Incoherents

III- Ain’t Your Fairytale.


Sentado na cama, abraçado aos próprios joelhos, Kaya apenas chorava. A seu lado, uma cartela de comprimidos para dor de cabeça totalmente vazia. Havia tomado as 12 unidades em menos de meia hora. Não tinha forças para mais nada, não quando, ao olhar para qualquer canto daquele quarto, enxergava o amor de sua vida nos braços de outro homem. Dando a outro os mesmos beijos ardentes que costumava lhe dar. Tocando os cabelos loiros de Hizaki com o carinho que só oferecia a ele... E a muitos outros. Kamijo era um conquistador natural, apenas um sorriso bastava para que alguém caísse de amores por ele.


"Deixe de ser idiota, Kaya", repreendia-se, atirando longe o travesseiro molhado por suas lágrimas. "Você tem mais o que fazer da vida.". Tentou ser otimista, encontrar uma única atividade que pudesse fazer para se distrair. Cantar era o que sabia fazer de melhor, não? Talvez devesse ir ao estúdio. Arrastou-se para fora da cama com dificuldade, dirigindo-se à cozinha para tomar uma taça de vinho. Arrancando com os dentes a rolha já solta, largando-a em qualquer lugar, optou por dispensar a taça e tomar direto da garrafa.


Passou alguns minutos encarando o reflexo distorcido na garrafa esverdeada que segurava frente à face. Levou o gargalo à boca, o gole exagerado fez com que se engasgasse. Deixou a garrafa sobre a mesa, desistindo de beber. Acabaria se matando.


De onde estava, podia ver o telefone brilhando sobre a mesinha da sala. Caminhou até o aparelho, pousando a mão trêmula sobre ele. Mordeu os lábios numa tentativa inútil de controlar a vontade que tinha de ligar para Kamijo e perguntar o que ele estava fazendo. Convidá-lo para saírem juntos mais uma vez, como bons amigos...


Aproximou-se do aparelho, disposto a ligar para o loiro. Seria forte e usaria seu melhor tom para mostrar a Kamijo que estava bem. Enquanto discava os números tão familiares, ligou a televisão para se distrair um pouco. Só não esperava ver a pessoa para quem ligava conversando animado com o apresentador de um conhecido programa de entrevistas, ao lado de ninguém menos que Hizaki.



Ofegante, parou frente ao prédio da gravadora. A mão no peito indicava o quão cansado estava. Olhando-se no vidro da porta, arrumou o penteado pela milésima vez, não admitia um único fio fora de seu devido lugar. Tinha vindo com tanta pressa! Pôs a mão num dos bolsos, apertando a caixinha da jóia que passara tantas horas escolhendo. Respirou fundo, entrando. Esperava que Kamijo ainda estivesse lá dentro.


Teve cuidado com as plataformas no piso, andando devagar. Não queria avisar de pronto que estava ali, era para ser uma surpresa.


Empurrou a porta da sala do loiro, adentrando-a.


– Kami, tenho uma surp--


Não pôde terminar a frase, pois a surpresa tinha sido inteiramente sua. Nos braços de Kamijo, Hizaki esfregava o corpo no dele com extrema lascívia, enquanto as bocas unidas se movimentavam no mesmo ritmo, preenchendo o ambiente com o som das línguas molhadas batalhando por espaço.


Um par de lágrimas correu pelo rosto delicado do vocalista, borrando-o com dois enormes traços negros abaixo de seus olhos confusos. O contato fora quebrado, e a voz hesitante do loiro pego em flagrante ecoou em seus ouvidos como uma martelada em seu orgulho.


– Kaya... Não é o que você está pensando...


– Cala a boca...!


Se não era o que ele estava pensando, o que era? Além Estava zombando dele, chamando-o de idiota? Não daria a Kamijo tempo para tentar explicar qualquer coisa que fosse, o que tinha visto já lhe bastava. Socou a mão no bolso e dali tirou a caixinha de veludo, atirando-a no maior. Ao cair no chão, a caixinha se abriu, revelando o colar dourado cujo comprador o havia deixado para trás ao sair correndo, chamando a atenção de todos para seu choro amargurado.


Como tinha se deixado levar pelas mentiras de Kamijo Yuuji?



