Hold my hand, everything will be okay

I heard from the heavens that clouds have been grey

O ruído dos tiros disparados foram os únicos que cortaram o silêncio da tarde fria de domingo. Ao redor deles, Nova York parecia ter reduzido a um local interiorano qualquer, tal a quietude que prevalecia no ambiente, como se a cidade tivesse voluntariamente estacado para se debruçar sobre aquele momento de tristeza.

De longe, sob o sol que já se punha no horizonte, tornando ainda mais amarelada a paisagem outonal, já extremamente monocromática pela falta de cor do extenso gramado e a falta de folhas nas poucas árvores plantadas naquela área do cemitério, observava as honras militares serem seguidas à risca para a cerimônia do serviço memorial.

Deveria ser em Arlington, na Virgínia, sabia, pois o Capitão América era o soldado mais famoso de todos os tempos. Porém, ele era um tradicional homem de Nova York, do Brooklyn, e este sempre foi um de seus traços mais marcantes. Os becos sujos, as ruas eternamente movimentadas, os prédios acinzentados de tijolos à vista, as luzes da cidade que nunca dormia e avenidas sem fim haviam forjado Steve Rogers. E lá deveria restar, para sempre.

Os militares uniformizados em azul se posicionaram novamente e o caixão, coberto com a bandeira do país, foi baixado em absoluto silêncio. De onde estava, apertou os lábios e guardou as mãos bem fechadas nos bolsos do casaco negro, tentando ignorar o bolo em sua garganta, mas, como em um reflexo daqueles que acompanhavam de perto, a céu aberto, a cerimônia pomposa que o Capitão América merecia, não conseguiu impedir que uma lágrima rolasse por seu rosto.

Agora, depois de tudo, era como se o passado tivesse sido realmente congelado onde deveria estar. As duas pessoas que os lideraram, e também que os rivalizaram, estavam mortas. Stark e Rogers. Por um momento, era como se tudo pudesse ser deixado para trás, o que era… Triste, de certa forma. Tudo o que haviam sido, para bem ou para mal, acabara. Nada era como antes há algum tempo, mas sentia como se o elo que tinha com essas pessoas segurasse algo de quem costumava ser.

Sabia que era estranho que se sentisse conectada a Tony Stark também, o que notara no serviço de funeral preparado para sua despedida, muito tempo atrás. Fora opressor estar presente para honrar a memória de um homem, que por tanto tempo, antagonizou, ainda que unilateralmente, mas, no fim das contas, a conexão deles, que resistia neste ponto delicadamente intrincado, tinha sido sobreposta por algo maior e compreendia seu sacrifício. Até admirava.

Não havia sido convidada para o funeral de Steve Rogers, mas imaginou que ele não se incomodaria. Mesmo depois de tudo. Ele a olharia com aquele olhar desapontado, mas compreensivo, sentaria ao seu lado, seguraria a sua mão e a ouviria. Com atenção, como ninguém nunca fazia com ela. Logo depois, ele gastaria seu tempo explicando que, aquilo que estava sentindo, que soava infindável na limitação de seu ser, iria passar.

Wanda não precisara assistir ao noticiário nem atender a chamada de Sam para estar consciente de sua partida. Simplesmente sabia, como se algo houvesse sussurrado no fim de sua mente no instante do espatifar de um prato de porcelana no chão. A dor fora imensurável, mas presenciar a concretude daquela realidade era quase intolerável.

Porém, lembrou a si mesma que este era o ciclo natural da vida, uma escolha que o Capitão fizera para si mesmo, pela primeira vez egoísta ante a eterna glória da História. Não o condenava por ter escolhido a própria felicidade, ainda que comprada de maneira pouco ortodoxa, pois estava sempre a buscando para si, de certa maneira.

I see that you're hurtin', why'd you take so long

To tell me you need me? I see that you're bleedin'

You don't need to show me again

Respirou fundo, não fazendo muito esforço em afugentar o quase ordinário aperto que prevalecia em seu peito. Seria impossível, a julgar pela bolha de lamentos e tristeza profunda, que habitava os presentes, muitos metros à frente em campo aberto. Além da imprensa de vários lugares do mundo, da presença de autoridades e dezenas de militares uniformizados, colegas que tivera durante toda a vida, notou onde a dor prevalecia mais: nos âmagos de rostos conhecidos.

Podia senti-los mais acentuados do que qualquer outra coisa, especialmente em quem era mais próximo de Steve. Os filhos e netos que tivera com Peggy Carter, Sam, Sharon Carter, Barnes, Scott, T’Challa, Clint, Banner, até Peter Parker e Strange, mais afastados, mas respeitosamente estacados na segunda fila.

