Peggy demorou apenas cinco segundos para perceber que o risco borrado que acabava de correr escadas a cima se tratava de Bel. Ela lançou um olhar preocupado para a mãe, que lhe respondeu com sorriso, como se dissesse: “acho que vocês tem muito o que conversar”. Peggy pensou em agradecer profundamente por ter uma mãe tão compreensiva, mas ela teria tempo de sobra para isso depois. Agora, precisava descobrir o que estava acontecendo com a amiga.

Peggy subiu as escadas e bateu com cautela na porta onde, antigamente, vira tantas vezes seu irmão passar, feliz da vida. Mas Bel não respondeu. Ao invés disso, ela pensou ter ouvido soluços abafados vindos do quarto. Peggy tentou mais uma vez, tentando ser o mais carinhosa possível:

-Bel? Por favor, abre essa porta...

Nada.

-Olha... se você não quiser, não precisa dizer nada... é só abrir a porta... eu só quero olhar pra você e ver como está...

Um ruído. Peggy achou que Bel tivesse ficado de pé, ainda sem saber o que fazer.

-Bel... eu não sei o que aconteceu com você, mas seja lá o que for, acho que você deve estar querendo ficar sozinha agora, mas... isso não vai te ajudar em nada. Me deixe entrar aí, para você ver que, pelo menos, não está sozinha e que tem pessoas que se preocupam com você. Não precisa falar nada, Bel! É só abrir a porta...

Um novo silêncio perdurou por longos minutos, até que Peggy finalmente pôde ouvir o clack da chave ao abrir a porta. Logo atrás, apareceu Bel, os olhos baixos e a cara muito inchada e vermelha. Apesar do estado de Bel, Peggy não pode deixar de sentir um certo alívio ao olhar para a amiga.

-Bel... – Peggy iniciou, porém, sem saber como continuar.

Ela só queria que a amiga soubesse que estaria do seu lado sempre, nas horas boas e também nas ruins, mas nessas horas a melhor coisa a se fazer é não fazer nada e deixar que o tempo fale por si próprio. Aos poucos, Bel levantou os olhos, encarando os de Peggy com pouca convicção. Peggy manteve seu olhar, e colocou sobre eles todas as palavras que não saíram de sua boca. Bel parecia ter compreendido Peggy e suas sobrancelhas começaram a se franzir languidamente, em uma nova ameaça de choro. Peggy só teve tempo de abraça-la bem forte antes dela explodir em lágrimas e soluços.

-Ah, Bel... – consolou-a Peggy, enquanto dava palmadinhas carinhosas em suas costas – Vai ficar tudo bem agora...

-Não... não vai... – Balbuciou Bel, entre os soluços.

Com uma certa dificuldade, ela se desprendeu dos braços da amiga e fechou a porta às suas costas, antes de se sentar novamente em cima da cama com as mãos enlaçando os joelhos. Peggy se empoleirou em uma das beiradas da cama e passou uma das mãos pelo braço direito de Bel, enquanto dizia:

-Você não quer me contar o que houve?

Bel ficou muito quieta, analisando com insistência o rosto de Peggy. Depois, sem coragem de encarar Peggy, ela fixou seus olhos no rádio-relógio colorido que trouxera dos Estados Unidos em cima do criado-mudo, e começou a falar. Falou de David, do Chuck, de tudo. Quando terminou, parecia que tinha acabado de participar de uma maratona, de tão ofegante que estava. Os problemas de Peggy, de repente, se tornaram pequenos diante dos de Bel. Ela fora procurar a amiga em busca de apoio, mas agora, quem teria de ser consolada era justamente Bel.

-David foi mesmo um canalha... ah, Bel, eu te avisei tanto pra você se afastar dele.

-Eu não preciso que você me lembre disso!

-Ok... me perdoa, mas é que eu fico com tanta raiva por te ver assim... por causa dele!

Bel secou o rosto com as costas da mão e lançou um olhar vago pela janela que se abria para o mundo lá fora. A beleza do dia não combinava em nada com o que ela sentia por dentro.

