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Fix You


Estou sendo sacudido com insistência, mas me recuso a acordar completamente. Eu só quero ser deixado em paz nas sombras e no silêncio do esquecimento, mas isso se mostra impossível, graças à voz familiar me chamando em tom urgente. Resisto o máximo que posso, pois não quero despertar para a realidade negra que sei que me espera assim que abrir meus olhos. Quem sabe a morte não é assim? Nada mais que a ausência de tudo, com algumas pinceladas de passado para garantir a insanidade eterna. Mas não serei seduzido por esse delírio enganador. Quero ficar aqui, onde é mais seguro, onde sei que o nada é nada e a escuridão nunca tentou me iludir com promessas de um futuro feliz.

— Félix! – A voz em tom assustado não desiste de me chamar com urgência desesperada, e ela tem o estranho poder de me puxar do meu refúgio de dor, camada por camada de sono acima. Um par de mãos seguram meus ombros, sacudindo-os com ainda mais força.

— Me deixa em paz... – Eu ainda consigo murmurar, irritadamente, mas é tarde demais para impedir que uma sacudida mais intensa me faça abrir os olhos. E uma vez que os abro, descubro que talvez tenha acordado de um sonho dentro de outro.

Sou brindado com um par de olhos já brilhantes de lágrimas do Carneirinho olhando para mim, suas mãos ainda segurando meus ombros, como se soltá-los o fizesse me perder de novo para a inconsciência.

— Félix! – Sua exclamação é um misto de alívio e incredulidade - Você está bem? Minha Nossa Senhora... Já estava aqui sem saber o que fazer. Estou aqui há séculos tentando te acordar, sem conseguir! Já te sacudi tanto! Acordei com você se mexendo muito, se debatendo, chorando... Seus lábios se moviam sem dizer nada...

As palavras de preocupação que Niko dispara com a voz rápida pelo nervosismo apenas resvalam pelos meus sentidos, enquanto eu me descubro completamente inábil para emitir qualquer som. Por isso limito-me a olhá-lo, enquanto uma miríade de emoções conflitantes dá voltas e voltas dentro de mim, sendo o alívio o que predomina. O alívio imensurável de ter aquele par de olhos verdes bem abertos olhando para mim. Longe do habitual mar calmo e límpido, este é um mar em franca tormenta, com ondas agitadas pela apreensão e desespero... Mas ainda assim, abertos. Marejados e coroados pela expressão mais apavorada que já tive a tristeza de ver em sua face... Mas abertos.

— Félix, fala alguma coisa... – Ele solta meu ombro e toca meu rosto suavemente com os dedos, quase com receio - Que pesadelo horrível foi esse que te deixou assim? Foi assustador demais, fiquei tão preocupado que achei que ia morrer de susto!

Suas últimas palavras finalmente quebram minha imobilidade e me fazem mover na cama apenas o suficiente para atirar-me desesperadamente entre seus braços generosos, que instintivamente me envolvem sem reservas. Sou envolvido também por seu cheiro tão familiar, um misto morno de amaciante de roupa do pijama, sabonete e seu cheiro natural. Fecho os olhos e tento respirar fundo para me inebriar no odor dele, mas um soluço estrangulado não deixa. Quase não percebo que voltei a chorar descontroladamente. As garras do sonho tão cruel quanto real ainda pairam ameaçadoras sobre mim, querendo me abraçar com sua escuridão. Minha mente racional sabe que foi um sonho... Mas meu coração acelerado ainda duvida, martelando descompassado em meu peito.

Não obstante meu desespero, meu Carneirinho se transformou em um ninho humano, quente e acolhedor, e eu sou como um minúsculo passarinho que foi temporariamente arrancado dele por uma brincadeira perversa do meu inconsciente. E mesmo que Niko tenha me resgatado de volta, isso ainda não parece suficiente para dissipar as sombras do pesadelo, por isso eu me agarro mais a ele, como se pudéssemos nos fundir num só.

Foi um sonho. Foi só um sonho... Isso é real. A pele dele é real. O calor de seu corpo é real. Seu cheiro é real. Seus braços ao meu redor também...Meu Carneirinho está aqui e é real...

Eu nada faço para estancar ou reprimir as lágrimas. Sinto que elas precisam sair para expurgar de dentro de mim todo o horror que esse sonho foi capaz de evocar. Eu me abandono à dor porque sei que não estou mais sozinho. Existe um par de braços fortes dividindo seu peso comigo. Existe uma voz macia junto ao meu ouvido se fazendo presente na forma de um mero sussurro tranquilizador.

— Estou aqui... Estou aqui, amor. – Sua voz é um um mantra que ele repete vezes sem parar. – Estou aqui... Shhh... – Seus dedos passeiam pelas mechas do meu cabelo carinhosamente. – Estou aqui...

Se eu estivesse em meu estado normal, a piada viria veloz para quebrar a tensão e o medo, para rasgar com leveza o clima de horror que me assaltou poderosamente e ameaçou contagiar até aquele que tão dedicadamente me envolve nos braços. Mas ela não encontra voz para fazer o caminho para fora de meus lábios, pois nenhuma piada seria forte o suficiente para tanto.