Imaginou a falta que Natasha fazia naquela fileira, era o terceiro deles que se fora. Como Barnes e Sam, ela também teria compreendido que Steve quisesse viver sua vida em longevidade de verdade, não em longevidade forjada, depois de todos os sacrifícios feitos por todos.

Uma brisa fria repentinamente a atravessou e, quando abriu os olhos molhados novamente, todos já estavam se despedindo e rumando para a saída do local, onde a maioria dos veículos estava estacionada. No entanto, enquanto as pessoas se despediam e saíam, notou que Barnes voltou a se sentar em seu lugar e assim se manteve pelos próximos minutos. Ninguém se importou. Em sua postura sempre silenciosa e sucinta, ele não estava só dessa vez, estava com Steve, seu amigo mais antigo.

Wanda amava a ligação que tinha com o Capitão, era um tipo de amizade que jamais teria novamente, e sabia que Sam construiu uma grande relação e parceria com ele, mas não havia nada como o que tinha com Bucky. Eles eram como que eternos no caminho um do outro, de uma forma ou de outra. E, embora Barnes não tivesse ideia disso, ficava feliz por eles, embora resignada pela dor que estavam inevitavelmente destinados a viver.

Naquele momento, enquanto os outros o deixavam a sós com suas memórias, no entanto, era como se estivesse sangrando em si mesmo. Algo se quebrara nele e, da mesma forma que Wanda sentia estar fechando um capítulo, para ele era como deixar uma vida inteira para trás. Havia conhecido Steve há mais de cem anos e, por mais que tivessem seguido caminhos muito distintos, tudo o que acontecera com Barnes também fora por conta de Steve e vice-versa. Por mais que, antes, tivessem estado separados, por um motivo ou outro, dessa vez o adeus era para sempre.

Utilizando de suas habilidades para mergulhar brevemente nas profundezas alheias, algo que geralmente evitava, notou que era um tipo de luto parecido com o do amigo, embora suas personalidades fossem diferentes. Mesmo com sua típica rigidez, Steve costumava ser aberto o bastante para deixar outras pessoas se aproximarem, enquanto Barnes preferia se manter à distância, como um observador profissional, que tinha sempre uma opinião ácida para soltar, se necessário, solitário em suas convicções.

Apesar disso, foi apenas muito mais tarde, quando o sol já estava praticamente posto no horizonte e as sombras já recaíam sobre o campo aberto do cemitério, que Wanda decidiu se aproximar. Barnes não tinha a intenção de ir embora tão cedo, parecia ter simplesmente desligado, perdendo-se em memórias, possibilidades e receios sobre os quais resolveu não se aprofundar em respeito a sua privacidade. Superficialmente, todavia, compreendia o estado quase letárgico em que se encontrava, como se não tivesse processado que viveria em um mundo sem Steve Rogers, depois de tanto tempo.

Raise your head, look into my wishful eyes

That fear that's inside you will lift, give it time

O ruído de seus passos contra a grama seca cortou o silêncio e Wanda ultrapassou as fileiras de cadeiras até chegar à primeira, logo à frente de onde jazia a recente lápide. Em um suspiro cansado, como se o dia pesasse sobre seus ombros, acomodou-se logo ao lado do sargento, que sequer a dirigiu um olhar enquanto mantinha os olhos fixos no pedaço de pedra clara carregando o nome do amigo.

Por mais que as feições se mantivessem completamente passivas e impenetráveis, conseguia enxergar a tempestade nos olhos muito claros e sérios. Encarou com atenção, percebendo, não pela primeira vez, que ele não conseguiria esconder muito por ali nem se tentasse, e voltou a esconder as mãos nos bolsos.

— Pensei que não pudesse colocar os pés no país. - Ele divagou.

— Eu não posso.

Seus olhos varreram o gramado repleto de lápides apenas para confirmar quão sozinhos estavam. Era melhor assim. No entanto, ele se voltou à ela para encará-la com atenção.

— Às vezes, eu esqueço que é uma quebradora de regras.

Para qualquer pessoa comum, o tom casual dele passaria completamente despercebido, mas podia ver como servia para mascarar o que realmente sentia.

— Só quando vale a pena. - Wanda deu de ombros de maneira suave, no que ele forçou um riso fraco e encostou-se à cadeira ao seu lado, cruzando os braços.

— Como Steve.

Sorriu confirmando, mal conseguindo esconder o orgulho que a atingira. Podia iludir a si mesma sob aquela aura quase fantasiosa que pairava no local, ainda que a realidade da foto de um jovem Steve Rogers sorrindo para uma câmera de qualidade duvidosa ao lado de uma coroa de flores fúnebre esmagasse seu coração.

