O mundo acabaria ali.

Mesmo com meus poderes, eu não seria capaz de deter as trevas daquela forma. A sensação de pavor e morte dominavam a todos... Seres menores morriam apenas com a maleficência do caos que nos engolia. Eu tinha que fazer algo. Eu tinha essa responsabilidade. O sol negro cobria todo o Egito, varrendo-nos com uma quase completa escuridão. E a enorme esfera caótica de trevas, que consumia mais da metade da cidade, emitia impiedosos raios escuros como ébano, alastrando a destruição de construções e seres vivos que ainda restavam. Pirâmides, monumentos, estátuas... Nada escapava do juízo final. O povo egípcio estava quase aniquilado, tão próxima de sua extinção... Não que eu tivesse simpatia por eles. Para mim, só havia um homem a seguir e amar. E era por ele que eu arriscaria a minha vida.

Devido ao pânico, facilmente, adentrei a sala dos tesouros reais, buscando objetos de material puro e de grande potencial mágico. Eu tinha certeza de que encontraria os encontraria ali e que encaixariam perfeitamente para o meu propósito. Por fim, peguei sete relíquias com os requisitos que eu desejava e rezei aos deuses para que eles fossem o suficiente. Caso eu fracassasse, não só o Egito como todo o mundo estaria condenado, imersos nas trevas eternas.

Saí do cômodo o mais rápido possível, atravessando os corredores e salões até que me encontrei à frente do palácio. O caos havia se intensificado entre os servos reais. A movimentação dos guardas e sacerdotes era desesperador. Muitos fugiam na esperança de escaparem de um destino inevitável, enquanto outros, principalmente os sacerdotes e religiosos, terminavam suas preces a Amon-Rá, em busca de salvação. Ao olhar para a cidade, pude perceber o quanto a esfera de trevas havia aumentado não só em força quanto em tamanho. Haviam monstros saindo da esfera. Criaturas que eu e muitos outros conheciam muito bem.

Eram os seres usados nos jogos mágicos.

Para a minha não surpresa, o fato havia resultado em nada mais do que puro ódio. Eu não estava espantada quanto os outros, afinal, eu sabia que abusar da magia negra iria nos trazer a desgraça. E mesmo que eu desabafasse meu conhecimento e minhas preocupações, ninguém me levou a sério. E quem daria créditos as palavras de uma escrava? Ainda mais de uma raça abominada por aquele povo? Mesmo assim, eu queria que alguém tivesse me ouvido... Que tivesse lutado para impedir que isso ocorresse. E apenas uma pareceu me ouvir e, mesmo assim, não fora o bastante.

Afinal, os homens são criaturas irresponsáveis e gananciosas. São criaturas que têm a chance de perceber e corrigir seus erros antes da condenação, porém, nunca o fazer.

Meu corpo estremeceu devido ao medo. Minhas pernas estavam pesadas, não querem colaborar com meu plano. Era óbvio que eu estava assustada, porém, era um erro admitir tal sentimento e deixá-lo me controlar. Segurando fortemente as relíquias contra meu corpo trêmulo e frio, avancei meu caminho, almejando alcançar as longas escadarias que me levariam para perto da tenebrosa esfera obscura. Contudo, antes mesmo de conseguir me aproximar o suficiente, senti a mão forte de alguém me deter, segurando firmemente meu antebraço e forçando-me a parar. Com isso a interrupção brusca, grande parte dos objetos que eu segurava caíram aos meus pés, espalhando-se para não muito longe. Relutei ao ser pega, imaginando que seria algum soldado ou sacerdote. Eles, certamente, iriam me executar por estar, aparentemente, roubando os tesouros reais.

Mas, assim que meus olhos pairaram na figura atrás de mim, senti meu corpo enrijecer no mesmo instante, alimentando minha vontade de permanecer ao lado daquela pessoa até o fim.

Átem me olhava intensamente, trazendo consigo uma enorme bagagem emocional. Medo, impotência e dor eram as emoções que eu mais conseguia ver naquelas írises púrpuras. Eu devia saber que ele se sentia assim. Afinal, era seu povo que estava sofrendo e era seu reino que desaparecia aos poucos. Mas, no fundo, eu sabia que sua preocupação maior era comigo. Apenas pela forma como ele meu encarava... Apenas com o toque gentil em meu rosto.