Certa vez você brincou comigo fazendo alusão a um polvo cheio de braços. Eu impliquei de volta te chamando de lagosta... Mas agora, como eu queria que houvesse mais braços seus ao meu redor, me apertando o mais forte que conseguisse...

Como se ouvisse meu pensamento ele reforça o abraço mais ainda. Os lábios úmidos encostam na minha testa, em um beijo suave, cálido. Minhas lágrimas já começam a esmorecer, sendo docemente vencidas pelo carinho daquele que me acolhe. Os últimos soluços se tornam espaçados até sumirem de vez. O galopar em meu peito já vai se tornando leve trote. Mesmo assim permaneço aninhado nele. O vão entre seu peito e seu pescoço se tornou meu refúgio e minha proteção. Minhas mãos são âncoras firmemente atracadas ao porto seguro de sua cintura.

O silêncio nos faz companhia na cama. Um hóspede agora benvindo, consolador. Protegido em seu abraço, eu permaneço de olhos fechados, deixando que minha respiração se acalme. Os pensamentos antes desencontrados pela dor e pelo desespero se rearranjam em minha mente como um quebra-cabeças que aos poucos vai formando uma imagem que faz sentido. Eu vou juntando as peças uma a uma, com cada pedaço de memória emergindo e se encaixando.

Algumas peças desse quebra-cabeças são reais. O esquecimento do carregador do celular, e a ausência de comunicação com ele durante dois dias por conta disso. De fato eu cheguei de Angra dos Reis bem tarde da noite, e como a casa estava toda às escuras, usei a chave que ele me dera de forma a não acordar ninguém. Quando entrei no quarto de Niko, logo divisei sua forma adormecida na cama antes que meus olhos se acostumassem com a penumbra. Aproximei-me da cama e permiti-me admirar suas feições adormecidas, serenas, o suave sobe e desce de seu peito na respiração calma de quem dorme profundamente, os cachinhos loiros displicentemente dispostos no travesseiro...

A saudade das íris de jade brilhante me doía fundo, mas para quem conseguira esperar dois dias, o que eram algumas horas a mais? Por mais que a ansiedade de contar-lhe a grande surpresa me corroesse o íntimo, não tive coragem de despertá-lo de um sono tão profundo e como eu bem sabia, merecido, após um dia de trabalho puxado no restaurante. Limitei-me a beijar sua testa, depois tomei um banho rápido, vesti um pijama e me juntei a ele na cama. Antes de cair vencido pelo sono, levei comigo uma última imagem de seu rosto sereno, adormecido, onde a sombra de um sorriso pairava nos lábios entreabertos. Melhor imagem para se levar para o mundo dos sonhos, não consigo imaginar...

Então veio o pesadelo traiçoeiro, que transformou essa última visão na piada mais vil e desvastadora. Mais do que acreditar na piada, eu caí nela tão fundo que achei que jamais voltaria à superfície.

Muito pior do que nunca ter... É ter e perder.

Fui eu quem disse isso a ele certa vez, me referindo a meras posses materiais. Mas agora, seguro no bálsamo de seu abraço, sei que posso compreender melhor do que nunca o verdadeiro sentido dessa frase, assim como a mensagem que o pesadelo certamente quis me passar. É irônico eu ter esse sonho justamente quando estou prestes a dar o passo definitivo em direção a um futuro com ele... Quem sabe um dia eu seja capaz de rir dessa ironia.

Finalmente abro os olhos junto ao seu peito, e respiro profundamente. Seus braços continuam firmes ao meu redor, e Niko permanece em compreensivo silêncio. De repente eu não quero mais pensar em nada, não quero mais racionalizar ou dissecar os cantos mais escuros do meu subconsciente em busca de respostas. Nada mais me importa agora, eu não quero mais pensar. Só quero sentir.

Só quero senti-lo.

Unidos assim como estamos, já sinto que somos um só, mas minha mente precisa se convencer disso. Busco seu olhar, afetuoso e sereno, o verde dos olhos um mar claro e límpido, as feições do rosto agora tão tranquilas, os cantos dos lábios onde já nasce um sorriso amoroso. Eu o puxo mais de encontro a mim e espero que meu toque ansioso e urgente fale melhor do que palavras jamais conseguiriam.

Existe em mim um vazio que somente você pode preencher.

Claro que meu Carneirinho compreende como ninguém a linguagem do silêncio. Quem sabe ele mesmo não a tenha inventado... Por isso mesmo ele prontamente responde ao meu pedido mudo com seus lábios nos meus, em um beijo inicialmente suave, quase fraternal, mas que logo se torna em promissora faísca para trazer um novo elemento entre nós e os lençóis amarfanhados.

Desejo. Categórico, ele vem, cresce, se inflama poderoso, arde em nossas peles e clama a posse de nossos corpos já vítimas de seus efeitos. O anterior silêncio se torna em gemidos e ofegos. Nossas respirações aceleram como se combinassem o ritmo. Os pijamas são retirados do caminho com sofreguidão, deixando a liberdade de pele contra pele assumir seu lugar de direito.

