Se eu precisasse indicar o começo de tudo, acredito que seria impossível não citar Agatha Wellbelove.

Bem, talvez o início mesmo tenha sido quando minha mãe achou ser uma boa ideia presentear um garotinho de quatro anos com um violino, mas eu sempre gostei de música e ver os sorrisos satisfeitos dos meus pais a cada nova peça que eu aprendia a tocar transformou esse passatempo em uma atividade recorrente. Uma paixão.

É verdade que, após a tragédia que matou Natasha e mudou minha vida para sempre, minha motivação transformou-se um pouco. O instrumento já não era mais uma ferramenta para causar orgulho à minha família, mas sim um meio de externar toda a imensidão de sentimentos que pareciam me sufocar.

De qualquer modo, segui tendo aulas por anos e, mesmo que Watford não tenha propriamente nenhum programa dedicado às Artes (cortesia do maldito Mago!), faço questão de encontrar tempo para praticar.

Justamente em decorrência disso, eu, Dev e Niall estávamos na antiga sala de música na tarde daquela sexta-feira que tinha tudo para ser como outra qualquer. Eu, treinando o violino. Meus dois melhores amigos, me fazendo companhia (e reclamando, claro).

Após a execução à perfeição de mais uma peça de Debussy – uma versão excessivamente melancólica de Clair de Lune, porque eu não sou nada se não dramático – se tornou impossível ignorar a impaciência de Niall, cuja perna direita balançava energeticamente numa espécie de tique nervoso, e meu primo fingindo roncar, como o bastardo irritante que ele é.

— Se é tão insuportável pra você, vá fazer outra coisa. Merlin sabe que seria bom não te ter na minha cola 24 horas por dia...

— Humpft. Você tem sorte de eu gostar de você, porque se não já teria outro nariz quebrado, seu filho da puta arrogante.

Eu e Dev nos amamos. É só que... Temos uma reputação. Cada insulto é basicamente uma declaração de amor (e Crowley sabe o quanto sou bom nessa arte).

Essa linha de pensamento é perigosa, entretanto, e por isso mesmo fiquei tão aliviado quando Niall revirou os olhos, perguntando se não poderíamos tocar algo concebido pelo menos no último século (o que considero um insulto ao pobre Claude, que chegou a viver no século XX), me salvando de um ciclo vicioso de pensamentos desesperadamente apaixonados por Simon Snow.

— Se isso fizer vocês dois pararem de choramingar como se fossem um dos meus irmãos pequenos, posso abandonar a música clássica com prazer.

Apesar das provocações, também estava satisfeito por ter cumprido minha prática semanal de violino e finalmente me dedicar a um estilo musical que vinha me agradado bem mais nos últimos anos. Guardei meu instrumento em seu estojo no tempo exato em que Niall alcançou sua guitarra e Dev se acomodou na bateria.

Sorrindo de lado, troquei o arco do violino por um microfone e rapidamente me posicionei entre meus dois melhores amigos para começarmos nossa diversão.

One, two, three, four!

Me lembro de ter alargado ainda mais o sorriso diante da sintonia entre nós três, capaz de permitir que soubéssemos exatamente a música escolhida e o tempo de cada um para estabelecer o ritmo correto quase que instantaneamente. Em questão de segundos, performávamos o que mesmo o mais modesto de nós teria de reconhecer ser uma versão bem executada de Somebody Told Me, do The Killers.

I'm breakin' my back just to know your name. Seventeen tracks and I've had it with this game. I'm breakin' my back just to know your name, but heaven ain't close in a place like this. Anything goes but don't blink, you might miss.

Uma espécie muito única de arrepio inadvertidamente percorreu meu corpo e, se eu não soubesse a sensação exata que minha elocução produz, seria tentado a chamar aquilo de magia.

'Cause heaven ain't close in a place like this. I said: Heaven ain't close in a place like this. So bring it back down, bring it back down tonight.

Niall e Dev estavam particularmente inspirados naquele dia (talvez eu tenha mesmo os deixado entediados antes) e mandaram muito bem nos seus respectivos instrumentos.

(E eu posso garantir que foi uma performance perfeita. Vantagens de uma audição vampiresca).

Never thought I'd let a rumor ruin my moonlight.

O refrão, quando veio, foi transbordando entusiasmo e uma sensação de que aquilo era simplesmente... certo.

Well, somebody told me that you had a boyfriend who looked like a girlfriend that I had in February of last year. It's not confidential, I've got potential. Rushing and rushing around.