No mesmo momento que senti aquele calor, abandonei o resto dos objetos para ousar em tocá-lo da mesma forma. Mesmo trêmulas, minhas mãos acariciaram seu rosto com extremo cuidado. Lágrimas escaparam dos meus olhos e perdendo parte do meu controle, toda a minha insegurança vinha à tona. Necessitada de algum conforto, acabei agindo de forma mais ousada. Ignorando tudo a minha volta e o sacrilégio que eu estaria criando na perspectiva de todo os seus servos, abracei seu corpo firmemente, escondendo meu rosto contra seu peito forte. Era só isso que eu queria naquele momento... Eu só queria me convencer de que ele estava bem e ao meu lado. Naquele momento, pouco me importava nossas posições. Mantivemos nossos votos em segredo por muito tempo e dadas as circunstâncias, não havia necessidade de ocultar o nosso amor. Ao menos, não para mim. Ali, não havia rei e escrava, mas sim, dois amantes extremamente apaixonados.

E foi um grande alívio quando ele retribuiu aquele ato, diminuindo o espaço entre nós e me fazendo sentir protegida. Rapidamente, engoli um grande soluço, visando em tomar as rédeas das minhas emoções. Rangi meus dentes e levantei meu olhar, para encará-lo. Minha atitude acabou nos afastando um pouco, o que pareceu não tê-lo agradado.

— Eu posso deter isso. — falei voltando a acariciar aquele belo rosto que ele possuía e seus olhos púrpuras me encararam com grande amargura.

— Eu não quero te perder. — uma de suas mãos logo segurou uma minha, exigindo que esta permanecesse em contato com sua face. Quando eu menos percebi, sua outra mão tomou minha nuca, puxando-me para aquele reconfortante abraço novamente. As batidas de seu coração estavam duras... Eu conseguia sentir sua dor perfeitamente. — Não quero arriscar perder você a esta catástrofe.

— Meu amor. — encarei-o novamente, com um sorriso terno. — Por ti, eu entregaria a minha vida. Por ti, faço qualquer coisa. Permita salvar teu reino, o mundo e, principalmente, a ti mesmo, meu senhor. Eu posso ter o poder de deter isto e salvá-lo. Pelos deuses, não me negue este pedido.

— Ísis...

Vendo sua aproximação perigosa, não fui capaz recusar seu beijo. Era intenso, feroz... Um grande misto de medo, saudade e insegurança. Nós dois estávamos apavorados, mas tínhamos ciência de que algo deveria ser feito. Com o fim do nosso, talvez, último beijo, afastei-me com relutância. Porém, outra vez, Átem segurou-me com mais força em meu braço, conquistando minha total atenção.

— Eu irei com você.

— Não posso permitir isso, meu senhor.

— Você é o que tenho de mais precioso. Você não irá se responsabilizar por um reino que a despreza. É meu reino e, como faraó, é minha obrigação protegê-lo.

O tremor da terra me impediu de tentar convencê-lo.

O tempo estava por um fio. Eu precisava me apressar antes que não houvesse mais esperança. Levitei as relíquias aos meus pés e corri escadarias a baixo. Devido aos tremores, era difícil manter-se de pé, ainda mais correr. Átem me seguia com uma dificuldade similar. Talvez, fosse por seu treinamento militar, mas ele estava com mais equilíbrio e seria ainda mais difícil impedi-lo de progredir junto comigo. Pelo caminho, nós conseguíamos presenciar os monstros exterminando todo tipo de ser vivo, manchando o solo seco com sangue e carne. Um deles tentou nos atacar, porém, Átem deteve um golpe direto com sua khopesh. Eu sabia que golpes físicos eram inúteis e não surtiam efeito, mas aproveitando da defesa de meu amado, lancei um ataque mágico com poder o suficiente para destruir a criatura.

Assim que meus pés alcançaram o fim da escadaria e fixaram na terra batida, tudo à minha frente era apenas o mais puro e verdadeiro caos. Sufocante e desesperador.

Fechei meus olhos, a magia fluía de mim e das sete relíquias ao meu redor. Rapidamente, as mesmas pairavam mais à frente e mais acima, absorvendo a magia negra.

Era horrível. As trevas eram fortes demais. Elas sugavam a minha força, enquanto que se enfraqueciam aos poucos. A probabilidade de eu não resistir antes de ser capaz de bani-las da Terra era enorme. Eu tinha que ter esperança. Eu tinha que ser capaz. Eu daria tudo, até mesmo minha própria vida, para salvar Átem, a única pessoa que me tratou como humana e não como uma aberração de um povo amaldiçoado pelos antigos faraós.

Não me atrevi a abrir meus olhos... Na verdade, não tinha muitas forças para fazê-lo. Minhas pernas tremiam, sendo provável que eu cairia ali em breve pela falta de forças. Ao menos, o encanto com as relíquias estava dando certo. Eu podia sentir as trevas sendo absorvidas gradativamente e sendo seladas. E ao mesmo tempo que conseguia sentir, eu podia notar também o ódio do caos contra mim. Era como se urrassem de dor e lutassem para manter-se ali. Aquela áurea era tão forte que degradava ainda mais meu estado, enfraquecendo-me cada vez mais. Meu corpo, já fraco, inclinou-se para frente.

