A garota chegou ao pátio um pouco ofegante. O lugar era constituído por várias quadras cobertas e ficava em um colégio no Midtown, menos de um quilômetro dos alojamentos. Era composto por quatro quadras de basquete: uma delas possuía vários manequins e alvos presos às grades, uma ala de tiro. Outra tinha alguns bonecos de treino e vários sacos de pancada cobertos por remendos aqui e ali, esta era para combate corpo a corpo. A terceira possuía um grande ringue improvisado, para os sparrings, algumas luvas de boxe e MMA estavam penduradas nas paredes junto de alguns equipamentos de proteção. E a última era uma quadra normal, sem alterações. O lugar todo chiava com as muitas conversas paralelas e o barulho dos treinamentos.

Yasmine correu para a ala de tiro, onde Hugo lançava esferas de ar comprimido nos alvos ao lado de um condutor de fumaça que fazia o mesmo. Ambos conversavam.

O condutor de fumaça possuía um cabelo longo raspado dos lados o que o deixava com um ar meio indígena, usava óculos de grau e tinha um piercing furando o canto esquerdo da boca. Vestia uma blusa com capuz igual a de Yasmine com a águia branca e azul pintada nas costas, uma bermuda esportiva e um par de coturnos.

Ela devia ser o alvo da conversa, pois assim que chegou, fez-se o silêncio entre os dois.

– Olá, Yas! – O condutor de fumaça cumprimentou enérgico, desviando os olhos de seu treinamento.

–Olá, Lee. – A condutora de tinta se alongou um pouco e começou a disparar seus projeteis coloridos, se sentia muito melhor depois de drenar uns grafites no caminho. Seus paintballs atingiam mais os círculos externos do que os internos, não era uma mira perfeita, mas dava para o gasto. – Sobre o que estavam falando? – Inquiriu.

– Sobre você, se você estará bem quando chegar o mata-mata. – Hugo respondeu depois de alguns segundos, o ar se afunilou em sua mão e ele disparou, acertando em cheio. – Você é importante para o time. – Acrescentou em tom de explicação, quase defensivo. A garota revirou os olhos.

– Obrigado pela preocupação. – Disparou mais algumas vezes, errando a maioria. Bufou com aborrecimento e parou de atirar. – Minha mira está péssima.

– Nunca foi lá essas coisas, de qualquer forma. – O condutor de gás falou baixo, um sorriso contido no rosto. Lee riu um pouco e acrescentou.

– Não custaria nada se a “única condutora de tinta que se tem conhecimento” fosse um pouco menos cega. – Sorriu para Yasmine. – Só estou brincando.

A garota tentou sorrir, mas não conseguiu nada além de um esgar. Mesmo que ela fosse um achado raro, não era a melhor condutora de Manhattan, tinha consciência disso. Foi até seu alvo e drenou a camada de tinta irregular que o cobria. – Até mais. – Deu-lhes as costas e foi para a ala de treinamento corpo a corpo, o chão era coberto por tatames e colchonetes. Ali ela se sairia melhor.

Chegou à parede onde estavam penduradas as luvas e os equipamentos de proteção. Pegou um rolo de ataduras e envolveu as mãos, usando os dentes para firmar os nós. Tirou a blusa e a pendurou em um dos vários ganchos que tinham essa finalidade, depois prendeu o cabelo em um rabo de cavalo. Ouviu alguém assobiando para ela, mas decidiu ignorar e procurar por um saco de pancadas.

Andou entre os vários condutores, desviando-se de socos, chutes e ofensas que não eram direcionados a ela. Depois de um tempo encontrou um saco de pancadas em bom estado e sem ninguém, não demorou para que o único som em seus ouvidos fosse os impacto seco de seus punhos e as comandas dadas a si mesma.

“jab, cruzado, abaixa, jab, cruzado, abaixa” A força da garota era enorme em relação a seu porte físico por conta do gene condutor. A corrente que sustentava o saco de pancadas rangia e protestava contra o assalto furioso de Yasmine, que mantinha o ritmo implacável, parando apenas para secar o suor da fronte.

Deu um salto quando alguém tocou em seu ombro. Afastou a mão e girou nos calcanhares para ficar de frente com quem quer que fosse.

– Calma ai, irmãzinha, deveria pegar mais leve! – Era uma mulher aparentemente mais velha. Alta e com os cabelos de um tom castanho-escuro presos em um rabo de cavalo , a pele era da cor de café e os olhos, da cor de mel. Yasmine reparou os braços fortes e o abdome definido, além dos longos cílios e dos lábios carnudos. – Deveria dar um tempo, não acha? – A voz firme soava um tanto preocupada.

Yasmine notou que suas ataduras estavam vermelhas e úmidas de sangue, este pingava lentamente do saco. Ficou surpresa por um instante antes de compreender. Não segurou o riso. – Relaxa, não é sangue, é só tinta. – Ao ver o rosto confuso da mulher, acrescentou apressadamente. – Yasmine Moralez, condutora de tinta. – Estendeu a mão.

A mulher abriu a boca como se dissesse “Ah, claro”. Apertou sua mão, tomando cuidado para não se manchar – Juliet Jackson, condutora de fios. – Condutores de fios eram pouco comuns. Juliet a olhou com interesse, era sempre assim, Yasmine era uma raridade. – Um belo estrago que você fez! o saco não tinha a menor chance. – Riu da própria brincadeira e tocou o braço da garota em um gesto de incentivo. – Não vou te atrapalhar mais, irmãzinha. – Sorriu e começou a se afastar.

