Meu caminho para a aldeia é o mesmo de todo dia, mas hoje algo parece diferente. Minha mente quer fazer de tudo o que eu nunca faria sem motivos: pular, dar gritinhos de alegria, fazer estrelinhas no meio da rua, sapatear, cantarolar minha música favorita, sair girando agarrada aos postes, dançar, saltitar, todas essas coisas idiotas que só garotinhas fazem. Mas tenho eu admitir que dou um pulinho ou dois quando não tem ninguém olhando.

O melhor dia da minha vida!!!!

Mal posso esperar pra chegar em casa e pular na cama, onde vou pensar em tudo o que vivi numa só tarde. E quando abro a porta e coloco meu pé pra dentro, pensando que tudo está bem com o mundo...

Ouço o choro de minha mãe e minha alegria se esvai. Assim como minha calma, meu entusiasmo e meus problemas voltam todos de uma vez.

Meu cérebro parece pesar muito de repente, com todas as coisas não resolvidas que tenho das últimas semanas. Chego sem fazer ruídos até a ponta do corredor, onde posso ver e ouvir meus pais, mas eles não podem me ver.

– Isso é horrível, Magnus. – diz minha mãe chorosa, me espanto, ela nunca chora – Nosso nome arruinado para sempre.

– Phlegma, não diga isso. Você sabe como ela treinou duro e deixou de lado muitas coisas para conseguir esse título. – protege-me meu pai – Não é o fim do mundo. Se nossa filha não é capaz, um dia outro Hofferson vai conseguir limpar o nosso nome.

Meu queixo cai. Então eles acham que eu não sou capaz?

– Mas eu tinha tanta confiança que seria ela. Até apostei meu melhor machado com a Bertha de que ela ganharia. Adeus querido Ragnar.

O quê?

– Phleg, você apostou a vitória da Astrid?

– Eu tinha um sonho tá bom? E agora ele foi rasgado em pedaços.

– Não seja dramática.

– Onde foi que nós erramos Maggy?

– Nós fizemos tudo o que podíamos amor. Demos treinamento, armas, armaduras, tudo o que um viking poderia querer. Do que mais ela precisaria?

Isso me atinge como a ponta de uma flecha perfurando meu peito. Quem são esses que se dizem meus pais?

– Isso nunca teria acontecido com o Sven. Nem com a Stella. Mas a caçula sempre é o problema, não? – diz minha mãe sem mágoas.

Estão me comparando com meus irmãos? Tudo bem eu não aguento mais ouvir nada disso. Só vou sair daqui de fininho e deixar que eles resolvam o dilema da filha problemática sozinhos. Eu não sou obrigada a ter que ser julgada às escondidas.

– Não é culpa nossa se nossa filha é uma decepção Phleg.

Paro no meio do caminho, sem palavras. Meu pai acabou de me chamar de decepção? Eu entendi certo? O que está acontecendo na minha vida?

Meu corpo age antes de meu cérebro e chego na sala já explodindo.

– É isso o que vocês pensam de mim? Que eu sou uma decepção? É isso mesmo o que eu ouvi?!

Minha mãe parece tão surpresa quanto eu, mas meu pai, por incrível que pareça, se mostra relaxado e calmo, como se já soubesse que eu estava escutando.

– A-Astrid, - gagueja minha mãe – eu... aah... nós não sabíamos que você tinha chegado.

– Percebe-se. Do contrário não estariam discutindo a falta de honra que a filha caçula trás para a família pelas minhas costas.

– Não querida. – tenta corrigir minha mãe – Você entendeu errado.

– Entendi errado? Sério mãe? Porque pelo que pareceu vocês estavam duvidando da minha capacidade, se não me engano me comparando até com meus irmãos.

– Não é nada disso. Astrid escute...

– Não! Vocês escutem! A minha vida toda eu fui privada das coisas que eu mais gostava, dos meus amigos, meus brinquedos, minha família porque tinha que treinar, treinar e treinar. Treinar para ser melhor, treinar para ganhar, treinar para recuperar a honra dos Hofferson. Tudo sempre foi assim pra mim. E vocês vêm me comparar com a Stella? Com o Sven? Qual é o problema de vocês? Queriam que fosse eu a ser recrutada para a Ilha Pôr do Sol ao invés deles?

