– Escolha. – uma voz diz em meu sonho.

Escolher? O quê? Na verdade não vejo nada. Estou pisando em um breu completo, e admito que já está me assustando.

– Escolha. – a voz repete. Dessa vez mais insistente e familiar.

Quando me viro novamente há dois círculos na escuridão. Um deles mostra a cena de minha aldeia sendo queimada por dragões. A outra sou eu baixando meu machado na cabeça de um Pesadelo.

– O que é isso? – pergunto em voz alta.

– Apenas escolha uma. – desta vez reconheço a voz, é da minha mãe.

Olho para as duas cenas de novo. Deveria escolher aquela que me mostra matando o dragão, mas alguma coisa me impede. Não sei exatamente o porquê, só sei que parece... errado. Eu travo. Não consigo escolher. Não consigo. Tenho que salvar minha aldeia da ameaça dos dragões, mas, não sei, parece tão radical escolher a outra.

– Não consigo. – admito.

– Então eu escolho por você. – diz minha mãe resistente.

De repente, o Pesadelo Monstruoso vira seus olhos de lagarto para mim e avança, junto com os outros dragões. E a escuridão é esmagadora.

*****

Acordo num sobressalto, suando frio com o pesadelo. Percebo que ainda estou na minha cama e que não há dragões lá fora. Inspiro e respiro profundo para tentar voltar totalmente à realidade. Jogo minhas pernas para o lado da cama e caminho para a porta. Vou tomar um copo d’água.

No momento em que meus dedos tocam o puxador escuto o murmúrio de uma conversa no andar de baixo. Puxo levemente a porta para não fazer barulho e aguço meus ouvidos para descobrir sobre o que é que estão falando.

– ...eu sei Magnus. – a voz é de minha mãe – Mas como é que vamos contar pra ela?

Contar o quê? Presto mais atenção.

– A nossa filha é forte Phlegma. Ela vai entender. – responde meu pai.

– Mas acabamos de voltar de uma busca. Não acha que vai ser meio difícil pra ela saber que vamos sair de novo? Você sabe que os navios nunca voltam. E com o Snoggletog chegando...

Minha mãe não completa a frase. Já sei exatamente sobre o quê estão falando.

– Não pense nisso. Ainda há chance de voltarmos. Não acho que mais uma busca vai ser de muita utilidade para achar o Ninho.

O Ninho dos Dragões. É disso que meu pai está falando.

– Sem falar que ela vai estar no treinamento. – completa meu pai – Ela vai ter muito mais no que focar do que se vamos ou não voltar.

Não diga isso, pai, não diga... Espera. Treinamento?

– Mesmo assim. – diz minha mãe – Já foi difícil pra ela quando meu irmão morreu. Imagina se os pais dela também se forem.

Meu tio Finn. Meu melhor amigo. Depois do Soluço, é claro. Ai, titica de Gronckle! Por que estou pensando nele de novo?

– Isso foi há nove anos, Phleg. Acho que ela já superou.

– Não estou dizendo isso. Só porque ela cresceu não quer dizer que vai ser fácil encarar a morte dos pais. Nunca é. Minha mãe morreu quando eu tinha 23. E eu nunca consegui superar.

– Isso é porque a velha Azura te mimou demais. Se fosse comigo...

– Ah, claro. Porque o seu pai te transformou numa pilha de rochas, não é Maggy?

– Já disse pra não me chamar assim.

– Bom, não adianta enrolar mais. Eu vou lá acordar ela pra contarmos tudo.

Escuto o barulho dos pés de minha mãe subindo a escada. Corro de volta para cama e finjo que estou dormindo. Na verdade não sei como ela cai no truque. Minha mãe sempre sabe quando estou mentindo.

– Astri. Astrid, querida. – minha mãe sacode meu braço de leve.

Dou um gemido falso, como se estivesse acordando agora e rolo de costas para olhar para ela.

– Oi, mãe. Não sabia que já tinham terminado. Como foi a reunião?

– Foi tudo bem. – ela hesita antes de prosseguir – Na verdade, eu e seu pai precisamos conversar com você sobre a reunião.

Finjo surpresa.

– O que foi?

– Venha até a sala comigo. O seu pai está lá preparando alguma coisa para nós comermos.