Sem me atendar aos arredores, prossegui para a segunda parte da música com entusiasmo até que:

Ready let's roll onto… — O cheiro de uma quarta pessoa no cômodo atingiu minhas narinas apenas um instante antes do barulho do que eu deduzi serem os pratos de bateria abandonados próximos à porta se espatifando no chão. – Mas que porra...?

— Merda! Me desculpem! Eu não queria atrapalhar...

Ninguém mais, ninguém menos do que Agatha Wellbelove se encontrava na entrada da sala em que estávamos, mais vermelha do que um pimentão.

— Merda. – Ela sentiu a necessidade de acrescentar uma vez mais, por precaução. – Vocês estavam tocando tão bem, eu acabei me distraindo e esbarrei nesse troço.

Vá se lascar, senhorita perfeita, me lembro de pensar. Você não tem o direito de namorar o cara que eu gosto, depois ser super simpática, vir me elogiar e tornar o meu trabalho de te odiar mais difícil.

Antes que eu pudesse deixar escapar algum desses comentários inapropriados, meu primo – Morgana o abençoe! – fez o favor de se manifestar primeiro:

— Valeu, mas... sem querer ser indelicado, que porra você está fazendo aqui? Tipo, eu achei que nenhuma outra pessoa além de nós três sabia dessa ala abandonada...

— Justo. – Wellbelove sorriu, encabulada. – Pra ser sincera, eu acho que ninguém mais sabe. Eu mesma descobri esse lugar recentemente. Eu venho aqui pra poder... bem, usar isso aqui.

Mãos de manicure impecável exibiam um celular de última geração. O que significava que mesmo o trio dourado de Watford desobedecia a proibição de tecnologia do Mago e Agatha simplesmente estava fornecendo essa informação de graça para três filhos das Famílias Antigas, como se não fosse nada.

Subitamente, comecei a gostar mais daquela garota.

— Então podem ficar tranquilos que, no que depender de mim, esse cômodo permanecerá em segredo. Enfim, enquanto estamos falando sobre internet, vocês têm algum perfil da banda de vocês que eu possa seguir ou algo assim?

Niall não reprimiu uma risada surpresa diante do comentário.

— Nós não somos uma banda de verdade. Só tocamos de vez em quando...

— Jura?

O cenho franzido em descrença no rosto bonito da nossa colega de classe fez maravilhas para meu ego, confesso. Resolvi, finalmente, me manifestar:

— Sinceramente, Wellbelove, eu nem sequer poderia imaginar que esse seria um estilo de música que te agradaria, em primeiro lugar.

(O sorriso pretencioso que pintou seus lábios ao se dirigir a mim, ao contrário, não me agradou nada.)

Ela me encarou de cima a baixo como se pudesse me ler por completo e, ainda que ela não tenha me denunciado depois de me flagrar drenando alguns roedores na Floresta Oscilante, essa loira seguia sendo perigosa demais.

— É mesmo, Basilton? Pois eu poderia dizer o mesmo de você e da sua postura usual de um cavalheiro do século passado.

Dev, traidor, se desmanchou em risadas.

— Mas sério, eu pelo menos pensaria na possibilidade. Vocês são bons e nós não temos muita diversão no Mundo dos Magos, muito menos aqui nos arredores da escola. Seria um sucesso. Merlin sabe que eu adoraria experimentar a liberdade desses rockstars.

E foi assim, com esse papinho suave, que esse demônio em forma de gente de algum modo nos convenceu a continuar a tocar para que ela pudesse escutar, cuidadosamente plantando sementinhas da ideia de uma banda em nossas pobres mentes facilmente influenciáveis aqui e ali.

Depois de umas três músicas, notei Niall concentrado no movimento que os dedos de Agatha pareciam traçar em sua coxa, enquanto ela distraidamente balançava o tronco no ritmo da canção.

— Você toca?

— Hum? Ah, bem, eu sei um pouco de baixo.

Foi observando o perigoso brilho de uma ideia nos olhos castanhos de Dev Grimm que eu soube que estávamos fodidos.

(Da melhor forma possível, entretanto.)

○♪○

Para (tentar) manter nossa dignidade, eu e os meninos só efetivamente concordamos com a ideia da banda no dia seguinte. Honestamente, foi a melhor estratégia possível, porque o olhar enciumado e confuso estampado na cada do Snow quando me aproximei da mesa deles na hora do chá para chamar Agatha para uma conversa foi impagável.

Ela me acompanhou até onde Dev e Niall estavam sentados com pouco mais do que um rolar de olhos (que até agora não sei se foi direcionado ao Simon ou a mim), mas seu rosto pintou-se de surpresa e algo mais quando oficializei o convite para que ela fizesse parte da nossa banda-ainda-a-nomear.