Yasmine a seguiu com os olhos por um instante, admirando a graça em seus movimentos com um pouco de inveja. Sacudiu a cabeça e voltou á seu treinamento, logo voltou a seu estado de entorpecimento. A tinta que ela drenava do saco involuntariamente encharcava suas mãos, o objeto assumia uma tonalidade escura, a cor da borracha que o envolvia manchada pelo vermelho dos punhos da garota. A tinta escorria e empoçava aos pés dela.

“Esquerda, direita, jab, cruzado, esquiva, chute médio, cruzado, jab, direto, chute alto...” A respiração começou a se alterar apenas depois de muito tempo.

A garota sentiu uma onda de desequilíbrio e caiu sentada, atordoada, um zumbido no ouvido. Um brilho vermelho fugaz cruzou sua mente. – De novo não, sua puta ruiva! – Secou a saliva que escorria pelo canto da boca, manchando o rosto com a tinta. Levantou e lançou uma torrente de golpes frenéticos, pondo todo seu peso em cada soco e chute. Os braços e as pernas logo ficaram dormentes com aquela dança furiosa e desconexa.

Depois de dez minutos, o saco de pancadas estava coberto de rasgos e furos e por estes, vazava areia. A garota não parava nem para secar o suor que turvava sua visão e ardia os olhos, os pés chapinhando na tinta enquanto ela se movia, lançando golpes de todos os lados.

As bandagens que envolviam suas mãos rasgaram, assim como a pele por debaixo delas, mas isso não foi o bastante para desencorajar a jovem. A corrente que sustentava o saco rangia precariamente, aguentando os golpes.

Yasmine recuou e acumulou a tinta no chão ao redor de seu braço esquerdo, o líquido se solidificou em uma ponta aguda da cor vermelha, como uma lança de sangue seco.

Ela respirou fundo, girou e desferiu um golpe com toda sua força e peso.

A arma atravessou o saco, o braço da garota afundou até o ombro. Ela finalmente parecia satisfeita, desfez a arma e, com algum esforço, conseguiu libertar o braço, coberto de arranhões e areia. Assim que o fez, a corrente que sustentava o saco se partiu e o objeto caiu ao chão tristemente.

Yasmine finalmente se deu conta de como estava exausta. A respiração entrava ácida e saía rascante, as canelas e os braços estavam dormentes, os punhos ardiam e sangravam, o suor colava seu cabelo à nuca e turvava sua visão. Curvou-se sentindo o coração martelando e se notou o silêncio que tomava conta do lugar. As pessoas a fitavam de forma curiosa, alguns poucos sorriam ou cochichavam entre si.

Corou e baixou o olhar, sabendo que todos haviam visto ela perder o controle. respirou fundo e formou uma imagem mental de si mesma. Exausta, machucada, dolorida e... Exultante! Sorriu consigo mesma, ergueu a mão direita e drenou a poça de cor que a cercava, as gotículas se concentrando ao redor das feridas ao longo do braço, curando-as.

Respirou fundo e selou os rasgos no saco com tinta, depois disso o jogou por sobre o ombro e o carregou até a bancada. Sentia a nuca arder com os olhares que a fuzilavam. Alguns davam tapinhas em seus ombros, outros diziam coisas como “Eu não quero enfrentar essa doida colorida” ou “ Tomara que caia no meu time!”, sentiu-se lisonjeada e sorriu tímida. Quando largou o saco encostado em uma parede, sentiu um toque gentil no ombro. Era a condutora dos fios, Juliet.

– Deveria ter pego um pouco mais leve, irmãzinha. – Disse sorrindo e soltou um assobio de admiração, entregando-lhe a blusa que a garota havia pendurado ali perto.

Yasmine aceitou a blusa, como estava cansada demais para responder apenas sorriu e deixou a ala de combate. Atravessou a ala de tiro a passos lentos onde viu Lee, mas não Hugo. O condutor de fumaça correu até ela e segurou seus braços, o rosto indiciava que estava a procurando.

– O que houve? – Ele perguntou preocupado, ela se limitou a sorrir e balançar a cabeça.

Ele a apoiou para fora. Sentiu o ar frio da cidade a atingir com força no rosto coberto de suor. Já estava escuro, deveria ter passado muito mais tempo do que ela pensava. Lee entrou no prédio dos alojamentos e entrou no elevador com ela, o rosto era uma máscara de preocupação e confusão, várias vezes abriu a boca como se tentasse dizer algo mas desistisse.

Chegaram ao quarto dela e Lee, por alguma razão, tinha uma cópia da chave. Ele a ajudou a chegar até a cama, e depois disso, rumou à porta.

– Lee, onde está o Hugo? - Ele se deteve por um momento.

– Lá embaixo. - Respondeu vago.

Ela bufou, impaciente. - Sabia que lá embaixo tem a ilha de Manhattan? Me diga logo onde ele está.

O outro deu de ombros e continuou na direção da porta, até que uma esfera de tinta explodiu na moldura a centímetros de seu rosto.

– Lee... - Ela disse entre dentes em tom de ameaça. Uma outra esfera preparada na mão.

Ele ignorou e atravessou a porta, fechando-a atrás de si. A garota suspirou e iria deixar por isso mesmo.

Até que ouviu uma chave girando na fechadura.

Revirou os bolsos procurando por sua chave, mas não achou. Lee havia roubado. O que quer que fosse, ela pensou, eles não queriam quem ela interferisse.

Infelizmente, era exatamente isso que ela planejava fazer