How to Be Free

Me, myself and I


– A aula de hoje é sobre trabalho em equipe! – diz Bocão enquanto a porta de uma das jaulas explode e uma fumaça verde começa a sair de dentro dela.

Tento enxergar enquanto tudo é encoberto, mas é impossível. Só consigo ver borrões entre a névoa que supostamente são meus amigos e sinto as costas de minha parceira, Cabeçaquente, nas minhas.

Cada um de nós segura um balde d’água que nos foi dado quando entramos na arena. Mas ainda não sei direito pra que serve. Bocão explica:

– Um dragão com a cabeça molhada não consegue cuspir fogo. – ah, agora entendi – O Ziperarrepiante é esperto demais. Uma cabeça solta gás e a outra acende a faísca. Vocês precisam descobrir qual é qual.

Meus nervos estão à flor da pele quando me preparo para o que quer que venha a seguir. Meus olhos estão arregalados enquanto tento enxergar mais do que consigo. Meus ouvidos estão abertos a qualquer barulho, mas tudo o que ouço é o murmúrio de Perna-de-Peixe relatando mais alguma informação inútil sobre o dragão de que não vamos precisar.

– Dá pra você parar com isso? – pergunta Soluço nervoso. Agradeço-o em silêncio.

Começo a ofegar sem fazer barulho. Não há como ficar pior do que ontem, mas não quer dizer que não vá me preparar para tal. Sinto a tensão de Cabeçaquente atrás de mim, mas não posso parar para dizer ‘está tudo bem’ ou ‘tudo vai dar certo’, porque nem eu mesma acredito nisso.

De repente me assusto quando Melequento grita:

– Ali! – e sinto um jato de água vindo em minha direção e na de minha amiga.

– Se liga. Somos nós, idiotas! – diz Cabeçaquente irritada.

– Seus traseiros são enormes. Confundimos com o dragão. – ri seu irmão, mas Melequento logo acrescenta:

– Não que eu tenha nada contra umas curvas dragonianas.

Nem penso quando vou para frente e esmurro sua cara, fazendo-o protestar. Logo em seguida a outra garota atira seu balde em seu irmão e este surpreendentemente é puxado para dentro da névoa assim que atinge o chão.

Cabeçaquente faz menção de ir atrás dele, mas a advirto:

– Espera.

Coloco o balde na frente do corpo novamente, de maneira protetora, mas o ataque vem de trás e com uma só rabada eu e minha parceira caímos no chão com água e tudo.

– Eu to ferido! – grita Cabeçadura – Eu to muito ferido!

E daí seu idiota? Se nenhum dos dois inúteis fizer nada agora, todos nós estaremos mortos.

– Acho que as chances de sobrevivência baixaram para quase zero. – diz nervoso Perna-de-Peixe.

Então o dragão mostra uma de suas cabeças enquanto lentamente me levanto, e Perna-de-Peixe joga água nela. Infelizmente, o dragão começa a soltar um gás verde venenoso de sua boca enquanto o menino se adverte:

– Oh. Cabeça errada. – e o Ziperarrepiante solta tudo o que tem numa baforada só enquanto o garoto sai correndo, deixando Soluço sozinho com a fera. Ai, deus Odin.

– Perna-de-Peixe! – preocupa-se Bocão.

A criatura mostra a outra cabeça que começa a contrair-se enquanto solta pequenas faíscas que irão acender o gás.

– Agora Soluço! – encoraja-o Bocão.

Claro que, numa tentativa frustrada, Soluço joga a água que estava no balde e não atinge nem meio metro de onde a cabeça do dragão está.

– Ah, qual é? – ele protesta.

Meu primeiro pensamento é correr e bater no dragão para fazê-lo se afastar dele e vir na minha direção.

– Soluço! – Bocão grita enquanto me preparo para começar a correr, mas de repente ele se levanta e...

– Pra trás. Pra trás. – ordena ele enquanto com as próprias mãos a certa distância da criatura começa a empurrá-la pra dentro da jaula de novo – Ops. Psi, psi. Não me faça ter que dizer isso de novo. – o bicho começa a se contrair na pequena prisão da arena e Soluço completa – Volta pra sua jaula e reflita sobre a sua atitude.

Com um último movimento espontâneo ele fecha as portas da cela e limpa as mãos no colete. Olhamos pra ele estupefatos enquanto pergunta:

– Então? É, a aula já acabou? É, porque eu tenho umas coisinhas que eu preciso... – como... – Ah, valeu. É, a-a gente se vê amanhã.

Como?

*****

Soluço.

Foi o meu único pensamento desde que saí da arena até chegar em casa. Como ele... mas como... Nem consigo terminar a pergunta. O que ele fez foi tão de repente, tão surpreendente, tão... útil.

Isso. Útil. Pela primeira vez em anos penso nele como alguém não completamente inútil. Alguém que no fundo tem algum talento. Alguém que pode conquistar.

Bom, não é que ele não tenha talento. Ele sempre foi bom desenhista, trabalha muito bem com metais, e tem um coração enorme. Eu já presenciei isso. Quando tínhamos sete anos e encontramos um passarinho com a asa quebrada. Soluço e eu nos revezamos cuidando dele até que ficasse bom de novo e pudéssemos solta-lo. Mas ele sempre foi melhor e mais protetor do que eu.

Ou quando ele me deu um medalhão de prata com o entalhe de um corvo que ele mesmo havia feito no meu nono aniversário. Ou a terceira luneta que ele trocou com o mercador Johann para conseguir as flores para fazer uma coroa com elas pra mim. E foi nesse dia em que nós... não, eu... o beijei.

Não foi nada. Eu só dei um beijinho bem rápido nele em agradecimento. Não significou nada, não é? Não minta pra si mesma Astrid. Claro que significou. Foi nesse dia que descobri que realmente gostava dele. Daquele jeito. Mas depois veio o meu treino e eu acabei esquecendo o que era amá-lo. Bom, na verdade eu nunca soube se realmente o amava, mas meu carinho por ele era tão grande que era como se o amasse.

Mas então um pensamento me invade. E se depois disso ele começar a vencer as outras lutas na arena? Não. Não pode. Foi só uma luta. Ele só deu sorte. Sorte de principiante. Eu treinei a minha vida inteira pra isso e não vou desistir agora só porque um garoto do qual eu já gostei um dia deu sorte de vencer uma luta contra um dragão.

E foi só um treino. Queria ver a cara dele. Ele não duraria dois minutos numa luta de verdade contra os dragões. Lá fora é tudo ou nada. Ou você vence ou é vencido. E naquele campo de batalha, quando é só você contra tudo, você não pensa no que pode perder se não tentar. A única coisa que vem à sua mente é o terror daqueles olhos reptilianos quando estão prestes a enfiar os dentes em você e você não pensa. Só ataca. É quando seu coração se torna negro. Quando a bondade é consumida pela vontade de viver pra ver o próximo nascer do sol.

Eu não tenho mais jeito. Mas ele ainda pode se salvar. Agora não estou mais lutando só pela minha honra ou pela de minha família. Tampouco estou lutando pela minha sobrevivência.

Estou lutando por ele.