— Esperei que fosse embora, mas, de onde estava, você não parecia muito propenso a partir tão cedo…

Comentou quase displicentemente, apenas para não deixar o silêncio tomar conta deles como um peso, como Barnes provavelmente deixaria. Sabia que ele havia chegado em certo estágio da vida em que sequer se esforçava com os demais ao seu redor.

Então, em meio a uma careta desgostosa, ele esticou as pernas, cruzando na altura dos tornozelos antes de suspirar pesadamente sob o terno negro. Não podia usar o uniforme do exército americano como os demais oficiais que participaram do funeral, por conta de sua história com a União Soviética. Essa era uma linha que o exército americano não aceitava cruzar, ainda que não fosse culpa dele tudo o que aconteceu depois daquela queda nos Alpes.

— É como se sair daqui fosse concretizar que… Acabou. Para sempre, dessa vez. - O observou sem reservas, divagando por um momento por trás dos olhos mais brilhantes e claros que o normal. - Nossos pais estão mortos, minha irmã está morta, mesmo Peggy está morta a essa altura…

Se lembrava de como, em Wakanda, a distância e a incerteza de quem realmente estava no controle o fazia parecer eternamente sob aquela nuvem densa que o cercava, tornando as íris mais acinzentadas do que realmente eram.

Agora, mesmo sob o luto, não parecia haver tanto peso, mas verdadeira tristeza e sequer precisava se utilizar de magia para compreender isso, bastava olhá-lo por dois segundos. Mesmo isso, no entanto, a fazia estremecer. Tinha bastante consciência de como podia ser se sentir sozinha no mundo e as consequências que isso poderia gerar.

Mordendo a parte interna dos lábios, o viu se inclinar para a frente, apertando os dedos trêmulos no rosto como forma de tentar se livrar de tudo aquilo que segurava dentro de si, mais corado, cansado e humano do que de costume. Se perguntou há quanto tempo ele não se deixava sentir de forma tão… Humana e corriqueira.

Então, de maneira calma e calculada, apoiou a mão no ombro de Barnes, apertando levemente para tacitamente dizer que estava ali, sem saber ao certo se estava cruzando alguma linha invisível de intimidade existente entre eles. Não eram próximos, nunca foram, mas pelo o que conhecia dele, imaginava que Barnes não recusaria aquele tipo de contato naquele momento, o que se comprovou quando ele pareceu nem notar.

— Se eu pudesse… - Estreitou os olhos, escolhendo as palavras corretas. - Poderia mostrar que ele jamais se vai completamente. Especialmente no que diz respeito a você.

Barnes se voltou a Wanda, agora com atenção, os olhos percorrendo todo o seu rosto com tanto afinco que, por um instante, se sentiu intimidada, mas sustentou o contato visual.

— O que isso significa?

Ele finalmente questionou, parecendo intrigado, de fato. A ruiva, no entanto, se levantou e evitou olhar ao redor, evitou mergulhar ainda mais naquela despedida, antes de se virar para o ex-sargento, tentando não se debruçar no interesse genuíno que parecia depositar em suas palavras, como se soubesse que havia algo concreto sob o que deveria ser a mera intenção de apoio.

— Você não precisa temer ficar sozinho. - Os dedos brincarem entre si, em leve energia avermelhada, o que ele pareceu ter notado por um breve segundo. Mas logo Wanda estendeu a mão em sua direção, completamente livre de qualquer traço mágico indesejável. - Vamos…

Barnes a olhou de maneira curiosa, provavelmente se perguntando como Wanda poderia saber sobre sua inerente e temerária solidão ou, simplesmente, qual era seu objetivo.

— O que, realmente, veio fazer aqui hoje? - Wanda inclinou a cabeça, pensando, os fios ruivos deslizando livres por seu ombro e costas.

— Eu não notei enquanto o observava à distância antes, mas, além de me despedir de alguém importante… - Talvez, fosse um pouco exagerado se considerar uma amiga de James Barnes, mas haviam passado por coisas semelhantes há não muito tempo. De certa maneira, havia um fio invisível que constantemente os conectava. Não dedicara muito de seu tempo a pensar sobre isso, até observá-lo por tanto tempo envolto em sua própria bolha de solidão. - Acho que também vim estar ao lado de um amigo.

Acompanhou como ele parecia um pouco incrédulo e, rapidamente, em negação, abriu a boca pronto para afastá-la.

— Wanda…

— Eu sei que dói. - Engoliu em seco, encarando brevemente a lápide de Steve Rogers, o homem, não o Capitão América, pensando em todos que havia perdido antes dele. Talvez, a essa altura, depois de tudo, estivesse se acostumando com o fato de que seus entes queridos não durariam para sempre. - Mas vai ficar tudo bem. Nós temos que fazer ficar, Barnes.

