In Purple Eyes

Não quero casar com o Edug... nem sei dizer esse nome!


Acordei com o chilrear dos pássaros. Ao levantar-me da cama consegui verificar que o dia amanhecera radioso. O céu estava completamente limpo, sem nem uma nuvem a manchar o imenso azul e a brisa entrava pela minha janela aberta, fazendo carícias agradáveis na pele.

Suspirei. Realmente o dia estava lindo... como que a contrastar com o meu estado de espírito. Pensei que uma noite bem dormida me pudesse espantar a revolta que me corroía, e, de facto, já estava mais calma. Pelo menos não tinha vontade de sair pela aldeia a incendiar casas. Porém a promessa do dia anterior ainda me ribombava na cabeça, me fazendo ter uma série de pensamentos infelizes. Só porque eu espantara o conde de não sei onde quando não sei o quê, os meus pais tinham de ter discutido comigo? A culpa era deles, que queriam casar-me com primeiro que aparecia. Como se eu não fosse capaz de me governar sozinha. Mas que ódio! Se eles pensam que eu vou agir como uma boa menina e aceitar o próximo candidato que me apresentarem, bem podem tirar o cavalinho da chuva.

Mas o que mais me revolta é saber que eles apenas me querem arranjar marido para o homem me controlar. Se por acaso eu me render aos caprichos e aceitar casar, a minha vida transformar-se-á num inferno. As perspectivas de qualquer garota ao casar: vestido de noiva, grinalda de flores, um homem gentil que a amará para a eternidade. A minha perspectiva é bem diferente. Imagino-me sempre numa cabana, encurralada, grades nas janelas, uma camisa de forças a impedir-me o movimento.

Sem dúvida que o que chamam matrimônio me irá roubar toda a liberdade. E é esse o objetivo dos meus pais. Acham a minha liberdade perigosa. Quando eu era muito pequena, eu lembro-me que fugi da aldeia e, desde esse dia, os meus pais têm feito de tudo para me incutir um medo que deveria ter sido implantado à nascença, na genética. Proibiram a minha avó de contar histórias de monstros, reforçaram a segurança à minha volta e rezaram para que essas ideias perigosas se desvanecessem.

Lembro-me com um sorriso de o meu pai a dizer: «É só uma fase!»

Eles não percebem que eu sou como os pássaros. O criador deu-me asas para voar mas eles insistem em me manterem uma pata presa com uma anilha.

Lembro-me com um sorriso ainda maior do dia em que a minha mãe desmaiou. Ela fora limpar o meu quarto e deparara-se com um peluche de um creeper que eu fizera com agulha e linha. O meu pai subiu as escadas, com uma grande vareta. Pegou no objeto como se fosse uma bomba nuclear e queimou-o na lareira.

Acho que eles ainda não descobriram da minha mais recente aquisição porque de contrário também ela sofreria o mesmo destino de chamas. Tateei no espaço abaixo do armário, até os meus dedos tocarem em algo frio e duro. Puxei, com alguma dificuldade, o caderno colorido. Era nesses momentos que eu tinha vontade de aprender carpintaria. Assim, poderia construir um fundo falso para a minha gaveta e escusado era todo aquele esforço. O que alguém diria, se me visse ali, toda debruçada, com a cara espalmada no chão, tentando puxar um conjunto de folhas que pareciam encravadas num espaço exíguo?

Soprei a fina camada de pó que escondia as flores silvestres que enfeitavam a capa do caderno. Era vistoso demais para parecer um objeto suspeito. E a inscrição «Querido diário» também ajudava na camuflagem. Que linda jovem não tem o seu diário, onde confessa os seus amores, caprichos e desejos? Algo totalmente comum e ordinário! Porque será que os meus pais dizem que eu sou estranha? Oh, sim, lembrei! Deve ser porque, na capa interior do caderno se encontra escrito «Guia de mobs». Qualquer um que encontre isto, é capaz de me achar doida. Ou melhor, descobrir que eu sou, realmente e irrevogavelmente e mais todo aquele conjunto de sinônimos, uma doida sem medida. Quase consigo compreender os meus pais quando penso no escândalo que seria.

A filha única dos Withier é obcecada por monstros... sem dúvida um tema que iria dar que falar!

Abri o meu guia na página marcada e comecei a completar o sombreado de um zumbi. Podem dizer o que quiserem de mim, mas este guia iria ser algo imensamente útil nas mãos armadas. Porque, neste pequeno conjunto de folhas, eu reuni toda a informação que a minha mente curiosa conseguiu adquirir. E não pensem que foi tarefa fácil! Essa gente é ingênua e medrosa. E muito burra, se me permitem acrescentar. Temem algo que desconhecem. Pergunto... o que é um creeper? A resposta é sempre difusa. «É um monstro terrível! Ele consegue fazer explodir casas!» Pergunto de seguida: E como ele é? Respondem-me: «Não sei, e espero nunca vir a descobrir!»