– Filha é claro que não, mas é que...

– Não Phlegma. – interrompe meu pai – Está na hora dela saber. – se vira para mim – Quando recrutaram seus irmãos pediram que levasse você também. Mas você era tão pequena, uma criancinha de três anos, tão frágil nos nossos braços e mesmo assim sabíamos que se tornaria uma guerreira. Nós a prepararíamos para isso e para recuperar a honra dos Hofferson. Mas então, anos depois da nossa promessa, quando achávamos que estava pronta, você falha. Falha bem na nossa frente. Na frente de todos. Tem ideia da vergonha que nos fez passar?

Fico indignada. Devo parecer uma galinha atropelada por um iaque, pois tudo o que consigo fazer é ficar de boca aberta, embasbacada, até que finalmente me voltam as palavras.

– Quer saber pai? Sei sim senhor. Porque quem estava lá na frente, morrendo de vergonha de ter perdido pro filho inútil do Stoico era eu – não mais acho ele inútil, mas meus pais não sabem – Quem treinou a vida toda e falhou no último segundo fui eu. Quem abdicou tudo para viver uma vida de guerras, sanguinolência e matança enquanto ele se virava na ferraria fui eu. Eu falhei. Eu me repreendi. Eu me castiguei. Eu, eu, eu. Acham que honra é a coisa mais importante daqui? Pois adivinhem. Estão enganados. Há coisas muito mais importantes do que honra e orgulho. Amor, carinho, coragem, ternura, coisas que nós soldados não temos. Aprendemos a recusar isso e olha onde chegamos. Os próprios pais chamando a filha de decepção, de incapaz, de... inútil. Vocês nunca falaram assim comigo. Qual é o motivo agora?

Olho para eles com olhos cansados.

– Quer saber? Chega. Não adianta discutir com vocês. Conheço-os o suficiente para saber que não vão mudar de ideia.

Viro-me para ir embora.

– Ah, e mais uma coisa pai. Existe sim uma coisa que eu quero mais que armas e armaduras. E eu vou encontra-la, porque ele me entende. Ele é a única coisa que não mudou na minha vida todos esses anos. E é a única que eu quero. Não sei nem mais quem são vocês.

Bato a porta ao sair e ouço o barulho de uma cadeira sendo arremessada contra a parede.

*****

Vikings não choram. Soldados não choram. Guerreiros não choram. Nem eu. Por mais que eu tente. Por mais que meu ser clame para que as lágrimas caiam, não consigo. É contra minha natureza.

A enseada não é um lugar tão ruim para passar a noite, já que obviamente não vou voltar pra minha casa. Pelos menos não hoje. E tenho que admitir que o Banguela não é uma companhia tão ruim assim, só rezo para que o Soluço não ache que quero roubá-lo dele.

Ele me aquece com o calor de seu bafo de fogo e me sinto grata por não tê-lo matado assim que o vi. Senão não teria um novo amigo, recuperaria um antigo e ganharia minha liberdade.

Quero ser livre de tudo o que passei nesses anos todos. Só ainda não descobri como. Como ser livre.

Lembro-me de meus irmãos que há tanto tempo foram recrutados para o treinamento especial de vikings da Ilha Pôr do Sol e me sinto sozinha. Não tenho ninguém agora. Ninguém além de Soluço.

Banguela ronrona ao meu lado. E ele é claro.

Tento dormir, mas não consigo. Banguela sente meu retesar e olha afetuosamente para mim. Sorrio para ele e involuntariamente começo a cantarolar.

As a child, you would wait

And watch from far away

But you always knew

That you'll be the one

That work while they all play

And you, you lay

Awake at night and scheme

Of all the things

You that would change

But it was just a dream

Here we are

Don't turn away now

We are the warriors

That built this town

The time will come

When you’ll have to rise

Above the best, improve yourself

Your spirit never dies

Farewell, I've gone

To take my throne above

Don't weep from me

'Cause this will be

The labor of my love

Here we are

Don’t turn away now

We are the warriors

That built this town