Identidade Homicida

Qual o sentido em continuar?




[Elsie]

Seus olhos azuis me observavam. Eles eram a única coisa real naquele lugar. Mas meus dedos ainda tremiam no gatilho, prestes a apertar.

Em um único segundo, sentindo uma descarga elétrica se dissipando pelo meu corpo, direcionei o braço para o canto que o keypass tinha caído e apertei o gatilho consecutivas vezes, com toda a dor e raiva que espremiam meu peito, descarregando ao menos seis balas contra a imagem de Shermansky, que desapareceu na tela agora feita em estilhaços.

Era tudo o que eu precisava. Me livrar da voz e da presença de Shermansky foi o suficiente para que eu saísse de dentro daquele delírio e desabasse de joelhos de frente para Armin, com as mãos cobrindo o rosto enquanto chorava alto, gritando, me debatendo e engasgando sem ar numa tentativa me livrar da culpa enlouquecedora que eu sentia naquele momento.

O único momento que consegui formular alguma frase foi quando senti a presença de Armin vir até mim e me acolher dentro dos seus braços. Me senti sendo apertada com força, e balbuciei enquanto tremia com a testa caída contra o seu peito como um soldado ferido e exausto:

— Eu lembrei de tudo, Armin. A tia Agatha… eu…

— Tá tudo bem, shhh — falou a sua voz sobre a minha cabeça, muito séria e cansada, mas cheia de ternura — Eu também ouvi. Não precisa repetir se não quiser.

Levantei a cabeça de dentro do seu abraço, encarando seu rosto e tomei uma das suas mãos, tentando fazê-lo segurar a pistola que eu ainda carregava. Armin naturalmente rejeitou o gesto, então o encarei com firmeza, embora minha voz voltasse a oscilar:

— Armin. Por favor, eu te imploro — apertei os olhos, querendo chorar, hiperventilando, sufocada de desespero — Me mata. Me mata, por favor.

Seu rosto se transformou da água pro vinho, com a sua expressão se franzindo numa espécie de fúria:

— Mas que porra você tá falando, Elsie?!

— Acaba logo com essa merda — insisti — Eu não aguento mais. Assim a gente já para de adiar o inevitável. Esse tinha sido nosso acordo desde o começo, não foi? Eu já consegui descobrir o que eu queria, mesmo. Qual… qual o sentido em continuar?

As sobrancelhas franzidas de Armin tremiam:

— “Qual o sentido”...? — seus olhos começaram a encher d’água e a sua voz se comprimia dolorosamente — Você não me disse antes que fazia questão de continuar viva? Então por que agora tá me dizendo uma merda tão horrível como essa?!

A pergunta veio com o mesmo impacto de um soco no estômago. Voltei a arrebentar no choro. Mas eu ainda precisava justificar a minha ideia desesperada por paz, então falei entre os soluços enquanto sentia as lágrimas caindo ardidas pelo meu rosto:

— Eu tô cansada. Eu tô… exausta, Armin. Não é sobre o jogo. É sobre mim. Meu corpo, minha cabeça… tá tudo tão pesado. Minha alma, sabe? Eu queria poder recomeçar desde o começo. Ter tido meu pai e minha mãe vivos, uma vida normal, com conflitos comuns. Ter ido pra escola, feito amigos, sem ter que me sentir sempre tão… tão diferente. Tão fora. Tão… amaldiçoada.

Armin segurou meu rosto com as duas mãos e se afastou um pouco. Ficou quieto por um momento, me encarando com firmeza:

— Olha, olha nos meus olhos. Não desvia — ele mirava no fundo dos meus olhos. — Você não pode mudar isso, Elsie. Você não pode mudar nada disso — repetiu, com grande convicção.

Meu coração batia forte. Era uma verdade dolorosa, terrível.

— Você não pode mudar como você veio ao mundo, nem o que aconteceu no passado — continuou, limpando as lágrimas do meu rosto com os seus polegares — Você, definitivamente, não pode mudar o que já aconteceu. Tudo isso existiu e ponto.

Houve um breve silêncio. Seu rosto se iluminou de repente:

— Mas você tá viva. Você tá viva, Elsie! E enquanto você estiver viva, sempre, sempre pode decidir como vai ser daqui pra frente!

E eu que achava que não era mais possível expelir um única lágrima, naquele momento me debulhava de chorar, numa completa catarse, no auge da exposição do meu lado mais frágil e fraco, com os braços enrolados ao redor do pescoço daquele rapaz que o acaso, que sempre pareceu ter sido meu grande inimigo, tinha me feito conhecer.

Chorei mais do que chorei durante toda a minha vida ali, provavelmente.

Demorou algum tempo, mas pude me acalmar. Ainda sentia toda a dor física ardendo pelo meu corpo, mas conseguia agora ao menos pensar de forma minimamente racional.

Respirei fundo e limpei o rosto com a manga do casaco. Dentro daquele pequeno e escuro cômodo, falei minha decisão em voz alta:

— Quero sair daqui, Armin.

Ele sorriu:

— Já é um bom começo.

Era uma ideia bonita -- a de recomeço -- , mas algo nela ainda me trazia incômodo.