Mas antes que eu me chocasse contra a areia seca e áspera, Átem segurou-me e manteve em seus braços.

Abri meus olhos com dificuldade e minha visão estava turva. Era impossível visualizar com clareza qualquer coisa... como se eu estivesse perdendo aquele sentido. Olhei para Átem e senti que ele me ajudava a manter o feitiço, doando sua própria energia. Ela era tão forte e respeitável quanto sua posição e personalidade. Trêmula, levei uma das minhas mãos até seu braço localizado sobre meu colo, limitando-me a sorrir ingenuamente. Intensifiquei minha própria magia e a enorme esfera oscilou por uns instantes.

— Ísis... — a voz de Átem demonstrava seu cansaço, mas ainda se mantinha imponente como devia ser. — Eu te amo.

No momento seguinte, senti uma forte dor em meu pescoço e fui perdendo meus sentidos. Logo, minha consciência se esvaía devagar. A figura embaçada de Átem desaparecia conforme uma enorme tempestade de areia nos engolia. Eu tentei lutar para alcança-lo, mas antes mesmo que minha mão pudesse se reerguer, tudo ficou escuro.

Com a forte luz sobre meu rosto, acabei do despertar desnorteada.

Estava quente... Meu corpo queimava com a força do sol. Em primeiro momento, manter meus olhos abertos era uma tarefa impossível. Ao que consegui abri-los, arrependi-me devido à imensa dor. O céu estava limpo... Por alguma razão, eu ainda estava viva. Minha magia tinha quase se esgotado por completo, sendo que demoraria muitos dias para estar forte novamente. Com dificuldade, sentei-me sobre as areias douradas, sentindo cada músculo do meu corpo estremecer devido ao esforço que eu fazia. Olhei ao meu redor e espantei-me com a visão. O deserto alastrava-se por onde quer que eu olhasse, engolindo tudo ao meu redor. Os únicos vestígios de que houve uma civilização ali eram as pontas das ruínas e das enormes estruturas da antiga capital. A tempestade havia varrido tudo e a todos. Acabei presumindo que só havia sobrevivido devido à minha magia. A areia subterrou a cidade e seus pecados, seu povo e seus conhecimentos profanos. Nada restava ali... e nenhuma alma saíra impune daquele terrível acontecimento.

Nada restara... com exceção da minha própria existência.

As lágrimas eram poucas comparadas a minha perda. Por que ele havia feito isso? Por que ele me deixou para trás? Não havia sentido a minha vida sem ele. O destino me odiava? Que deus havia me amaldiçoado de tal forma? Eu já havia aceitado e superado a perda da minha tribo, da minha família... Havia consentido com a rejeição, com a escravidão...

Mas nunca seria capaz de suportar sua ausência...

Por que eu deveria perdê-lo? Átem era tudo o que me restava... tudo o que eu mais amava...

E ele se foi.

Não eu que não soubesse onde ele estava... Eu podia senti-lo... Podia sentir as sete almas que foram aprisionadas juntos as trevas. Em algum lugar sob as areias, havia a relíquia em que ele estaria aprisionado. Novamente, a dor me consumiu. Por quê? Nós sempre estivemos juntos, por mais que fossem caminhos distintos. As nossas posições não eram motivos suficientes para nos separar e impedir que nos amássemos. Eu pensei e desejei que ficássemos juntos para sempre... Porém, o destino não nos permitiu. Eu deveria estar no lugar dele. Eu que deveria estar aprisionada. Eu prezava por sua vida mais do que a minha...

E minha falha me consumia.

Eu sabia que Átem estava perdido em meio ao caos... Eu sabia que estava à procura de alguém naquele labirinto que as trevas podiam ser... Meu peito doía e, aos poucos, meu choro se intensificava. A ferida em minha alma e em meu coração não seria curada. Eu nunca seria capaz de esquecer isso e, muito menos, superar.

E não importava quanto tempo eu precisasse para te ver de novo... eu estaria esperando. Não importava os séculos que eu usasse para encontrar uma forma de nos reencontrarmos... eu estaria esperando. Usaria minha magia para atravessar o tempo... apenas para ter você novamente.

E enquanto esse dia não chegasse, eu ficaria ali, em meio a solidão... Sufocada pela tristeza e banhada em lágrimas dia após dia até ser capaz de tê-lo mais uma vez.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.