— É sério? Quero dizer, vocês não devem nada a mim só porque fui eu quem deu a sugestão. E eu...

— Ora, Wellbelove, você estava lá ontem. Estávamos tocando bem antes, é verdade, mas ficamos mais completos com você. A vaga é sua, se quiser.

O tal algo a mais se condensou numa emoção mais notável depois de minha declaração e então tive certeza.

Alegria, esperança, liberdade. Se a música também lhe oferecia essas coisas, éramos mais parecidos do que eu imaginava.

Então foi uma surpresa boa, ao longo das duas semanas que se seguiram, descobrir que nós quatro nos dávamos bem para além dos covers que tocávamos juntos naquela sala esquecida de Watford.

Passei anos flertando com Agatha só para conseguir alguma reação do Simon, mas nunca tinha realmente me permitido conhecê-la. (A culpa é toda minha, às vezes sou um babaca). Eu esperava uma princesinha perfeita e o que encontrei foi uma garota de língua afiada, capaz de parecer muito mais à vontade consigo mesma comendo batatas-fritas murchas surrupiadas da cozinha por Niall e rindo das besteiras de Dev do que exercendo o papel de donzela em perigo aparentemente lhe designado.

Uma tarde – talvez embriagados pela quantidade alarmante de letras falando sobre se expressar, ser original e ir contra os planos que o mundo designou para você – começamos a falar sobre os nossos objetivos para o futuro e o quanto, se fossemos honestos, eles eram diferentes dos quais nossas famílias esperavam de nós.

Eu já sabia sobre as questões de Dev e Niall, especialmente por serem bastante similares às minhas: ser uma pessoa LGBTQIA+ quando se é descendente das Famílias Antigas não é exatamente fácil e, além disso, nenhum de nós deseja fazer parte do Clã. Nem sequer a faculdade que queremos cursar é uma questão fácil.

Surpreendentemente, de nós três eu acho que eu sou a pessoa com menos conflitos familiares a respeito disso, porque apesar de meu pai estar longe de entender e prontamente aceitar tudo o que sou, – isto é, um vampiro gay apaixonado por literatura – eu sei que ele tem se esforçado. Daphne tem ajudado bastante a melhorar nossa relação como pai e filho e, além disso, ele pelo menos apoia minha decisão de seguir os passos da minha mãe e dar aulas em Watford.

Mas Agatha... Eu sinceramente não imaginava o quão presa e descontente ela se sentia com as coisas esperadas dela.

— É, eu sei. A garota que tem tudo, reclamando. Que clichê. Mas é só que... Me irrita tanto que meus pais... E a escola toda, na verdade, achem saber exatamente cada passo sobre o meu futuro. – Okay, entendi o recado, pensei. – Eu não quero casar, ter filhos e só. Eu nem sei se quero essas coisas. Se vocês soubessem o olhar triste e decepcionado da minha mãe quando soube que eu e Simon tínhamos terminado de vez... Arg, eu quis morrer!!!

Definitivamente, eu não fazia ideia.

Sobre as expectativas, quero dizer. Sobre o término... Eu não tenho orgulho nenhum de ser o consumidor número um das fofocas de corredor sobre o casal 20 de Watford, mas aparentemente essa é minha vida, então...

— E eu não dou a mínima para o Clube ou pra Mágica em si. Eu tenho sonhos! Quero ir morar na Califórnia e estudar veterinária, só que parece que ninguém me entende. Não exatamente. Tenho segredos demais para ficar confortavelmente entre os Normais e desprezo o caminho traçado pra mim aqui... É como se eu tivesse vindo... da lua! Sei lá... É loucura...

Só que a questão era... Não exatamente.

De algum modo, por mais improvável que fosse, todos nós tínhamos esse profundo descontentamento pela imagem que o mundo idealizou de nós mesmos em comum e as coisas que Agatha disse, especialmente, ficaram martelando em minha cabeça.

Foi assim que eu compus nossa primeira música.

Um misto de animação e insegurança crescia em meu peito a cada segundo do dia em que decidi finalmente compartilhar a composição com meus parceiros no nosso ensaio. As aulas pareciam se arrastar, mas finalmente me vi diante deles em nosso ponto de encontro habitual e reuni coragem o suficiente para dizer que tinha escrito uma coisa.

Entreguei uma folha com a letra (e a tradução, garantindo que todos entendessem os versos) para cada um e me pus a cantar.

Io vengo, io vengo, io vengo... Io vengo dalla luna che il cielo vi attraversa.

Preferi focar meus olhos no chão durante a performance, porque não queria arriscar ver qualquer tipo de reprovação que me desencorajasse a continuar no rosto de algum deles.