-Acho que eu nunca mais vou ter coragem de sair de casa... – sussurrou Bel, a expressão vazia e distante.

-Não diga isso Bel! Eu sei como você deve estar se sentindo agora, mas isso passa. Você tem que dar tempo ao tempo. Quando isso tudo estiver acabado, você nem vai mas se lembrar de que David um dia existiu na sua vida.

-Não é tão fácil assim, Peggy! Você não tem como saber o que eu passei... ele destruiu a minha vida... meus sonhos... tudo! E, como se não bastasse, ainda me fez passar pela maior humilhação da minha vida. Eu nunca vou me esquecer do jeito que Chuck me olhava e de como David evitava me encarar nos olhos... isso é uma coisa que vai ficar gravada pra sempre na minha cabeça, não importa quanto tempo passe!

-Mas o tempo ajuda a curar as feridas, você vai ver – disse Peggy, com um sorriso, para lhe dar força.

-Não sei... isso é tudo tão horrível – suspirou Bel, selando a conversa com um novo e longo silêncio, em que ela encostou a cabeça nas grades da cabeceira da cama, ainda com o olhar vago.

Depois de certo tempo, uma pergunta incômoda começou a martelar na cabeça de Peggy: Será que Pierre sabia daquilo? Será que ele, junto com Chuck e os outros, haviam planejado aquilo tudo para machucar Bel? Peggy tentou se controlar. Não podia demonstrar sinais de fraqueza para a amiga.

Mas, se Pierre estivesse mesmo envolvido com aquilo, Peggy não o perdoaria jamais. A relação deles já estava por um fio, e, agora, não precisaria de muito mais para que eles se separassem de vez.

***

O apartamento estava mergulhado em um silêncio fúnebre desde a retirada de Bel. David não conseguia entender porque tinha que passar por uma perda tão dolorosa. Ele tivera tão pouco tempo ao lado de Bel, e agora tudo estava perdido. Afinal, porque Chuck sempre tinha que se meter em sua vida? Porque ele não podia simplesmente deixa-lo em paz e tentar ser feliz sem ter que destruir a vida das pessoas?

Essas perguntas, porém, ainda estavam longe de serem respondidas. David sabia que Chuck não ia sossegar enquanto não destruísse Peggy. E, para isso, ele não pouparia ninguém. Nem mesmo seus melhores amigos.

Quando Chuck finalmente resolveu que já havia passado o tempo necessário, David já estava preparado. Nada poderia ser pior do que ver Bel sair correndo aos prantos porta afora.

-Você não podia ter feito isso comigo – repreendeu-o Chuck.

-Não podia? E você acha que o que você fez comigo foi certo? – retrucou David, encarando-o com raiva.

-Nós tínhamos um acordo, David! Tínhamos um plano! E você me traiu – Explodiu Chuck, se aproximando ferozmente de David.

-Eu me apaixonei por ela! Eu a amo, Chuck...

-Amor – disse Chuck, revirando os olhos – amor é para os fracos, David. Como se já não bastasse o Pierre, agora você também?

-Qual é o seu problema? Porque você não pode ver uma pessoa feliz sem tentar derruba-la?

-Você não está em posição de me ameaçar, David! Ou já se esqueceu de que posso contar a verdade para o Pierre?

-Pois eu acho que você deveria mesmo contar para ele...

Chuck gelou ao ouvir as últimas palavras de David. Ele não podia estar falando sério.

-O que? Você ficou maluco?

-Não... talvez fosse melhor pra todo mundo contar a verdade, colocar um fim nisso tudo... eu não agüento mais, Chuck! Não suporto mais enganar as pessoas... e Pierre... ele não merece isso...

-Escuta, David! Você não sabe o que está dizendo! Pierre não pode saber da verdade! Não pode nunca saber o que aconteceu. Será que você que você não entende que isso seria o fim? O fim da nossa amizade! O fim do Simple Plan! Pensa, David: a banda que todos nós lutamos para construir, a banda que suportou duras críticas e que acabou vencendo, apesar de tudo! Você quer destruir isso? Quer que tudo acabe assim? É o nosso sonho, David! Você não pode fazer isso!