Se dependesse apenas dessas conversas tediosas, o meu conhecimento iria ser reduzido, o meu cérebro iria atrofiar e ficar sem neurônios. Ainda bem que a minha avó me emprestou uns binóculos noturnos. Do cimo das muralhas, consigo ver ondas de mobs que tentam invadir, sem sucesso a aldeia. Aquele misto de medo e adrenalina percorre-me. Da primeira vez, corri para casa e tranquei-me no quarto, sentindo-me impotente. Mas com o tempo, acabei por ficar mais atrevida. Até cheguei a acenar a um zumbi que batia no portão de madeira. Ri descontroladamente ao ver a sua cara de espanto, através da rodela de vidro dos binóculos.

Sei o nome e algumas características de cada um dos mobs que alguma vez tive a graça de presenciar. Todos... menos um. Precisamente o primeiro que vira! Aquele rapaz que estava a repousar contra uma árvore, com fagulhas roxas que cintilavam à sua volta. Nunca descobri que espécie era aquela! Falavam-se de zumbis, creepers, spiders, esqueletos... tudo o resto só entre os guardas fardados se mencionava. E eles não queriam uma garotinha curiosa a rondar a torre de guarda. Sempre me expulsavam de lá e eu voltava para casa com um bico enorme, amuada.

Voltei à realidade ao ouvir batidas na porta. É mesmo... eu não sou mais uma menina! Acabei de fazer 18 anos o mês passado, tenho um corpo definido, sou mais alta que a minha mãe. Sou praticamente adulta, quase madura demais, na opinião dos homens. A idade casadoira acabava aos 20. Porque me perdi nessa divagação de idades? O olhar que a minha mãe me lançou quando entrou no quarto não me agradou nem um pouco. Sentir-me-ia mais segura se ainda fosse uma criança de 4 anos. Assim não entenderia o olhar significativo da minha mãe, nem as segundas intenções, quando ela exibiu uma escova e começou a tirar os nós do meu cabelo castanho chocolate.

– Cristaly... – Começou ela e fez uma pausa.

Soube imediatamente as palavras que se seguiriam. «Já não és mais uma criança blá, blá, blá... tens de arranjar um bom partido, blá, blá, blá,... eu realmente não entendo porque continuas a recusar a corte de tão bons rapazes, blá, blá, blá.

– Já não és mais uma criança. No entanto continuas a portar-te como uma. Olha bem para ti, estás tão crescida, tens de arranjar um bom partido, senão, as pessoas começarão a falar. Sabes como são as más línguas, uma jovem deve manter-se casta até ao casamento e se não arranjares um marido em breve, irão achar que já foste usada e, por isso, abandonada. Nada me daria uma maior desonra do que aturar as mais conservativas da aldeia a olharem-me de lado, criticando o fruto do meu ventre. Eu realmente não compreendo porque continuas a recusar a corte de tão bons rapazes. Diria até que o teu coração já pertence a alguém.

– E pertence! – Repliquei. A escova parou a meio do trajeto. A minha mãe arqueou uma sobrancelha, admirada e desconfiada. – O meu coração é completamente rendido à aventura, à emoção e à liberdade. Por favor, eu não nasci para ser uma dona de casa!

– Tivesses nascido rapaz! Como és uma menina, tens de aprender a comportar-te como uma dama. É por isso que eu e o teu pai queremos arranjar-te marido. Só um homem poderá afastar esses teus pensamentos loucos e pecadores da tua cabeça. Ora, onde já se viu? Aventureira, atrevida, destemida e curiosa. Tudo o que uma mulher não deve ser! Porque não és submissa, paciente e delicada como todas as outras?

A minha mãe levantou-se e retirou um livro da prateleira.

– Olha para isto! Estou arrependida de ter deixado o avô ensinar-te a ler e escrever. Só podem ter sido os livros a origem de tanto disparate! Para que queres tu conhecimento? Os números e as letras não te irão ajudar a arrumar a casa, a cuidar das crianças ou a amar o marido. Essas são as tarefas de uma mulher! Quero o teu bem, filha! Não quero que te apontem o dedo e digam que és uma vagabunda.

Mantive-me calada. Quantas vezes tivera de ouvir o mesmo discurso? Acho que esta é a terceira vez esta semana.