Stupido ti riempiamo di ninnoli da subito in cambio del tuo stato di libero suddito. No! È una proposta inoportuna. Tieniti la terra, uomo, io voglio la luna. — Essa parte em especial ressoava com várias das ideias despertadas a partir daquela confissão de Agatha, temperadas com minha própria insatisfação de sermos todos classificados como heróis ou vilões, quando na verdade somos só adolescentes. – Io non sono sano, io non sono pazzo. Io non sono vero, io non sono falso. Io non ti porto jella ne fortuna. Ma io, sì, ti porto sulla luna...

Minha ansiedade retrocedeu um pouco quando percebi Niall murmurando as linhas do refrão junto comigo. Soube ali que pelo menos alguma coisa eu deveria ter acertado.

Io vengo dalla luna. Ma io vengo dalla luna. Ma io vengo dalla luna. Ma io, io, io...

Assim que terminei, fui esmagado num abraço coletivo que me pegou totalmente desprevenido.

— Puta que pariu, Baz!!!

— Isso foi incrível!

— Desde quando você fala italiano?!

Nunca soube bem como responder a elogios, embora goste muito deles, então resolvi me focar na resposta da última das perguntas:

— Eu tenho ascendência italiana. Aprendi a falar desde pequeno...

O revirar de olhos em resposta vindo do meu melhor amigo deveria ser ofensivo, mas eu apenas sorri, dando de ombros. Agatha então perguntou se o que inspirou a letra foi aquela conversa de dias atrás e não demorei a confirmar.

— É como você disse: somos deslocados. Temos tudo e não queremos nada disso. Lunáticos...

Alguns minutos depois, enquanto conversávamos sobre acordes e ritmo, uma risadinha contemplativa de Dev me chamou a atenção.

— O que foi?

— Eu só achei engraçado como você parece ter um negócio com a lua, Tyrannus. – Ele retrucou, zombeteiro. – A música de ninar que você tava tocando no violino no dia em que Agatha nos descobriu não tinha algo com isso também?

— Clair de Lune?

— Isso mesmo.

Foi a vez de Wellbelove franzir o cenho, puxar o celular do bolso e rapidamente digitar algo no aparelho, apenas para exibir uma expressão satisfeita e vitoriosa na sequência.

— Pessoal. Acho que tenho o nome de nossa banda...

○♪○

Depois daquele ensaio, Dev botou sua lábia (e sobrenome) em uso para mexer uns pauzinhos e em poucos dias a escola toda comentava sobre a tal banda que se apresentaria num pub localizado na vizinhança de Watford no último final de semana do mês.

Acatamos a sugestão de Wellbelove e intitulamos nosso grupo de Måneskin, que aparentemente quer dizer “luar” em dinamarquês.

(Taí outra coisa que eu não fazia ideia: a mãe dela não é britânica. Vivendo e aprendendo...)

Todas as questões consideradas, aquela foi uma semana puxada, então quando Dev simplesmente se jogou no chão assim que adentrou nossa sala de ensaios... Bem, eu podia me identificar com o sentimento.

— Arrumem um novo baterista. Eu estou morto.

Justamente por conta da minha empatia, lhe dei um total de dois minutos de tolerância antes de chutar de leve sua coxa:

— Chega de drama. Vamos, seu paspalho.

— Ninguém nessa banda tem consideração pela minha pessoa. – Meu primo proferiu, apoiando teatralmente a mão direita sobre o peito. Niall então se aproximou dele, revirando os olhos e oferecendo uma palma estendida para que ele se levantasse. – Ah, sim. Estenda sua mão misericordiosa para mim, Chuchu.

O movimento sugestivo de suas sobrancelhas me preencheu de um misto de arrependimento por ter juntado esses dois e uma vontade imensa de rir.

(Mentira, eu jamais poderia me arrepender de tê-los ajudado. Eles são perfeitos um para o outro e vê-los felizes é uma das melhores coisas do mundo.)

(Sim, eu sou um romântico. Me processe.)

Algo na fala de Dev me deu uma ideia, entretanto, e logo eu estava buscando uma cifra em meu celular.

— Pessoal, o que vocês acham dessa música aqui?

Todos toparam, é claro, porque a sugestão combinava perfeitamente com o momento que acabáramos de presenciar, mas com as adaptações de ritmo que fizemos nossa versão de Beggin' ficou realmente boa.

Put your loving hand out, baby 'cause I'm beggin'. I'm beggin', beggin' you. So put your loving hand out, baby. I'm beggin', beggin' you. So put your loving hand out, darlin'…

Quando cheguei nos versos em que o eu-lírico fala sobre se esforçar para ser o tipo de cara que a pessoa amada deseja e isso ser a única forma de começar a viver de novo... Não pude deixar de notar o olhar amoroso entre Niall e Dev, sabendo o quão verdadeiro era aquele sentimento para eles dois.