-Mas... eu pensei que... todo esse tempo que você vinha me ameaçando, era tudo mentira? Você nunca pensou em contar a verdade para o Pierre?

Chuck parecia um louco, com os olhos esbugalhados e a respiração ofegante, enquanto David o encarava com ressentimento e raiva contida.

-Tudo o que eu fiz, David... tudo o que eu faço é pelo bem do Simple Plan!

-Pelo bem do Simple Plan? Você manipula as pessoas, e mente. Você mente, Chuck!

-Eu não tenho escolha... – disse Chuck, reticente.

David o observou, intrigado. Chuck, percebendo o olhar do amigo, mudou repentinamente, despejando novas ameaças sobre David:

-Olha só, David: você está nessa comigo desde o começo e não é agora que vai me abandonar só por causa de uma garotinha que surgiu na sua vida da noite para o dia. Você fez tudo errado, mas nem tudo está perdido ainda.

-Como assim?

-Podemos virar o jogo! Há essa altura, Peggy deve estar desconfiando de que Pierre teve alguma coisa a ver com o aconteceu à amiguinha dela. Eles já não estão mais tão unidos como antes, vai ser fácil...

-Mas...

-Eu vou precisar da sua ajuda, David! Você tem que me ajudar a separar os dois definitivamente... e tem que ser agora!

-O que você pretende? – disse David, sentindo o medo espalhando-se por todo o seu corpo.

Chuck sorriu, presunçoso.

-Eu volto amanhã. Você precisa ficar sozinho agora para refletir sobre os seus atos. E desta vez, é melhor não tentar fazer nada por conta própria, ou será pior pra você!

David engoliu em seco enquanto via Chuck desaparecer pelo buraco da porta. Chuck não estava para brincadeiras dessa vez, e David sabia que o que viria pela frente não seria nada bom. O passado estava voltando a tona, e ele não iria poupar ninguém dessa vez.

***

Demorou um bocado, mas Bel acabara pegando no sono. Já passava da meia-noite e Peggy precisava voltar para casa. Ao sair, disse a mãe que tivesse paciência com Bel, e que a tratasse com todo o carinho do mundo. Deu uma desculpa esfarrapada ao pai, que mostrou muito intrigado ao chegar em casa depois da hora extra e ver a filha ali.

Porém, ao fechar a porta atrás de si, levou um enorme susto ao se deparar com a presença estarrecida de David.

-O que você quer aqui? Já não basta tudo o que já fez por hoje? – desprezou-o Peggy.

-Eu só quero falar com a Bel...

-Para faze-la sofrer ainda mais?

-Ela precisa me escutar! Eu tenho que explicar que...

-Não tem explicação! Não existe explicação para o que aconteceu! O que você fez com a Bel, não se faz, David! Mulher nenhuma no mundo merece o que você fez a ela. Você brincou com os sentimentos dela, a machucou e humilhou da pior forma possível. Não tem perdão para o que você fez!

-Mas eu preciso ver ela! Ela precisa me ouvir!

-Vai embora, David! Não há mais nada que você possa fazer para consertar o seu erro.

-Mas eu só...

-Bel nunca mais vai querer olhar para você. Você teve a sua chance, e a desperdiçou... agora acabou! Não há mais volta!

Peggy estava certa. Bel nunca mais iria querer falar com ele novamente, e com toda a razão. David nunca se sentira tão impotente na vida. Ele estava destruído por dentro, o coração em frangalhos. E em pensar que tudo aquilo não passava de uma mentira, uma enorme mentira... derrotado, ele se afastou da casa, ainda com um nó na garganta.

Peggy o observou enquanto ele se afastava, para ter a certeza de que David não voltaria. Quando deu-se por satisfeita, entrou no carro, dando a partida com a chave de ignição. A noite estava apenas começando...

