrou fitando o chão.

Engoli em seco.

– E quem você ama? – Ele mordeu o lábio e suspirou, então me encarou e formou com os lábios, sem som, o nome. Matt.

Ai, essa doeu. O fato de Chris gostar do Matt, isso me parecia tanto um amor não-correspondido e impossível. Então me ocorreu algo, talvez Chris confiasse em mim, e se fosse o caso, eu podia confiar nele.

– Mais alguém sabe que você sente isso? – Ele balançou a cabeça em sinal de negação.

– Só o Ben sabia, ele era meu melhor amigo, você me lembra muito ele, e algo me diz que posso confiar, hm... Eu posso, não é?

– Só se eu puder confiar em você. – O sorriso dele se abriu e ele assentiu com a cabeça. – Ok, bem, eu acabei de receber uma encomenda especial de uma desconhecida que tem a caligrafia da minha tia, e que me escreveu um bilhete que está me incomodando bastante, e eu preciso de um abraço, posso confiar em você? – Disparei fitando o chão, mas terminei por encarar meu irmão. Ele desceu do próprio beliche e caminhou até o meu, estendeu a mão para me ajudar a descer também, e quando o fiz, ele me ergueu no ar e me envolveu em um abraço de urso; quando voltei ao chão, estava meio tonta, ele riu e me olhou com aqueles olhos azuis.

– Obrigada. – Sorri pra ele. – Agora, pode me ajudar a acordar os outros?

Uma hora depois, o chalé vinte se encaminhava para o refeitório. Eu recitei rapidamente o nome dos meus cinco irmãos para provar pra Alicia que minha memória não era tão ruim. No caminho, vi Matt sentado em uma rocha levemente alta, ele fazia alguns ramos de algo que eu não reconheci crescerem aos seus pés lentamente. Pedi que meus irmãos fossem tomar café, e me aproximei de Matt, me sentando ao seu lado.

– Hm, acho que te devo desculpas, você quase morreu por minha causa e... – Ele me interrompeu levantando a mão, um leve sorriso se desenhou em seus lábios.

– Não foi sua culpa, então não precisa pedir perdão.

– Obrigada, mas ainda assim, o que posso fazer para me redimir?

Nesse momento. Marc, o amigo de Helô, passou por nós, ele e Matt se encararam por um momento, qualquer um perceberia a malícia no olhar de Marc, porém Matt era um zilhão de vezes mais discreto. Quando ele foi embora, olhei para meu amigo e sorri abertamente.

– O que foi isso? – Perguntei animada.

– Hm, nada. – Ele sorriu travesso.

– Matt, seu safadinho, qual o seu lance com o filho de Zeus? Ele é amigo da Helô, ein! – Ele sorriu de novo. Da mesma maneira. Ai meus deuses.

– Nada, somos só amigos. – Percebi que ele tentava conter o riso.

– Ei, não minta pra mim! – Sorri. – Olha, se ele fizer com você o que fez com a Cass, juro que esgano aquele magricela.

– Tudo bem. – Ele ergueu os braços em sinal de rendição.

– Espera, Helô sabe disso? – Sorri travessa.

– Não, e não vai saber.

– Será? – Ri bastante alto e corri até o refeitório.

Quando cheguei lá, a cena era... Diferente do que eu imaginei. Em uma mesa afastada, que havia sido colocada ali recentemente por Quíron, estavam sentadas Helô e Marcy. Elas estavam comendo, lado a lado, protegendo a comida com um braço cada uma, e se lançando olhares de ódio. Pareciam duas crianças que não queriam dividir seu pedaço de bolo. Olhei pra Matt e percebi que ele pensava o mesmo, me permiti rir da cena, e Matt também o fez. Logo depois, fomos até a mesa. Era pequena, para seis pessoas, eu e Matt nos sentamos na frente de Marcy e Helô.

– Como se sentem? – Perguntei.

– Eu estou presa a ela, como acha que eu me sinto? – Marcy respondeu dando um grande olhar de desprezo para Helô.