— Mas… o que eu vou fazer se conseguir sair daqui? Entende que isso não faz sentido? O que um passarinho que ficou a vida toda engaiolado faz quando soltam ele? Ele sequer sabe voar!

Armin me segurou pelos ombros abruptamente e encarou dentro dos meus olhos:

— Você vai ser a minha namorada, Elsie! Tá bom pra você?!

Fiquei alguns segundos em silêncio, assustada com o gesto e as palavras repentinas. E, como se ainda fosse possível meu corpo produzir mais alguma lágrima, chorei -- chorei de felicidade.

Armin se assustou todo e abanou as mãos:

— Ei, ei! Por que tá chorando de novo? Você não quer namorar comigo? T-tudo bem! Agora sem chorar!

Ri enquanto secava as lágrimas e fungava com o nariz todo melecado quase escorrendo. Me sentia patética, fraca e a pessoa mais sortuda do mundo.

— É claro que eu quero, seu besta — respondi, rindo.

Ergui o rosto na direção do seu e vi sua face inteira virar uma grande pimenta vermelha:

— Bom. Então… é isso! — sorria radiante, embora tímido.

— É isso — sorri também.

Nos abraçamos e ficamos assim algum tempo.

— Você vai comigo no Arribas logo que a gente sair daqui. Isso é uma promessa — disse ele, sussurrando. Ainda estávamos abraçados.

— Tipo como um encontro? — sorri, falando baixinho. A turbulência do meu coração parecia ter cessado. Ouvia apenas os batimentos de Armin no meu ouvido, enquanto afundada no seu peito.

— Sim — riu, tímido como um molequinho. Ele não sabia, mas eu conseguia ouvir o seu peito bater mais forte com aquilo.

— Mas e você? — sentia a minha voz pequena. O simples gesto de falar me cansava àquela altura. Como se tudo que saísse da minha boca saísse como um suspiro — O que quer fazer?

Armin respondeu convicto:

— Sair daqui, também. Acabar com isso tudo de uma vez por todas.

Desgrudei do seu abraço para encará-lo com espanto:

— E o prêmio? O tratamento que você pagaria pro seu irmão. O dinheiro.

Armin sorriu pra mim:

— Deve ter um jeito mais convencional de conseguir dinheiro, não? Quer dizer, a gente já entendeu qual foi a da Shermansky: ela criou todo esse império usando pessoas fragilizadas, desesperadas pra mudarem o rumo da própria vida com uma ajuda externa. Quando ela conversou comigo, ainda era muito recente o acidente do Alexy… É óbvio que parecia a única e melhor solução possível.

Essa última parte Armin disse com um sorriso pequeno e exausto que me fez petrificar:

— Mas a questão é: se eu morrer aqui dentro, do que tudo isso serviria, não é mesmo?

Apertei Armin nos meus braços, como se fosse deixá-lo cair de um penhasco caso não o segurasse com força o suficiente:

— Você não vai… — sussurrei com o rosto enfiado no seu pescoço, sem querer completar a ideia.

Armin retribuiu o abraço forte enquanto acariciava o topo da minha cabeça. Ficamos em silêncio por um tempo. Não sei quanto tempo.

— E qual vai ser o plano? — perguntei, depois de me revigorar no seu abraço, erguendo o rosto e limpando os olhos com o tecido rugoso do casaco.

— A pistola que você usou ainda tá ali… Será que ainda tem munição?

— Acho que sim. Mas a gente ainda precisa de um plano pra sair desse subterrâneo.

— E encontrar o Kentin…

— O Kentin… — murmurei. Todos aqueles acontecimentos tinham me deixado fora de órbita ao ponto de esquecer o fato de que Kentin também estava envolvido em tudo aquilo.

— E depois encontrar aquela velha maldita — rosnou Armin.

— Não tem outro jeito mesmo, não é? Acabar com isso sem se manchar de sangue outra vez…

— Enquanto nós não fizermos isso, vamos ser perseguidos até a morte. Exatamente como a sua tia foi. Por isso o único jeito é…

— … cortar pela raíz — completei.

— É.

Balancei a cabeça, afirmativamente:

— Tá bom. E como botamos tudo isso em prática? Como saímos daqui com aqueles caras lá fora? E como achar a Shermansky…?

— Ela tá aqui dentro da escola.

— Como você sabe?

— Lembra que o keypass funciona por uma rede interna da escola? Só estando aqui dentro ela seria capaz de fazer essas transmissões. E aquele elevador… Essa escola é tipo um formigueiro, principalmente aqui em baixo. Tipo… que porra de lugar é esse?

— Faz sentido… Mas tudo isso me faz pensar: exatamente por que tudo isso existe? O que mantém tudo isso funcionando?

— Eu não faço ideia… Mas a diretora parece uma espécie de núcleo. O que implica que acabar com ela, é acabar com a conspiração. É um boss final.

Ri com a sua analogia:

— Então já você que entende melhor disso… Conto com você.

Armin me olhou com uma expressão surpresa a princípio. E em contraste com seu rosto cansado e sujo, como se de repente tivesse sido contagiado por uma grande esperança, sorriu energético:

— Não vai se arrepender.

Sorrimos e nos abraçamos de novo. Nos beijamos também.