Assim que a música acabou, Dev largou as baquetas e envolveu meu melhor amigo num beijo apaixonado.

— Jesus, Dev! – Wellbelove exclamou, rindo.

— A única coisa que eu tenho a lhe dizer, Agatinha, é: baba, baby. Eu tinha o maior crush em você até o terceiro ano, mas você foi lá e resolveu namorar o Escolhido. Os corações dos pobres rapazes da família Grimm ficaram partidos por meses.

Subitamente, meu afeto pelo meu primo retrocedeu algumas casas.

— Cala a boca, Dev.

— Enfim, isso são águas passadas. – Ele retrucou, com um sorrisinho cínico na minha direção. Bastardo. – No momento eu estou mais do que feliz com o meu docinho de coco aqui.

— Vocês ainda vão me dar diabetes qualquer dia desses, sabia?

— Não se preocupe, tu é amargo o suficiente pra contrabalançar.

— Ora, seu... Okay, deixa eu mostrar uma outra música que escrevi antes que a gente siga nessa palhaçada de ficar trocando insultos o dia todo.

Não sei dizer precisamente o porquê decidi compartilhar aquela composição com eles. Se a primeira já havia me deixado um tanto apreensivo, essa era ainda pior.

A inspiração para a música veio em uma noite, numa das longas reflexões sobre a minha experiência como vampiro e também... Está bem, também um tico sobre Simon, portanto sim, a letra acabou saindo mais pessoal do que eu esperava.

Sem mais delongas, expliquei para Dev como eu imaginava a batida, me pus a cantar e o começo fluiu com uma naturalidade tal qual respirar. Apenas algumas estrofes mais a frente é que o significado por trás dos versos se fez pesar em minha garganta.

'Cause I am a poor man. And I cannot read your mind. Baby, I can't see what you think 'cause my eyes are blind. — Simon é um livro aberto em quase todos os momentos, mas há vezes em que ele me olha e eu não sei identificar o sentimento por trás daquele azul. Uma parte minha insiste em sugerir ternura, mas tenho certeza de que é apenas a cegueira do meu amor falando. – And I feel the wind. Is coming from the sea. But the birds still fly I've got a secret to keep.

Sim, eternamente um segredo guardado e é claro que, de todas as pessoas, tinha que ser justo ele a ser capaz de me ler completamente. Bem, Simon, essa é minha confissão, me lembro de pensar, amargamente, enquanto escrevia aquelas linhas.

So you can follow me, untill they catch me and kill me out. It's my recovery. And we will forget of the clouds. — Snow está constantemente me seguindo esperando encontrar evidências de algum plano terrível, quando a única coisa que eu planejo é um único beijo antes dele me matar. – 'Cause there's no hitch, no baby, there's no fence. No baby, there's no set-back that will stop me. So you can follow me, until they catch me, they catch me and kill me out, out, out, out, yeah…

Precisei me conter para que minha voz não traísse minha emoção, mas, apesar da melancolia, aquilo tudo era muito sincero. O conhecimento de que aquele muito provavelmente seria meu fim não me desencorajava de forma alguma. Amar Simon Snow sempre foi a minha dor e o meu remédio ao mesmo tempo.

'Cause baby you're the ache that comes right into my vein. You're like a super christal drug that takes away all my pain. You're a soldier but you'll never wear you armor again. Now you found freedom but now tell me who knows your name.

Há um milhão de razões pelas quais eu odeio o Mago, mas talvez a principal delas é a forma como ele trata Snow apenas como um soldado. Eu daria tudo para que ele visse como merece mais do que o que aquele projeto de Robin Hood bigodudo lhe oferece, mas Simon jamais me daria ouvidos...

Because I know hoe does it feels to feel like you're reflected from the mirror of the shame. And you feel like you're the last man. — Tantas vezes me odiei tão logo proferi alguma brincadeira sobre Simon ser péssimo com magia, porque eu sei que ele gostaria de ser tão bom com uma varinha como é com uma espada. Sei que ele se culpa pelas mortes que tem nas costas. Eu, mais do que ninguém, entendo sobre temer ser um monstro. – And you feel like you're suspected of a murder that you've never done. Now you found freedom but your freedom is just like a…

Agradeci mentalmente por já estar no final da canção e tratei de encerrá-la antes que minhas emoções começassem a transparecer. Logo descobri, entretanto, ter feito um péssimo trabalho tentando disfarçar meus sentimentos, porque os três me encaravam meio boquiabertos.