– Hm, ok. Eu pensei um jeito de vocês não se matarem enquanto tentam ser... amigas.

As duas se encararam por um momento enquanto Peter se sentava na cabeceira da mesa, nos observando.

– E qual seria o plano brilhante, bruxinha?

– Primeiro, não é só porque você é bonito que pode me chamar assim, eu ainda tenho dignidade, e tenho um nome também. Segundo, odeio diminutivos, se for mesmo me chamar assim, me chama de bruxa, bruxinha NÃO. Mas, é o seguinte, a todo momento um de nós tem que estar com elas. E sempre que possível, todos. Assim, além de ter alguém pra separar as brigas, fica mais simples para que as duas consigam se entender. Eu acho. E agora, se puderem me dar licença, não estou com fome, vou dar uma volta, se quiserem fazer o que sugeri, me avisem, estou pronta para ajudar. – Sorri suavemente, me levantei e saí caminhando até a praia, no caminho fui pensando no quanto eu tinha sido grossa e me perguntei por que eu tinha agido assim. Me lembrei das palavras no bilhete de Trívia, “o medo, ele é seu maior inimigo”, mas medo do Peter? Ridículo, totalmente ridículo. E se eu não estivesse com medo dele? Mas, sim, medo de agir errado quanto a ele e todos os outros amigos que eu tinha acabado de conquistar. Não, pensei, eu não tenho medo. Nunca tive, e não vou ter agora, principalmente medo de algo tão banal.

Depois de um tempo, encontrei Helô e Marcy treinando com Matt observando as duas. A partir daí, passei o dia com elas. Durante a noite, Matt se ofereceu para passar a noite no mini-chalé que o cavalomano - sim, eu ainda o chamo dessa maneira - havia arranjado para as garotas. Chris iria ajudar, e por um momento desejei em silêncio que ele tivesse uma boa conversa com Matt; depois de desejar uma boa noite a eles, retornei ao meu chalé e dormi facilmente.

Quando acordei, eram mais ou menos cinco horas da manhã. Pesadelo. De novo. Saí do chalé em silêncio e caminhei até a praia; por algum motivo, aquele lugar me fazia bem, me acalmava. Sentei-me na areia fria e fiquei observando o mar, totalmente imersa em pensamentos, até que uma voz me fez voltar à realidade.

– Ana? – Era Peter. Droga, entre todas as pessoas que podiam estar ali, tinha que ser justo a que eu havia tratado mal o dia todo.

– Oi Peter – Disse em tom amargo. – Vejo que aprendeu meu nome.

– Então, não consegue dormir, bruxinha? – Trinquei os dentes.

– Não.

– Pesadelos?

– Exatamente.

– Quer me contar?

– Não, eu não quero, mas, hm, acho que já fui bastante grossa com você pelos próximos dez anos, então, vou te contar. Começa com.. monstros torturando meu pai, de várias maneiras diferentes, e depois vem uma mulher, e tenta salvá-lo, e então tudo fica nublado... E eu vejo a mim, Helô, Marcy, Matt e você seguindo por um túnel mal iluminado. Então as luzes apagam, e quando tornam a acender, você e Matt sumiram. E então, as meninas se abraçam, e seguem pelo túnel, e ele se divide em dois. Elas me perguntam por onde seguir, mas eu não sei o caminho. Então, as luzem se apagam mais uma vez, e quando acendem dessa vez, eu estou sozinha. É disso que eu me lembro. O que me dói é que por muito tempo eu não tive uma família, e agora, no acampamento, vocês são minha família. Não quero perder vocês. Nenhum de vocês. – Suspirei. – Quando eu vou ser intitulada louca mesmo?

– Ei, não vai acontecer nada... E você já é intitulada louca, todos somos.

Então, ele me abraçou.

– Acho que você deveria procurar Rachel.

– Não vou, sozinha, sair procurando uma garota que pode ser possuída a qualquer momento.

– Ótimo, eu vou junto. – Lancei a ele um olhar esperando que fosse piada. Mas não era, então, depois de aguentar aqueles olhos me encarando por alguns longos e demorados segundos, cedi.

