POV SCORPIA

Eu não sabia o que havia dado errado no último quilometro até o acampamento meio sangue, eu também não sabia se eles me acolheriam, no auge dos meus 23 anos não era mais criança, mas eu sentia que precisava estar ali.

—Scorpia! - meu guardião me chamou, algo ficou quente atrás de nós, o caminho era confuso, Giga era um mortal que conseguia ver através da névoa, além de ser versado em magia, como eu. - Algo enorme está vindo.

—Como eles nos acharam? - intensifiquei o véu sobre nós, era noite o que facilitava, quando chamei o espírito, o familiar salto no peito me confortou, agarrei a mão do meu guardião e corri mata a dentro.

Giga era meu olhos, visto que havia perdido meus óculos algumas centenas de metros atrás, nós tropeçamos entre as raízes enquantos os urros ficavam cada vez mais fortes, algumas árvores iam sendo arrancadas e eu só queria chegar logo

—Ali! - ele gritou - Vá, atravesse! Você é a única chance!

—Não! Você vem comigo!

—O dragão, vai me matar!

—E essa coisa atrás de nós não? - berrei eu.

—Eu sou apenas um mortal! Seu cheiro deve encobrir minha presença e…- A criatura urrou, nenhuma árvore nos separava, exceto o véu de magia. Eu pude ver sua forma, uma Dracaena vinha queimando e derrubando tudo ao seu redor.

—Um lanche! - sibilou o monstro - ou dois! - eu não tinha nenhuma arma a mão, nada que me desse alguma vantagem ou distância, essas criaturas não podem ser mortas de qualquer forma e minha magia não é ofensiva.

— Eu vou sair - ele entendeu que era da nossa pequena bolha mágica - se eu realmente valho de alguma coisa, eu preciso ser capaz de derrotá-la. Fique aqui, se esconda, não sei como vai ser, talvez o conforto não dure muito tempo.

Projetei meu corpo afora das sombras, chamei o Ar comigo. Eu precisava de agilidade.

—Sangue de semideus! - a voz retumbou - esse lugar é a queda de muitos, será um prazer levar mais um. - Apesar de grande, a Dracaena era desajeitada, e ficou realmente mais lenta, eu consegui escapar da sua primeira investida, quando ela mirou a lança em minha direção num ataque reto, eu consegui desviar da parte pontuda e empurrar a lança pro lado, entrei em sua guarda e quase acertei seu rosto com um soco.

Quase.

O que eu não havia notado eram as lâminas salientes em minhas costas que teriam me partido em dois se o meu guardião não tivesse tomado a maior parte do dano ao segurar a haste da lança, fazendo um talho profundo em suas costelas e jogando nós três ao chão com a força do impacto.

—Não… Não… - o sangue se espalhava com rapidez.

—Eu… te servir bem?

—Você não vai morrer aqui! - Nos instantes seguintes eu senti meus olhos doerem, minha cabeça quase explodiu. O ar ao nosso redor ficou rarefeito, as sombras se tornaram gavinhas pegajosas, iam circulando e cortando a criatura.

Foi a vez da Dracaena gritar.

Meu ódio era tamanho que me deleitava com seus gritos, pouco a pouco mais roucos e fracos até não restar nada exceto sua arma. A escuridão voltou pra mim como um elástico e caí no chão, exausta.

Engatinhei até meu Guardião, canalizando o espírito através de nós. Lanternas me cegaram. Alguém falou,e outras vozes vieram em seguida.

—Aqui! - Grasnei - Por favor, o ajudem! Ele é mortal, mas precisa de ajuda, por favor!

E a última coisa que eu vi, foram dois grandes olhos azuis.

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Acordei de supetão com as roupas em farrapos, num local claro demais, minha boca tinha gosto do bolo de cenoura com chocolate da minha avó, mas todo o meu corpo estava em frangalhos, a exaustão pelo controle dos elementos e daquela escuridão esquisita que sempre me rondava. Tateei por meus óculos.

—Oh, você acordou! - Os mesmos olhos azuis, um adolescente louro de aparência atlética surgiu sorrindo. - Achamos vocês perto do pinheiro. - ele estendeu um algo a mim, um par de óculos novos e perfeitamente ajustados. Antes que eu pudesse agradecer, outro pensamento me ocorreu.

—Giga! Como ele está? Como meu guardião está? - ele fez uma careta, provavelmente referente ao termo ou ao sotaque.

—Tentamos muitas coisas e ele está estável, mas ele é mortal, o melhor seria um hospital, de verdade. - me levantei a contra gosto, mas não caí embora tenha ficado zonza, eu sabia onde ele estava, meus pés me levaram até lá, sendo observada por um curioso. Quando o encontrei, repleto de tubos e acessos, meus olhos embaçaram.

—E não posso perder mais ninguém… Você me prometeu que ficaria bem… Foi o acordo que fizemos pra você me trazer aqui. Droga, Giga! Droga! Mil vezes droga!

— Ele está estável… você precisa descansar também, eu vou chamar Quíron.