— Ficou assim tão ruim?

— Claro que não! Está ótima, é só que... – Agatha é a primeira a se manifestar. – Bom, acho que tudo faz sentido agora.

— Como assim?

— Baz, você não pode achar que a gente não saiba sobre o que e quem é a música...

Me ocupei em tirar um fiapo inexistente da minha camisa, apenas para não demonstrar minha expressão levemente assustada.

— Eu não sei do que você está falando, Wellbelove.

— Se serve de alguma coisa, eu acho que vocês fariam um casal fofo. Merlin sabe que faria muito mais sentido do que eu e ele jamais fizemos.

Arregalei os olhos – diante da fala em si, mas também por conta da sinceridade tangível em sua voz – e, simples assim, Agatha foi promovida a uma das minhas pessoas favoritas.

Claramente divertindo-se com meu choque, mas também tentando me ajudar a aliviar o peso daquele momento, Niall interveio:

— Você tem mais alguma coisa inédita? Porque, caso sim, você precisa mostrar agora pra gente poder aprender a tempo.

Precisei considerar por apenas um segundo antes de responder:

— Eu finalizei Zitti e buoni e... – Num daqueles momentos em que agradeço por minha quase inabilidade de corar, prossegui. – Eu tenho mais uma, mas talvez vocês achem que ela é meio... demais.

Meus companheiros de banda trocaram um olhar interessado e, retomando minha posição diante do microfone, pensei comigo mesmo que já não tinha mesmo nada a perder.

○♪○

Se eu tivesse de descrever os passos que me trouxeram até o momento presente, honestamente acho que encontraria alguma dificuldade. Minha memória é capaz de conjurar uma sequência de trabalhos, provas e ensaios que culminaram com eu, Dev, Niall e Agatha nos arrumando para subir num palco pela primeira vez.

De algum modo, ainda inteiros.

De algum modo, esperançosos e animados.

De algum modo, prontos.

Eu e esses três magos malucos que são meus melhores amigos.

(Sim, Wellbelove inclusa. Eu sei, chocante. Mas não posso fazer nada se essa garota é sensacional.)

Duas saletas no fundo do estabelecimento foram reservadas para servirem como camarim improvisado e, quando um garçom vem nos avisar que poderemos começar nossa apresentação em menos de cinco minutos, sou tomado pela apreensão. Sei que o bar está lotado até as tampas de estudantes de Watford e o frio na barriga que isso me causa é tão incomum que quase rio de nervoso.

Mas agora não é hora de amarelar. Estamos preparados, com nossos figurinos, maquiagem e instrumentos afinados. A excitação nos olhos dos meus colegas faz qualquer medo valer a pena e subitamente sei que vamos arrasar. Não necessariamente por sermos bons (o que somos), mas principalmente porque esse é nosso momento de liberdade. De diversão.

É o que temos buscado desde muito antes deste nosso desejo ter um nome.

Com um último aceno de boa sorte, subimos no palco improvisado e os arquejos sobressaltados vindos das pessoas na plateia que nos reconheceram servem de prelúdio para nossa música de abertura.

In this context, there's no disrespect. So when I bust my rhyme, you break your necks. We got five minutes for us to disconnect from all intellect, collect the rhythm effect. To lose your inhibition, follow your intuition. Free your inner soul and break away from tradition…

A escolha por começar com Let's Get It Started foi absolutamente proposital e nós obtemos exatamente o resultado desejado: quem conhece a letra, se junta a mim no coro dos versos, contribuindo com a energia do show.

Além disso, ela parece prenunciar o que vivenciamos na sequência. Até onde meu olhar alcança, vejo o público curtindo nosso som, dançando e se impressionando com o claro rompimento que nossa apresentação ocasionou em suas visões sobre esses quatro descendentes de tradicionais e abastadas famílias do Mundo dos Magos.

Quando me dou conta de que nosso tempo no palco está se encerrando, acabamos de performar Zitti e buoni, a qual escrevi justamente sobre sermos das Famílias Antigas e não nos identificarmos nada com seus ideais ultrapassados. Vi conviene stare zitti e buoni e Quindi scusa mamma se sto sempre fuori, ma sono fuori di testa, ma diverso da loro. Não ficaremos mais calados e comportados. Somos diferentes deles.

Noi siamo diversi da loro!

As pessoas particularmente se animaram com essa. Acredito que, mesmo não entendendo italiano, dê para captar a energia da letra.

Estou bebendo um gole d’água, mal contendo um sorriso pelo fato de tudo ter dado certo até agora, quando Agatha se aproxima de mim, apontando discretamente com a cabeça para um ponto específico da plateia.