***

Pierre andava desinquieto de um lado para o outro, à espera de Peggy. A demasiada demora da namorada o deixava tão aflito, que ele não conseguia entender como ainda não havia buracos no carpete da sala, por milhares de vezes que a sola de seus sapatos passaram por ele. Quando a maçaneta da porta finalmente girou, revelando a tão esperada Peggy, Pierre explodiu toda a sua ansiedade em uma única frase:

-Onde é que você esteve o dia todo?

-Olá pra você também, Pierre – ela cumprimentou-o, seca.

-Você não me respondeu...

-Eu estive na casa dos meus pais. Satisfeito?

-Na verdade, não! Eu fiquei preocupado com você, sabia?

-Engraçado você dizer isso agora. Afinal, foram tantas as vezes em que você me deixou plantada te esperando.

-Mas é diferente!

-Eu estava consolando a Bel depois do que o seu amiguinho fez com ela!

-O que?

-Ela ficou muito mau com isso tudo. O que o David fez foi horrível.

-Mas o que ele fez? Do que é que você está falando?

-Você não sabe mesmo do que eu estou falando?

-Não! Como é que eu ia saber se eu fiquei aqui o dia inteiro?

-David enganou a Bel... eles estavam juntos no apartamento dele quando apareceu o Chuck e disse a ela que David não queria nada com ela, que estava brincando com os seus sentimentos... ele disse que David se aproximou de Bel por causa de uma aposta.

-Mas... o que?

-Você tem certeza de que não sabia de nada disso?

-Eu sabia que os dois estavam namorando, mas é só... David andava estranho ultimamente, nós quase não nos falamos.

-Ele disse que foi idéia do Chuck... é difícil de acreditar que você não sabia de nada, Pierre. Vocês estão sempre juntos...

-Você está duvidando de mim?

-Bom, você não tem me dado muitos motivos para confiar em você ultimamente...

-Isso é loucura, Peggy! Eu nunca ia concordar com uma coisa dessas!

-Mas você está sempre defendendo os seus queridos amigos. Principalmente o Chuck!

-Você já vai começar com isso de novo?

-Viu? Está vendo? Você sempre o defende, não importa o que ele faça!

-Chuck é meu amigo, Peggy! Eu já te disse isso...

-Chega, Pierre! Eu não vou mais ficar aqui discutindo isso com você. Eu tive um dia cheio e estou exausta. E essa discussão não vai nos levar a lugar algum.

Dizendo isso, Peggy deu as costas a Pierre e subiu as escadas.

-Aonde você vai? – gritou Pierre lá em baixo.

-Tomar um banho e dormir! – ela respondeu, ainda áspera.

Tomado por puro impulso, Pierre correu escadas a cima atrás de Peggy e a segurou antes que ela pudesse chegar ao banheiro, olhando profundamente sobre os seus belos olhos castanhos esverdeados.

-Escuta, Peggy: eu não agüento mais ficar brigando com você desse jeito. A gente estava tão bem antes, eu não consigo entender porque temos que gastar o nosso tempo com essas coisas pequenas.

-Porque o Chuck sempre arranja um jeito de se intrometer nas nossas vidas...

-Não, escuta! Esquece o Chuck! Esquece o mundo lá fora! Esquece a Bel, o David, tudo! Acho que se a gente pensasse um pouco mais em nós mesmos, tudo voltaria a se encaixar novamente...

Peggy o olhou demoradamente. Era incrível como, mesmo depois de tudo o que acontecera, ela ainda sentisse o corpo se estremecer ao toque de Pierre.

-Pierre... eu te amo tanto...

-Eu te amo mais do que tudo na minha vida, Peggy!

Então, depois de mais de dois meses de brigas e indiferenças, seus lábios voltaram a se encontrar em uma sintonia perfeita. Depois de tanta coisa, aquilo era quase um milagre. Era mais do que isso: era um raio de luz no fim de um longo dia de trevas e desespero.