Galpão 666

Dor

Escuridão

Ressecamento

Você já não tinha a menor ideia de quanto tempo estava presa naquele galpão. Sua rotina diária se baseava em entrar e sair do tanque, recebendo coronhadas e choques no caminho. Por mais que tentassem, a tortura não havia mexido com a sua mente.

Não tinha como quebrar algo que já era quebrado.

Você tinha se perdido do bando em algum momento durante a caça e não conseguia encontrar o caminho de volta. Passou pelo menos dois dias com fome, já que nenhum ser vivo passava pelo seu caminho. Perdida e faminta, sua prioridade era a sobrevivência. Sabia que nunca devia chegar tão perto da encosta - era a regra número um do bando - mas não existiam mais opções. Cautelosamente você se aproximou, vendo um movimento na água bem à sua frente. Aquilo só podia significar uma coisa: comida. Com as pupilas dilatadas já lambendo os lábios você chegou mais perto sendo agarrada quase imediatamente.

Era uma armadilha para criaturas do mar.

O medo te dominou no instante que sentiu dois pares de braços te agarrarem, te puxando para fora da água. Não sabia se reagia e os atacava ou se tentava desesperadamente voltar para o mar, mas nada daquilo fez mais sentido quando seus ossos começaram a se quebrar, indicando que ganharia pernas pela primeira vez na vida.

Antes fossem pescadores que te matariam como troféu de exibição, mas não. Seus captores eram demônios vindos dos confins da Terra, em busca de criaturas aquáticas que pudessem ajudar seu Rei a conseguir mais poder. Eles estavam em uma missão que tinha como base uma velha lenda urbana sobre o grito de uma sereia ser tão poderoso que deixaria sob seus comandos os mais próximos. Nunca nada daquilo havia sido confirmado, assim como a existência delas, mas Crowley era persistente.

Você foi carregada para um galpão próximo do canal, sendo torturada para conseguir emitir o grito mais agudo possível e cedê-lo ao Rei do Inferno - este que sempre que possível aparecia para conferir de perto o trabalho. Mas em algum momento algo deu errado e ele ficou meses desaparecido para voltar completamente diferente. Havia alguma coisa faltando nele, mas você não sabia dizer o que.

—É trivial que consigamos alguma coisa dessa vez rapazes! - Crowley berrava nervoso andando pela sala, te olhando dentro do tanque pequeno demais para repousar confortavelmente.

—Mas Senhor…. Já tentamos de tudo e ela não emite nenhum som! - Um demônio se exasperou.

—Ora essa! Será que eu quem tenho que fazer todo o trabalho sujo? Saiam daqui! - Crowley esbravejou enquanto se aproximava, ordenando que você fosse retirada da água.

Embora tivesse adquirido certa resistência com o ar, ainda era terrivelmente doloroso sentir sua cauda se partir ao meio, formando toda a estrutura óssea das pernas. Seus pulmões se adaptando inteiramente ao oxigênio e suas guelras se fechando também não era nada bom. Você não gritava, apenas fazia caretas e emitia pequenos ruídos com a boca.

—Isso, vamos lá peixe! Grite!

Sua respiração estava entrecortada quando sentiu o primeiro golpe em suas costas, te jogando para o chão novamente. Ele havia batido com uma madeira? Nunca haviam feito aquilo antes!

—Grite!

Mais golpes foram desferidos contra o seu corpo, com a violência sendo inovada cada vez mais. Você já estava a tempo demais longe da água, seu corpo enfraquecido por ter passado uma tarde inteira apanhando e com sal literalmente sendo jogado nas feridas. Toda a sua pele estava arranhada, ensanguentada e descascada, dando uma aparência horrível a sua forma humana. Até então só tinha recebido choques ou ficado perto do fogo, mas agressão física? Aquilo era extremamente doloroso, sua pele fina não suportava as pancadas, ficando marcadas imediatamente.

—GRITE! NÃO ME FAÇA ACHAR QUE CAPTUREI UM PEIXE SEM VOZ! GRITE! - Crowley estava vermelho, exaltado, desferindo mais golpes contra você que apenas nessa altura tentava fugir rastejando.

Você não tivera tempo para aprender a andar. Pensava que iria morrer naquele momento quando ouviu um estrondo que machucou seus ouvidos bem próximo.

—GRITE!

Três homens entraram correndo pelo buraco da parede, empunhando armas e olhando ao redor. Eles não acreditavam no que Crowley estava aprontando desde que havia se tornado um humano novamente. O lugar era completamente afastado da cidade, estava lotado de demônios, com as janelas cobertas e tomadas pelo cheiro de maresia. Ele havia enlouquecido de vez?

—O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO, CROWLEY?! - Dean berrou ao notar que ele espancava alguém violentamente.

—AH! - Ele gritou ao ser jogado para longe por Castiel.

Enquanto Sam lutava com alguns demônios que tentavam proteger a presa de seu Rei, Dean correu na sua direção, ficando horrorizado com seu estado.