— Simon está aqui. Ele não tirou os olhos de você a noite toda.

Maldizendo cada um dos ratos que drenei mais cedo, me sinto corar.

— Ele está sempre me encarando, Aggie. Não há nada fora do normal.

— Ele parece estar tendo sérias dificuldades para respirar, então não sei se exatamente concordo com você, mas tudo bem. – Revirando os olhos para mim, ela se prepara para se afastar e reassumir seu posto, mas não sem antes um último comentário. – De qualquer modo, acho que devíamos encerrar com aquela música...

Sei exatamente do que ela está falando e, ainda que eu não me permita compartilhar da esperança por algo além de ódio vindo do Herdeiro do Mago, não vejo porque não oferecer um show à altura.

Sorrindo maliciosamente, tomo o microfone nas mãos e dou o sinal para os demais integrantes da banda: é hora de I wanna be your slave.

I wanna be your slave, I wanna be your master. I wanna make your heartbeat run like rollercoasters. I wanna be a good boy, I wanna be a gangster. 'Cause you can be the beauty, and I could be the monster.

Me superei nessa música. Sei disso.

Botei pra fora todos os meus desejos perturbados, os anseios impossíveis, os medos constantes. As melhores e as piores partes de mim.

Tome isso, Simon Snow, é o único pensamento coerente em minha cabeça quando nossos olhos se encontram por um brevíssimo instante. É minha confissão para você. Em todos os sentidos.

I love you since this morning, not just for aesthetic. I wanna touch your body, so fucking electric. — Sei que ninguém assistindo sabe das minhas motivações por trás da canção, mas a excitação de proferir um “eu te amo” abertamente faz com que um arrepio de eletricidade me percorra da cabeça aos pés. Essa música é o ápice de meu desejo, mas o amor não fica de fora. – I know you scared of me, you said that I'm too eccentric. I'm crying all my tears, and that’s fucking pathetic.

Como já decidi que farei tudo ao meu alcance para que esta seja A performance, não resisto a oportunidade de mexer com a cabeça do meu querido Escolhido e deliberadamente deslizo minha língua sob um dos caninos no momento em que canto sobre ser “excêntrico”.

Tenho certeza de que Snow deve estar fumegando e isso me dá vontade de gargalhar, dominado por esse frenesi e borboletas no estômago.

I wanna make you hungry then I wanna feed you. I wanna paint your face like you’re my Mona Lisa. I wanna be a champion, I wanna be a loser. I’ll even bе a clown, 'cause I just wanna amuse you.

Porque a verdade sempre foi essa: estamos em lados opostos de uma guerra e eu não me importo de ser o perdedor se puder testemunhar a glória do seu rosto concentrado, preparando-se para a batalha.

I wanna be your sеx toy, I wanna be your teacher. I wanna be your sin, I wanna be a preacher. I wanna make you love me, then I wanna leave you. 'Cause baby I'm your David, and you’re my Goliath.

Cada acorde do ritmo ressoa em consonância com os sentimentos responsáveis por inspirar essa letra e me sinto testemunha de um tipo muito particular de encantamento. Luzes vermelhas trepidam e na rouquidão de minha voz está a provocação e a lascívia que tantas vezes me mantiveram acordado durante a noite.

O refrão se aproxima e atinjo o topo de meu potencial. Dou o máximo dos movimentos do meu corpo, de minhas expressões e de minha capacidade vocal, porque eu sou tudo isso.

Um demônio, um assassino, um vilão, uma aberração, um monstro.

E essa é minha busca por redenção.

I wanna make you quiet, I wanna make you nervous. I wanna set you free but I'm too fucking jealous. I wanna pull your strings like you’re my telecaster. And if you want to use me, I could be your puppet.

Preciso me lembrar de agradecer abundantemente a Agatha por ter tido a ideia da banda e nos proporcionar essa experiência, pois nunca antes me senti tão vivo. A liberdade de demonstrar transparência, quando constantemente minha maior preocupação é justamente ocultar qualquer vulnerabilidade... Definitivamente há um poder gigantesco nisso.

'Cause I'm the devil who’s searching for redemption. And I'm a lawyer who’s searching for redemption. And I'm a killer who’s searching for redemption. I'm a motherfucking monster who’s searching for redemption!

Minha exclamação dá a deixa para o solo e, com minha visão periférica, vejo Niall e Aggie se divertindo enquanto tocam. Dev também, ao fundo, exibe um sorriso satisfeito no rosto.

É, isso certamente valeu a pena.