– Tudo bem, mas não quero que ninguém saiba, então, vamos durante a noite. – Disse me levantando da areia. – Odeio chamar atenção.

– Combinado. E agora, deveríamos voltar para os chalés, logo vai amanhecer.

– Hm, por que não acordar nossas amiguinhas? – Com um sorriso travesso, exibi a chave do chalé delas.

– Ai meus deuses, onde você arranjou isso?

– Segredo!

Fomos até o mini-chalé, que era mobiliado por dois beliches, uma cama de casal, duas escrivaninhas e tinha um banheiro. Tudo que um semideus podia querer. Na cama de casal, Helô e Marcy dormiam, ambas quase caindo no chão, em uma tentativa vã de se manterem o mais afastadas possível - só agora eu reparei em um tipo de corrente mágica que prendia uma à outra e que provavelmente só se soltava quando elas precisavam ir ao banheiro -, em um beliche Matt roncava e Chris estava dormindo no outro. Acordamos todos, com exceção do Chris, eu precisava falar com ele. Estava sentada na cama ao seu lado quando beijei sua testa e acariciei seus cabelos loiros. Quando ele abriu aqueles olhos azuis, eu pensei “legal, meu irmão é um deus grego”.

– Bom dia, bruxinho. – Sorri. – Esse apelido é ruim, não?

– Horrível. – Ele riu.

– Dormiu bem?

– Incrivelmente bem.

– Posso saber o motivo?

– Eu conversei com Matt... Ele me contou uma historinha.

– Hm, posso ouvi-la?

– Claro. É o seguinte. Marc queria saber como seria beijar um garoto. De alguma maneira, Matt sabia que eu gosto dele, e Marc, de algum jeito, também sabia disso. Então, alguém do nosso chalé ajudou Marc a ficar idêntico a mim, mas esse feitiço só durava algumas horas. Então, depois de Marc fazer a maior palhaçada, Matt achou que era eu e beijou ele. Só que no meio do beijo, Marc voltou a ser Marc. Eu contei de um jeito meio confuso, mas acho que deu pra entender. Então, eu beijei o Matt, ontem, de verdade. E agora, o Marc é bissexual, só que somente eu, você e o Matt sabemos disso, o que acha?

– Ai meus deuses! Por Trívia! Eu não acredito!

– Pode acreditar. – Ele sorriu por um momento, mas esse sorriso logo se desfez. – Espera... Trívia?

– Ahn, desculpa, eu disse Trívia? Que estranho. Hm... você sabe quem é ela?

– Trívia é um tipo de versão romana da nossa mãe.

– Oh, agora tudo faz sentido.

– O que faz sentido?

– Outra hora eu te conto.

– Hm, agora eu preciso tomar banho. – Ele beijou minha bochecha. – Te vejo no refeitório, irmãzinha.

O que se seguiu foi um dia separando brigas, as coisas iam bem, até que Chris veio falar comigo.

– Irmãzinha, descobrimos que Ben não morreu por causa de monstros.

– Como assim?

– O antigo líder do chalé vinte, meu melhor amigo e irmão, foi assassinado.

– Quem fez isso?

– Excelente pergunta. Eu adoraria te contar, porém, não sabemos ainda. Mas juro pela minha vida que quando descobrirmos o culpado, vou me livrar dele com as minhas próprias mãos.

– Não, não vai, não quero que Quíron comece a fazer vista grossa com o nosso chalé. Não se meta em nenhuma confusão, prometo que vou resolver isso com honra.

Quando a noite chegou, fui procurar Peter, vestia a capa de Trívia, com roupas igualmente pretas por baixo. Enquanto eu procurava ele, é lógico que eu consegui fazer bobagem, e no final quem me encontrou foi o próprio Peter - juro que achei ser uma harpia.

– E então, está pronta?

– Eu nasci pronta. – Sorri.

NOSSA, ANA, PARABÉNS, VOCÊ ACABA DE GANHAR O PRÊMIO FRASE CLICHÊ DO ANO, SUA TONTA!