I won't leave 'til I understand

Promise you'll just hold my hand

Não soube se disse mais para ele ou para si mesma. Às vezes, sentia que precisava de uma força de vontade maior para ser convencida das próprias convicções. Não era mais aceitável se deixar levar, constantemente, pela dor, pela contrariedade, pela solitude, pela magnitude de seus poderes. Havia visto, sentindo em todo o seu ser, o peso de se embriagar neste tipo de sentimento antes.

O mesmo acontecia com Barnes em relação a eterna culpa que cultivava pelas ações do Soldado Invernal. Conseguia sentir que era assim desde que o vira pela primeira vez, naquele aeroporto na Alemanha, ainda com a mente confusa por conta das manipulações e tortura da HYDRA.

Talvez, naquela época, se não estivesse tão centrada em si mesma e nas próprias questões, tivesse dedicado mais atenção ao homem silencioso, que vivia praticamente na porta ao lado em Wakanda. Contudo, não deveria existir culpados nas distâncias que tomaram. Não estava acostumada a fazer novas amizades, nem naquela época, nem depois. Sempre havia sido ela por si mesma, por isso costumava se agarrar a qualquer promessa de conexão.

— Eu apenas… Preciso ficar sozinho por um tempo. - O outro respondeu de maneira orgulhosa, tentando manter a linearidade daquela conversa em seu tom contrariado.

— Não sou Sam, não acredito em você. - O sargento a encarou em contrariedade e Wanda o cutucou levemente com o bico de sua boca contra o sapato dele. - Vamos… Me leve a algum lugar onde você e Steve iam nos anos 40.

— O quê?

Ele se recusava a entender, no que ela suspirou e voltou a estender a mão, de maneira séria, novamente.

— Barnes, apenas… Pegue minha mão.

Wanda decidiu que não queria saber o que se passava na mente do ex-sargento quando olhou ao redor por um instante, contemplativo, como que decidindo se aquilo valia a pena em detrimento da última despedida de Steve Rogers. O brilho nos olhos claros e pesados pareceu ansioso por um segundo e a curiosidade a cutucou como uma velha conhecida quando o viu engolir um seco antes de suspirar, em derrota, e voltar a encará-la.

— Espero não me arrepender disso.

Levantou uma sobrancelha pelo pessimismo latente e escondeu um sorriso satisfeito pela persuasão quando ele estendeu a mão, surpreendentemente sem luvas, e segurou a sua para se levantar e acompanhá-la, sem pressa

Na meia escuridão do fim do pôr do sol sob os prédios de Manhattan, notou novamente aquela mais fria que o comum perpassando-a sem permissão. Era diferente, como se lhe avisasse alguma coisa, como quando sentiu que Steve Rogers, finalmente, se fora.

Com o braço entrelaçado ao de Barnes de maneira quase formal, olhou para a tenda novamente, virando-se brevemente sobre os ombros. Não havia nada na escuridão pacata, no vazio das fileiras de cadeiras esquecidas ou entre as flores caras de aromas fortes demais, embora a foto de Steve tivesse lhe chamado a atenção pela segunda vez.

Ele se fora de causas naturais, com mais de noventa anos, e tivera uma vida feliz. A vida que escolhera. Não havia o que lamentar por Steve Rogers. Era apenas… Saudade, pura e simplesmente. Um novo e estranho aperto tomou conta de seu peito e Wanda hesitou, o que chamou a atenção de Barnes, que a conduzia lentamente por entre as lápides de desconhecidos.

— O que foi?

Não queria que ele soubesse como podia ser tão sensível aos sentimentos alheios que não conseguia evitar notar o sentimento de luto e afeto centenário que fluía dele para ela. Era menos efêmero do que estava habituava, mais concreto e menos abstrato, ao mesmo tempo que não parecia nada fabricado, o que fez com que balançasse em seu próprio equilíbrio.

O tom de Barnes, ainda, era realmente curioso e Wanda abaixou os olhos para os próprios pés por um instante, invadida pelos olhos quase azuis acinzentados e, ao mesmo tempo, envergonhada pela própria e inconveniente habilidade.

— Nada. Não se preocupe.

Forçou um breve sorriso e fez com que andassem novamente. Não sabia o quanto ele estava a par de sua magia e decidiu não entrar em muitos detalhes, mas ainda sentiu a sensação daquela brisa a perpassando por muito tempo enquanto ganhavam as ruas de Nova York em um silêncio confortável.

I heard from the heavens

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.