– Agora veste o vestido branco mais bonito que tiveres e desce, hoje temos visitas para o almoço.

Visitas? Isto cheira-me a esturro. E não é decerto o pernil de leitão assado que se queimou, a minha mãe é uma ótima cozinheira. Não tive outro remédio senão aprontar-me. Enfiei aquela coisa horrorosa pela cabeça e atei a fita ao cabelo. Não tive coragem de me olhar no espelho, desci direta para a sala de jantar.

O meu pai estava sentado à mesa e ao seu lado estava um rapaz que devia ter mais ou menos a minha idade. Tinha um porte médio, trajava roupas que denotavam marca, tinha um sorriso bastante aprazível. Tudo nele exalava charme, desde o cabelo ruivo até aos olhos verde cristalinos. E, no entanto, não me atraiu minimamente. Só de pensar que ele seria provavelmente o meu mais novo «futuro marido» enchia-me de desprezo. Por muito bonito que fosse aquele rapaz, eu não gostava dele devido à situação. Afinal, raramente as mulheres gostam de um homem que lhes foi impingido. Podem até disfarçar e toda a gente acredita que elas estão a transbordar de felicidade, mas eu sei que, lá no fundo, só querem é ver-se livres do desconhecido que atiraram para as vidas delas.

Os dois homens viraram as cabeças na minha direção ao ouvirem-me descer as escadas.

– Então esta é a sua filha, Cristaly? Ela é muito bonita! – Disse educadamente o ruivo.

O meu pai lançou-me um olhar significativo. Devia agradecer o elogio.

– Obrigada, mas não sei como consegue constatar tal facto, estando eu vestida como uma boneca de folhos. Sendo assim, pode achar o meu vestido bonito, mas é precisamente ele que impede que eu me dê a conhecer. Sendo assim, não pode dizer se eu sou bonita ou não! Sinceramente, eu sinto-me uma palhaça vestida desta maneira.

Senti que estava a ser fuzilada por dois pares de olhos. O rapaz ruivo simplesmente deu uma risada.

– Bem me tinham dito que ela era diferente! Que sentido de humor sublime!

O rapaz levantou-se e puxou uma cadeira para que eu me sentasse.

– Então, ouvi dizer que o teu pai é um mineiro influente. – Começou o meu pai a puxar a conversa.

– É verdade! Mas atualmente ele está aposentado. Após ter encontrada a décima mina de ouro, ficou rico o bastante para me sustentar e a mais dez gerações. – Ele deu um gole na sua caneca de vinho e piscou o olho ao meu pai. – No entanto, eu não quero que pense que sou um desocupado que me encosto à sombra do sucesso dele. Eu estou já lançado numa carreira que muito me apraz.

– Ora, assim mesmo é que eu gosto de ver, um homem trabalhador!

A minha mãe mexia as batatas na panela cheia de água, mas olhava de esguelha para nós os três, seguindo atentamente a conversa.

– Já agora, no que trabalhas? – Perguntou o meu pai, farfalhando o bigode.

– Sou exterminador de mobs! É um trabalho bastante arriscado, mas sempre fui o mais corajoso dos meus sete irmãos. E, cá entre nós, é um trabalho que induz algum preparo físico. Sempre fui muito bonito, mas um tanto magricela. Este emprego está a ajudar-me a manter-me na forma.

A minha mãe, prevendo o desastre iminente, apressou-se a servir o leitão e espetou o garfo com o pedaço de carne na minha boca no preciso momento em que eu ia reclamar. Engoli o alimento ainda inteiro mas a oportunidade de o repreender já tinha sido perdida. Mas se pensam que isso fica assim, estão muito enganados. Casar-me um um exterminador gabarolas e convencido como este? Preferia casar-me com o meu porco de estimação.

Só há um problema... as mulheres não podem dispensar os homens, só eles podem recusar o noivado. Pensando bem... qual é o problema? Não será muito difícil fazer o rapaz desistir de desposar-me! Já fiz isso inúmeras vezes, e com a repreensão dos meus pais, lido eu muito bem mais tarde.

– Hum... esta comida está uma delícia! – Murmurou o rapaz deliciado, rolando uma batata no molho do assado e levando o resultado à boca. – Se a sua filha cozinhar tão bem como a dona da casa, então não terá problemas para arranjar marido.

– Pois, mas acontece que eu não sei cozinhar. O último que provou o meu experimento culinário morreu envenenado poucas horas mais tarde. Talvez tenham sido os cogumelos... – Disse, encolhendo os ombros com aparente indiferença.

