Matheo Delacroix, in memoriam.

Era o que estava escrito no convite de casamento de Anthony Delacroix e Anelise Thompson, logo abaixo do nome de Alexandra, com uma pequena cruz ao lado do último caractere. Arthur Gravesen puxou a esposa um pouco mais para si enquanto ela segurava o pequeno pedaço de papel de alta gramatura em mãos, com a sensação de que Alexa se quebraria em mil pedaços se ele a soltasse ali.

Vinte e cinco anos haviam se passado desde aquela noite. Desde que Alexandra Schreave presenciou a morte sangrenta do homem que mais amou em toda sua vida. Vinte cinco anos que a culpa a consumia viva. Vinte e cinco anos cuja única tarefa que ela se dispunha a fazer era preparar Anthony para assumir o trono suíço, o trono inglês e o trono de Illéa.

O casamento havia sido lindo, por sinal. Um evento gracioso, digno de rei de três países. Foi tão lindo quanto poderia ter sido o casamento de Alexa e Matheo. E muito mais lindo que a cerimônia de assinatura de papéis ao qual se resumiu o casamento dela com Arthur. E, por mais egoísta que ela se sentisse em tomar o príncipe dinamarquês para si, ela precisava dele ali. Porque ainda que de maneira diferente da que se espera de um casal, a rainha de Illea amava o pequeno Hamlet quase tanto quanto amou Matheo. Pouco menos do que amava seu próprio filho.

Anthony tinha as covinhas do pai. Herdou o sorriso e a lábia do príncipe suíço, também. Era doce, gentil, educado. Vê-lo ali, saindo para sua lua de mel, assumindo a responsabilidade pelas três nações, tornando-se um líder aclamado por seu povo, fazia com que Alexandra soubesse que havia cumprido com seus deveres. Por mais difícil que se manter ali havia sido, ela fora uma boa mãe.

Mas uma mãe que nunca sequer sorriu. Por vinte e cinco anos, utilizava remédios para acordar, remédios para dormir. Não festejava, não se alegrava. Tampouco deprimia-se, com a medicação mantendo seu humor nesse platô de insensibilidade. Era melhor que sentir dor. Era melhor que sentir culpa. Não ser feliz era bom, comparado a uma vida de miséria por se lamentar a cada segundo de suas escolhas.

Arthur colocou ao lado as taças de vinho. Sabia que o momento havia chegado, e por mais fiel que fosse às escolhas da esposa por todos esses anos, sabia que não seria capaz de suportar essa última sem um pouco de álcool. Colocou na vitrola uma última música: a mesma que dançavam eventualmente nos tempos bons, antes que Matheo se fosse. E ali, na brisa leve de outono, dançaram uma última vez.

Alexa era leve, muito mais magra do que o saudável. Só comeu o suficiente para sobreviver durante as duas décadas e meia, e ainda que a magreza excessiva não lhe caísse bem, Gravesen a achava linda. Ali, iluminados pela lareira, levemente embriagados e ainda com as roupas da festa de casamento, ele só tinha olhos para ela. Todos o agradeciam por ter cuidado de Alexandra por tantos anos, contudo ele era grato a ela mais do que tudo. Grato pela companhia, por ter lhe aberto os olhos, por estar ao lado dele quando ninguém mais esteve. Ele a admirava. Por ter sido tão forte. Por conseguir manejar com tanta destreza suas responsabilidades.

Ela poderia não ter sido feliz. Entretanto, mesmo ali, naquela situação, Alexa deu seu melhor. E ela era graciosa quando o fazia.

O calor foi aumentando, a música acabou. Ela o puxou para o quarto que durante anos dividiram, ainda que as carícias trocadas nunca tivessem passado de abraços profundos, cafuné e troca de calor corporal nas noites frias. A rainha de Illéa brincou mais uma vez com os cachos loiros do marido, e então soltou-lhe a mão, virando-se de costas e pedindo ajuda com o vestido.

Delicadamente, Arthur desceu seu zíper e as alças, tocando com enorme compaixão os braços magros enquanto a despia. Permitiu-lhe um momento a sós, enquanto enchia a banheira da suíte com água bem quente, colocando os sais de banho que a esposa tanto gostava. Com o vapor preenchendo o banheiro, tirou a gravata, o paletó e os sapatos, permanecendo somente com sua calça e camisa, sentando-se à borda da banheira.

Alexa entrou logo depois, com apenas uma camisola no corpo. A mesma camisola que ela usara vinte e cinco anos atrás, manchada de sangue e amarelada pelo tempo. Soltou o cabelo fino e grisalho que lhe restava e retirou toda a maquiagem pesada e as jóias que usava. A aliança entregou nas mãos do dinamarquês, no momento em que entrou lentamente na banheira, permitindo com que toda a água quente lhe tocasse o corpo.

Alexandra se sentia cada vez mais leve pela missão enfim cumprida; o peso em seus ombros se passava para os de Arthur, cuja garganta se fechava em um nó cada vez maior e cujas lágrimas brotavam no canto dos olhos, lutando para que não lhe escorressem à face. Ele entendia sua escolha. E, mais do que entender, ele a amava o suficiente para deixá-la ir.

Ela pegou o rosto dele entre as mãos e lhe deu um último beijo. Tinha um gosto amargo e salgado, com sabor de despedida. A única despedida deles em vinte e cinco anos. A primeira, e a última.

Alexa se soltou, escorregando na banheira e afundando a cabeça. De olhos abertos, ela via um Arthur borrado pelo reflexo da água. Sabia o quão aquilo estava sendo difícil para ele, e o amou ainda mais. Moveu os lábios, sussurrando-lhe um obrigada, e logo após soltou todo o ar de seus pulmões, já sentido o topor da overdose de benzodiazepínicos. Sua vista escureceu e tudo o que sentiu foi o leve ardor ao inalar fundo enquanto as mãos firmes do marido a mantinham submersa.

Arthur chorou, deixando que a dor o consumisse de uma só vez. Dez segundos após o último tremor, pegou o corpo da esposa em seus braços, permitindo-se finalmente expressar tudo o que sentia. Tirou o cabelo de seu rosto, observando o esboço do sorriso pacífico que se formou em seus lábios nos últimos instantes de sua vida.

Matheo Delacroix havia amado Alexandra Schreave. Alexa havia amado Matheo. E havia amado Arthur, à sua maneira. Mas Arthur Gravesen era quem mais havia amado nessa história toda. Arthur amou tanto Alexa, que a amava mais do que a si mesmo. Foi forte pelos dois. Foi pai e mãe. Marido e esposa. Deu duzentos por cento de si para conseguir manter firme ao menos uma sombra do que Alexandra costumava ser. E ali, segurando seu corpo sem vida, ele ainda a amava.

E amaria por toda a eternidade.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.