—Puta merda! - Ele se agachou e tentou te tocar, virando seu corpo e notando as marcas arroxeadas antigas e os cortes recentes em seu corpo nu. Embora estivesse consciente, você não falava e estava fraca demais para fazer movimentos indicando o lado de fora.

Porque raios Crowley torturava uma mulher tão jovem? O que ele queria com você? Quanto mais tempo Dean te observava mais seu coração se apertava: os roxos amarelados, arranhões, sangue escorrendo, a pele completamente descascada, os ruídos que saíam da sua boca. Será que ele havia torturado o bastante para que não conseguisse mais falar? Dean olhou para o seu rosto na esperança que você mexesse os lábios para ao menos indicar quem era, mas prendeu sua atenção em seus olhos.

Grande erro, Winchester.

Algo dentro dele mudou. Sua boca secou-se instantaneamente, seu coração acelerou de forma a chamar a atenção de Castiel. Não entendia a súbita preocupação com o seu bem estar, muito menos com o desejo de estar mais próximo. Por mais que tentasse, você não conseguia emitir nenhum som, apenas leves ruídos que ficavam cada vez mais inconstantes ao perceber as intenções do loiro. Dean havia colocado uma mão no seu rosto, se aproximando perigosamente com intenções de te beijar - fato esse interrompido por Castiel, que parou de lutar com Crowley ao entender do que se tratava.

—DEAN, NÃO! - O grito havia chamado a atenção do mais novo, voltando para o anjo confuso. - O tanque! Ela não é daqui, você precisa levar ela para fora AGORA!

—ORA SEU! - Crowley avançou com uma cadeira para cima de Castiel, quebrando em suas costas.

Dean precisou de alguns segundos para acordar e te pegar no colo, ainda suspirando pelo efeito do charme indesejado. Sua respiração estava cada vez mais entrecortada - simbolizando que em pouco tempo sufocaria por falta de água - já que suas brânquias começavam a voltar. Dean te colocou delicadamente na água, se assustando quando começou a se debater ainda em seus braços. A dor era excruciante, mas a sensação de liberdade vinda com ela não tinha igual.

Pelo tempo que ficou submersa Dean pensou que você já tivesse fugido, mas ao notar a superfície da água sendo cortada ele se virou e ficou surpreso com o que viu: sua pele já estava inteiramente renovada, seus olhos maiores que o normal brilhavam com a luz do pôr do sol, seu sorriso expressava toda a sua gratidão por ter a libertado do cativeiro. Embora ele estivesse hipnotizado pela visão angelical do seu rosto e dos mamilos intumescidos pelo contato com a água gelada e agora não mais cobertos pelo cabelo, sua atenção fora atraída pela confusão do lado de dentro.

Ele sabia que precisava voltar e ajudar Castiel e Sam, mas fazer isso significava te deixar para sempre. A indecisão era nítida em seu rosto, mas ele precisava fazer aquilo. Antes mesmo que pudesse dar um passo para longe, Crowley sai aos tropeções para fora, machucado, mas tentando retomar sua criatura.

—VOCÊS NÃO VÃO ESTRAGAR TUDO!

Castiel e Sam até tentaram correr atrás dele enquanto Dean se colocava em posição de defesa a sua frente, mas você fora mais rápida.

HÁ um ano e meio tinha vindo para a encosta em busca de comida quando foi capturada. A fome havia permanecido durante aqueles dezoito meses e agora em sua forma original você iria se alimentar com o maior prazer.

Antes que pudessem avançar você abriu a sua boca e deixou que sua voz saísse. Castiel estava desesperado, berrando para que Sam tapasse os ouvidos, preocupado pela proximidade de Dean, correndo para tentar salvá-lo quando o som enfim atingiu seu alvo: Crowley se hipnotizou pelo seu canto, calando-se imediatamente. Ele não queria que você gritasse? Pois agora tinha cada vez mais alto o canto da sereia, atraindo ele para mais perto, enquanto Dean se debatia nos braços de Castiel tentando ir atrás também.

Quando ele enfim chegou a beira, se agachou para que pudesse ficar perto do seu rosto, enquanto você o segurava pelos ombros, parando de cantar - o que o fez perder o encanto. Crowley enfim percebeu onde estava, mas antes que pudesse fazer alguma coisa viu a sua expressão faminta e predatória no rosto, tendo seu grito cortado ao ser puxado para baixo na água.

Dean estava estupefato por quase ter tido o mesmo destino que Crowley, chocado com o que acontecera.

—Ele não vai nos incomodar mais, rapazes. - Castiel declarou enquanto ajudava Dean a se levantar, indo em direção ao carro.

Crowley havia conseguido o que tanto queria no final: que a sereia gritasse para ele, comprovando a sua teoria sobre o feitiço nos mais próximos.

Pena que para isso ele teve de testar na própria pele.

Crowley não mexeria mais com o sobrenatural desconhecido.