– AAAH! – Num surto histérico, puxou o telefone com extrema raiva, arrancando-o de seu cabo e o atirando contra a tela. Empurrou a mesa, derrubou os vasos de flores, rasgou as cortinas. Jogou-se de joelhos em meio à bagunça, brigando com as lágrimas teimosas que insistiam em descer por sua face. Ficou ali por um bom tempo imerso em sua própria tristeza até algo dentro de si gritar por redenção. Engoliu o choro, encarando a destruição que ele mesmo havia causado. "Agora chega, Kaya", pensou.


Precisava se libertar daquele martírio.


Subiu para o quarto, separando um de seus vestidos favoritos, um par de meias brancas e longas e também um par de luvas na mesma cor. Tomou um banho demorado, caprichou na maquiagem frente ao espelho da penteadeira. Encarando o próprio reflexo renovado, sorriu; um sorriso sádico, e um tanto quanto odioso. Da gaveta do mesmo móvel, tirou a arma que fora cuidadosamente guardada dentro da bolsa. Nunca a usara e nem sabia para que a tinha... Levantou-se e, com seus ânimos renovados, saiu do quarto, descendo as escadas, cantarolando uma de suas próprias canções. Saiu de casa admirando o ótimo tempo enquanto dirigia-se à garagem.


Iria atrás de Kamijo e resolveria as coisas à sua própria maneira.


Largado sobre o estofado vendo um programa qualquer na televisão, com a toalha estampada enrolada nos quadris, Hora se deliciava com algumas balas de goma. Optara por tomar um banho e esfriar a cabeça, tentando tirar da mente aquelas idéias absurdas de Kaya tentando se suicidar, mas a falta de coragem de entrar no chuveiro tinha sido maior. Apertava repetidas vezes o botão do controle remoto, vagando sem rumo pelos inúmeros canais da transmissão paga até que um conhecido rosto na tela o tirasse de seu estado letárgico.


Kamijo, sorridente, contava à apresentadora alguns detalhes sobre o próximo lançamento da banda. Sentado a seu lado, Hizaki concordava em breves movimentos de cabeça, acompanhando cada gesto do companheiro com uma atenção no mínimo desnecessária. Hora levou a mão ao queixo, analisando a cena. Não era a primeira entrevista em que Kamijo marcava presença naquele mês, assim como não era a primeira na qual tinha a companhia de Hizaki. A banda continha cinco integrantes, não? Por que aquela preferência pelo guitarrista? O que ele tinha a mais que Yuki, Teru ou Masashi?


Sua mente fora invadida pelas lembranças de Kaya. Pelo rostinho tão alegre e angelical deformado pela maquiagem borrada após noites e mais noites de choro por culpa daquele que agora aparecia na tela de sua TV. O peito apertou, a expressão se fechara em pura raiva. Naquele minuto, podia entender o sofrimento de seu amado vocalista. Podia sentir todo o ódio e amargura de Kaya.


A cabeça moveu-se para o lado. As chaves sobre a mesinha de centro estavam ao alcance da mão.

Após um suspiro profundo, levantou-se. Caminhara em direção ao banheiro, tomara um banho rápido e, trajando um conjunto típico de seus tempos de Schwarz Stein, lembrou-se do antigo revólver escondido em uma gaveta do guarda-roupa. Abriu-a, afastando as camisas sociais que quase nunca usava até o brilho platinado da arma lhe surgir às vistas. Passou algum tempo encarando o objeto, aquilo não era uma grande loucura?

Sacudiu a cabeça, esbravejando consigo mesmo. Por que ainda estava hesitando? Já devia ter feito aquilo há tempos. Guardou a arma num bolso interno do sobretudo, pegou as chaves sobre a mesa da sala e saiu ao encontro de seu carro. Talvez Kaya jamais o perdoasse... Mas seria melhor assim. Todo o tempo que Kaya tivesse seria dedicado a odiá-lo, ao invés de ser gasto em pensamentos a respeito de Kamijo Yuuji.

Era um sacrifício até pequeno.



Dois carros diferentes, seguindo por vias diferentes em direção ao mesmo lugar. Dois diferentes motoristas tendo em seus pensamentos a morte da mesma pessoa. Duas diferentes vozes, exclamando ao mesmo tempo enquanto se aproximavam do estúdio que,àquela altura, já teria encerrado o programa:


- Já chega, Kamijo...! Esse não é mais o seu conto de fadas!