– Oh, mas não faz mal, na minha casa, abundam criados e cozinheiros. Fale-me dos seus dotes, menina Withier.

O meu pai retorceu as mãos nervoso.

– Se se refere àquilo que eu sei fazer, não é muita coisa! Vejamos... sou muito boa a trepar. Sei criar girinos num copo de água. E sei dar puns em ré menor.

A minha mãe vacilou e teve de apoiar-se à bancada. Por momentos pensei que ela ia desmaiar novamente.

O rapaz riu-se. E parecia genuinamente divertido, não era como se estivesse a disfarçar por educação ou coisa parecida.

– Que humor extraordinário tem a sua filha, realmente.

O meu pai pigarreou e apertou-me carinhosamente os ombros. Só que na verdade eu sabia que a vontade dele era apertá-los até quebrar os finos ossos da omoplata.

– É verdade, ela é muito engraçada. E muito modesta também! Nem falou no seu dom para o canto. Ela tem uma voz que nem ao mais exímio rouxinol faz jus. Porque não cantas para o nosso convidado, Cristaly?

Eu é que não iria deleitar os ouvidos daquele cafajeste com música.

– Lamento meu pai, mas hoje acordei com alguma dor de garganta. Quem sabe para uma outra vez. – Menti, levando a mão à garganta e fingindo sofrimento.

O olhar do meu pai quase cortava.

– É realmente uma pena! – Concordou o rapaz.

– Mas então Edumégrodo, o que pensas...

– Com todo o respeito, senhor, gostaria de corrigi-lo. O meu nome é Edugénodro. Mas todos me conhecem por Edu.

Abafei o riso com o guardanapo. O resultado foi que a minha cara começou a inchar e fiquei roxa de tanto segurar o riso. Os ruídos que eu produzia assemelhavam-se com os de uma morsa na hora do parto. Meu Deus, que nome é esse? Edu... o quê? Não podem estar a pensar casarem-me com alguém com um nome tão esquisito! Imaginem só, o padre pergunta: «Senhor Edugénodro, aceita casar-se com esta mulher?» Eu acho que começava a rir na cara do padre.

– Peço muita desculpa pelo meu engano. – Respondeu o meu pai.

Passados momentos, o meu pai já se tinha esquecido de como se pronunciava o nome singular e perguntou.

– Quer mais um copo de vinho, Egédruno?

Não aguentei e comecei a rir loucamente. Tive de me deitar sobre a mesa e fiz a jarra de vinho cair, acidentalmente, sobre o nosso convidado. Ele levantou-se de um salto ao sentir o líquido um tanto quanto que gosmento a penetrar-se-lhe nas roupas.

– Oh, eu peço imensa desculpa! – Disse, tentando não sorrir.

– Não faz mal, estas roupas não eram as minhas preferidas, para ser honesto. – Escolheu um guardanapo da mesa e começou a limpar-se. A minha mãe correu para o quarto buscar umas roupas do meu pai que muito dificilmente caberiam no rapaz.

Resfoleguei de contentamento ao ver o pobre Edu a voltar para a mesa. As roupas que usava eram duas vezes o seu tamanho, e parecia que ele estava a vestir um saco de batatas. Mesmo com a documentária pouco adequada conseguia parecer um rapaz dos sonhos de qualquer rapariga.

Para desanuviar a tensão, a minha mãe surgiu com uma tarte de abóbora que pousou na mesa com um sorriso amável e totalmente falso. Ela estava aterrorizada pelo meu péssimo comportamento. E ela ainda nem vira nada, era hora do toque final!

– TARTE DE ABÓBORA, A MINHA PREFERIDA! – Exclamei o mais alto que consegui. Avancei pela mesa, sujando o meu vestido de gordura e cortei metade da torta, enfiando-a na boca inteirinha. Óbvio que fiquei a parecer um esquilo com as bochechas cheias de nozes, nem conseguia mastigar de boca fechada. Os farelos escorriam da minha boca.

– Deíça! – Murmurei, ainda com a boca cheia da sobremesa. Engoli sonoramente e para completar soltei um arroto.

Encarei inocentemente os rostos horrorizados à minha frente.

– CRISTALY?! Foi esta a educação que te demos? – Começou a repreender o meu pai.

– Não tem problema, senhor. Eu gosto de raparigas com apetite! – Interrompeu Edu, com um sorriso meio balançado. – Eu gostei muito de passar este tempo consigo, com a sua mulher e com a sua linda filha. Até a uma próxima!

E foi-se embora. O bater da porta fez com que fogo de artifício estourasse na minha mente. Quero ver agora se esse Edugé... vocês sabem me quererá desposar agora!