– Tudo bem. – digo enquanto me levanto pesarosamente, como se estivesse com sono ainda. Não é mentira. O pesadelo não me deixou dormir direito.

Eu e minha mãe caminhamos até a fogueira, onde encontro meu pai cozinhando um peixe e fervendo leite de iaque.

– Oi papai. – não sei o que deu em mim. Eu nunca o chamo de papai, mas talvez a notícia da busca tenha me abalado um pouco.

Não é uma coisa inesperada. Os vikings da minha tribo participam de buscas para achar o Ninho dos Dragões há eras. Mas meus pais nunca pareceram muito convidativos pra isso.

– Olá querida. Dormiu bem?

– Dormi. – minto, não quero que eles foquem em mim e não na conversa – A mãe disse que vocês tinham algo pra me falar. Chuta.

– Ok. – meu pai começa – Astrid, hoje na reunião Stoico decidiu que... vamos fazer outra busca antes do inverno.

– Outra? – eles ainda não perceberam que eu já sei de tudo.

– Infelizmente sim. Saímos amanhã de manhã.

– Já?

– Eu sei que é pouco tempo para arrumar tudo e nos despedirmos, mas temos que sair antes de tudo congelar.

– Não, não. Eu entendo. Tem ideia de quando vão voltar?

– Provavelmente daqui a uma semana ou duas. Não vamos deixar você abrir os presentes de Snoggletog sozinha.

– Pai, o Snoggletog é daqui a um mês.

– Mas não sabemos se haverá imprevistos, entãão... – diz minha mãe – Mas não é só isso.

– O que mais? – pergunto, agora com real curiosidade.

Meus pais trocam olhares de cumplicidade.

– Você conta pra ela ou eu conto? – pergunta minha mãe.

– Pode contar.

– Tudo bem. Minha filha, o conselho decidiu – e por conselho entende-se Stoico – que o treinamento começa amanhã!

– Treinamento?

– É. Querida, você vai aprender a matar dragões!

Minha mãe dá gritinhos de felicidade, enquanto meu pai ri da futilidade dela. Eu deveria estar feliz. De verdade, eu deveria estar dando pulos de alegria. Mas não estou exatamente feliz. Ainda mais depois do meu pesadelo.

– Isso... isso é... – não sei como devo reagir – Incrível. É incrível. Eu sempre esperei por isso. Mãe, pai, obrigada.

– Por que está nos agradecendo? – pergunta meu pai.

– Por poderem me dar essa chance. Por me treinarem até estar pronta para a iniciação. Não sabem como eu fico feliz com isso.

– Você que nos deixa felizes com esse entusiasmo. – diz minha mãe – Agora vai lá afiar o seu machado. Tem que estar na arena antes das nove.

– Tá. Tá bem. Eu vou lá. – me viro para subir para o meu quarto. Pode até ser muito exagerado, mas só para não desconfiarem... – Isso vai ser demais!

Posso sentir os sorrisos de meus pais. Mas quando entro no quarto e fecho a porta, meu semblante desmancha. Escorrego pela parede até meu bumbum tocar o chão e abraço meus joelhos.

O que é que eu vou fazer? O que é que eu vou fazer? O pesadelo me deixou tensa, em dúvida. Ao invés de gritar de alegria, tremo. Sei que não devia, mas é minha única reação no momento. Penso no meu sonho de novo. Os dragões queimando minha aldeia. Eu matando o Pesadelo. Os dragões vindo em minha direção, me cegando.

O que eu faço? Não posso deixar meu povo morrer. E ser queimada viva por aqueles répteis gigantes também não é opção. Já sei o que a voz em meu pesadelo quis dizer. Se eu não puder escolher, então irão escolher por mim. Se eu não puder matar os dragões, então eles me matarão.

Me levanto e pego meu machado embaixo do travesseiro. Dou meia volta no quarto e saio da casa em direção à ferraria, amolar a lâmina. Já sei o que devo fazer. Vou fazer aquilo que todos esperam de mim. Serei a inicianda que vai matar o Pesadelo Monstruoso, o último teste. Eu irei para a arena.

Chego à ferraria e peço para que Bocão afie a lâmina. Ouço o barulho de pedra sobre o metal, criando fagulhas, enquanto um último pensamento me invade.

Se depender de mim, meu pesadelo nunca ganhará vida.