—Eu vou ficar bem, mas preciso ficar aqui, com ele. - existiu um entendimento mútuo em nossos olhares, ele trouxe uma poltrona e eu me sentei, tendo acesso a sua mão. Encostei ela na minha testa e murmurei meu mantra - Que o ar leve embora sua dor, que a água lave suas feridas, que o fogo da vida não se apague, que a terra seja sempre sua casa e que o espírito o preencha, abençoado seja, meu guardião. - senti o familiar espírito em mim, agora sem a urgência da situação anterior, pude canalizá-lo com calma e clareza, irradiando o elemento com força de vontade.

Não sei quanto tempo fiquei ali, mas quando as exclamações surgiram, meu primeiro instinto foi olhar para trás. Quíron estava ali, com o mesmo menino loiro - Will, se recordava que alguém o havia chamado assim - e uma terceira pessoa que não reconheci.

—Isso definitivamente é magia, e magia de Hécate, mas não necessariamente da forma com a qual estamos acostumados, é mais… antiga e volátil. Não utiliza palavras de encantamento. A anos um filho de Hécate não nasce com esses dons.

—Não sou filha de Hécate, embora a deusa tenha me respondido e me agraciado - a surpresa pode ter assolado os dois mais novos, mas não Quíron, o velho centauro apenas deu um meio sorriso.

—Você é adulta - observou a menina.

—Uma das graças de sua mãe foi me permitir estudar para entender.

—Você sabe quem é seu parente divino? - perguntou Will. Eu não o olhei, meus olhos encontraram os de Quíron, ele entendeu e se mexeu de forma inquieta.

—Existe… Suspeita - eu disse - mas nada concreto.

—Eu sou Lou, esse é Will e este é Quíron. Qual seu nome?

Uma vida inteira passou por mim, 23 anos de sorrisos, mentiras, formações escolares e amigos. Olhei para o meu guardião, seu rosto estava mais corado e sua respiração compassada. Apesar dos tubos, ele parecia estar dormindo, um pigarro me tirou de minhas lembranças e fortaleceu meu propósito, o espírito se ondulou na sala, criando uma leve camada de energia sentida por todos.

—Meu nome é Scorpia.

—Certo, Scorpia, você se sente bem para conhecer o acampamento?

—Então… eu posso ficar?

—Você já está aqui - foi a minha vez de dar um meio sorriso- Will, você está dispensado dos seus serviços de hoje, colocarei alguém de confiança para cuidar do seu amigo,mas ele por outro lado, não poderá ficar muito.

—Eu entendo, obrigada por não tê-lo deixado morrer.

Com um aceno, nos dispersamos, apertei a mão de Giga uma última vez e sai no encalço do garoto loiro mais baixo que eu uns 30 centímetros. Tudo era mais bonito do que o descrito nos contos do escriba.

—Sempre ficamos boquiabertos com a primeira vez. Como os olimpianos ainda estão cumprindo a promessa, você deve ser nomeada em breve. Seus traços me lembram ares.

—Não sou tão briguenta a esse ponto, além do mais, mataria Clarice na primeira oportunidade.

Ele então riu e eu percebi que apenas soei mais como um deles, infelizmente algo dentro de mim me dizia que não era.

—Então você leu os contos?

—Sim, e foi a partir dai que minha vida começou a desandar. - ele me olhou com solidariedade - tive sorte de viver até idade adulta, vivi a maior parte das experiências de um mortal, mas sempre soube que era diferente.

—Como você viveu tanto?

—Eu não sei, mas desde muito nova sempre fui capaz de ver através do véu, a curiosidade me levou até a magia e Hécate me abençoou em minhas preces e estudos. Não faço ideia do motivo, mas me ajudou a sobreviver. Eu sempre percebi os monstros, mas sempre fiz magia e amuletos para que eles não me encontrassem… Me camuflei, me mudei algumas muitas vezes.

—E quanto ao seu amigo?

—Seguindo os passos da antiga religião, as sacerdotisas tinham direito a um guardião, eu precisava de ajuda na época, eu precisava ficar um tempo parada, para terminar com a faculdade e cumprir as obrigações mortais, foram quase seis meses pra ele aceitar… Ele cria amuletos muito bons em troca, ensinei a como energizá-los, como cuidar, e fazer a limpeza, além de estudarmos juntos e sempre protegemos um ao outro. Apesar de tudo ele é mortal, e eu também achei que fosse.

E arqueou as sobrancelhas

—Eu tenho ambos pais, separados, mas vivos e presentes - foi aí que ele ficou mais confuso - eu creio… que seja algo parecido com o que aconteceu a Héracles, a possessão. Eu não tenho nada, exceto uma ansiedade inquietante e, bom, estou viva até hoje.

—Você tem ótimos pontos. - comentou ele quando chegamos ao lago de canoagem. Instintivamente retirei meus coturnos que milagrosamente haviam sobrevivido a toda essa loucura e enfiei os pés na água, apreciando um pouco o sol matinal. Senti o olhar de Will em mim.

— O que foi? Eu curto uma vitamina D.

—Meu namorado deveria aprender uma ou duas coisinhas com você.

—Você não perde a oportunidade de falar mal de mim, não é mesmo?

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.