— I wanna be your slave, I wanna be your master. — O fim da música é seguido por uma explosão de aplausos e, transbordando de orgulho, encerro nossa apresentação. – Muito obrigado por nos recebem esta noite, pessoal. Meu nome é Baz Pitch e nós somos o Måneskin. Até a próxima!

Tenho tempo apenas de descer do palco até ser esmagado num abraço coletivo animado.

— Morgana, isso foi incrível!

— Eu não acredito! A gente arrasou!

Meus olhos ficam marejados em resposta à felicidade dos meus amigos e eu não vim aqui para isso, mas acho que tenho permissão para mandar minha reputação para as cucuias de vez em quando...

Os abraço ainda mais forte.

— Obrigado. Eu jamais faria isso sem vocês...

Niall me encara com clara afeição no olhar e me dá dois tapinhas nas costas, antes de virar-se em direção ao namorado.

— Sabe o que esse momento pede? Álcool. Vem, Dev. Vamos pegar uns drinks.

Agatha assente, mas ao invés de fazer menção de segui-los, vira-se em direção ao camarim.

— Encontro vocês daqui a pouco. Só vou trocar esse figurino por uma roupa mais confortável, okay?

Diante de suas palavras, olho para meus próprios jeans absolutamente justos e meu peito totalmente exposto. É, talvez fora do palco seja um pouco demais.

— Também vejo vocês depois.

Venço rapidamente os poucos metros até a saleta onde estão minhas coisas e mal tenho tempo de tirar os fios do retorno de som quando ouço uma batida insistente na porta.

— Aggie, é você? Pode ir encontrar o meninos que assim que eu terminar procuro vocês e...

Quem escancara a porta, entretanto, não é Wellbelove.

É Simon Snow.

— Mas que porra...?

Mal tenho tempo de proferir minha indignação antes que ele me empurre contra a penteadeira, encarando-me com fogo no olhar.

Seus cabelos estão desalinhados e, ao passar os olhos por seu corpo, não sou capaz de conter um arquear de sobrancelhas surpreso diante de um detalhe específico...

— O que você tá olhan...? Arg, não ouse encarar a porra do meu pau duro enquanto a gente discute! – Ele acabou de admitir em voz alta...? E isso conta como uma discussão? Minha confusão é palpável e talvez seja isso que o impulsiona a continuar falando. – Que ódio! É por sua causa, Baz! Tudo é por sua causa...

— Merlin, Simon...

— O quê?

— Será que você escuta as coisas que fala?

Não posso ter entendido certo. Não faz o menor sentido.

Mas depois de me encarar em silêncio por uns dois segundos, não há como negar a realidade dos lábios que tanto desejei pressionando insistentemente os meus.

Agarro, desesperado, o garoto em minha frente. Com medo de que com um simples descuido sua imagem desapareça, como miragem.

— Me diz que eu não tô louco.

Simon fala isso no exato momento em que me concentro em beijar seu pescoço e eu juro silenciosamente que se ele escolheu esse instante para fazer alguma piadinha sobre vampirismo, não me responsabilizo pelos meus atos.

— Como assim?

— Me fala que não é loucura. Que eu não imaginei tudo isso. Você realmente cantou aquela última música pra mim, né?

Ah.

— Não.

Mas não dou tempo para que Simon se afaste ou se arrependa. O puxo para ainda mais perto, colando nossos corpos, sendo o mais rápido possível em esclarecer.

Já perdi tempo demais tendo medo.

— Eu escrevi pra você.

— Cristo.

Num segundo, estamos nos beijando com paixão novamente. Pelo menos até que ouço uma voz conhecida exclamar “Poderosa Morgana!”. Sem nem piscar, bato a porta com força na cara de um Dev de olhos arregalados.

— O-o quê? Baz, por que você fez isso? Ele...

A imagem de Simon Snow com os lábios avermelhados e os cabelos desalinhados por minha causa é mais do que sou capaz de aguentar passivamente e é por isso que, contendo um grunhido, me ocupo em trancar a porta, enquanto respondo.

— Meu primo vai ficar perfeitamente bem. E você... – Me aproximo cuidadosamente até que ambos estejamos novamente a poucos centímetros de distância. – Você não tem o direito de começar a gaguejar e ficar tímido agora, entendeu? Nós dois ainda temos muitos versos para botar em prática, certo?

Apesar da bravata, todo meu corpo treme e é com um alívio indescritível que observo os lábios entreabertos de meu amado curvarem-se num sorriso.

Simon então deposita sua mão direita na minha bochecha e o gesto transborda uma doçura que não tinha dado as caras até agora, mas que poderia me matar de esperança e felicidade.

— Está bem.

É. Esse realmente foi um show para a história...

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.