Por alguns cruéis momentos, eu o perdi de vista. Por intermináveis momentos o pensamento de sua ausência me desesperou e ameaçou me enlouquecer. O horrível pesadelo se esvaneceu mas deixou suas sequelas. Para esquecer o toque frio da morte, somente a presença colorida da vida. Somente a sua presença.

Em mim.

Dentro de mim.

Ele sabe exatamente do que eu preciso, como se pudesse ler minha alma. Sei que não devo me surpreender com isso, afinal, ele sempre soube.

Como seu prisioneiro confesso, eu me entrego sem reservas. Neste momento o Carneirinho assume o papel de pastor. É ele quem me guia por entre caminhos ardentes de fogo e ânsia enquanto me invade, a princípio lentamente, depois com mais vigor e pungência, até nos tornarmos tão inseparáveis na carne como já somos no espírito. Nossos movimentos frenéticos são comandados pelo desejo que nos traz reféns. Eu queimo por ele, e quero queimar mais ainda. Quero morrer em vida na explosão dos nossos corpos unidos, no desvairio do seu sexo me preenchendo por completo, expulsando momentaneamente qualquer coisa que não seja essa ebulição de tesão, suor e rendição.

Estou quebrado. Estou danificado... Mas você me repara e me torna inteiro de novo.

A visão de sua face deliciosamente crispada pela excitação me captura poderosamente. Eu me concentro no verde turbulento de seus olhos até onde consigo, mas quando as sensações se aproximam da explosão final, eu não luto mais, apenas permito ser levado pelo turbilhão poderoso de cor, fogo e luz que nos percorre.

Nos movemos juntos em perfeita sincronia até o ápice mútuo, aliviador e benvindo. Antes que ele chegue e nos subjugue, Niko se abaixa sobre meu rosto para um beijo profundo por entre ofêgos e gemidos, antes de cair vencido por sobre mim. Eu o abraço, levando uma mão à sua nuca, enterrando meus dedos nos finos cachinhos molhados de suor, enquanto que com a outra mão o seguro contra mim com força. Os movimentos vão diminuindo até se tornarem investidas quase imperceptíveis.

O gosto dele me embriaga os sentidos, enquanto o idílio que ainda pulsa em nós começa a se desvanecer. Em seu lugar, a calmaria toma espaço. Permanecemos um só enquanto nos viramos languidamente na cama de forma a podermos nos encarar. Ainda ofegantes pelo recente frenesi dos sentidos, saboreamos a suave bonança que flutua sobre nós como um manto invisível e gentil.

Finalmente rompemos o vínculo carnal quando ele me abandona, apenas fisicamente, pois ao nosso redor, predomina a pungente e característica mistura de nossos cheiros e suor, uma fragrância que já classifiquei há muito tempo como o melhor perfume que existe... cuja essência só pode ser feita a dois.

Eu me descubro incapaz de parar de olhá-lo, apreciando todos os detalhes que a penumbra predominante no quarto me permite divisar. As linhas suaves e relaxadas de seu rosto, as faces ainda rosadas pelo desafogo recente, o brilho dos olhos verdes, agora mar tão calmo, momentos antes mar tão revolto. Os lábios entreabertos ensaiando um sorriso. Os cachos desalinhados por sobre o travesseiro.

Niko leva uma mão ao meu rosto com delicadeza, e acaricia minha face, percorrendo com os dedos trilhas invisíveis que certamente as lágrimas de desespero do pesadelo deixaram, até repousarem sobre meus lábios. Um leve estremeço me toma a alma ante as lembranças desagradáveis e fecho os olhos.

— Félix... – Sua voz é um mero sussurro e eu abro os olhos. – Posso te fazer uma pergunta?

Eu já sei o que ele vai perguntar, e antes que o faça, eu pego sua mão dos meus lábios e a beijo várias vezes, em seguida mantenho-a junto ao meu peito, bem em cima do meu coração.

— Carneirinho... – sussurro de volta. – Posso te contar o sonho, se quiser mesmo saber. Mas preferia não lembrar, porque sinceramente, foi o pior pesadelo que eu já tive em minha vida.

— Não, Félix... Não precisa me contar, tudo bem. – Ele dá um meio-sorriso tranquilizador, já desistindo do assunto antes mesmo que comece, porque não quer me provocar mais angústia. Porque assim é meu Carneirinho com quem ama. Antes ele sentir a dor do que deixar aqueles que ama a sintam. Sua curiosidade e sua preocupação não vem antes do zelo para com aqueles que lhe são caros. E eu sou o sujeito mais sortudo do mundo por estar entre eles.

Então cai minha ficha. O que estou fazendo? Por que esconder dele algo que diz respeito e tão somente a ele? Por que não transformar esse sonho terrível em algo bom, trazendo afinal para fora do meu peito o que há muito tempo luta para ser externado?

Chega de sentir medo. E definitivamente, chega de sentir medo de sentir medo. Ainda não tenho muita experiência nesse negócio de abrir a alma para o amor... Mas tenho certeza que não faz parte das regras abrir-se pela metade. Por isso me volto para seus olhos confiantes e serenos. O sorriso dele se esvai ao sentir meu ar solene.

— Niko, eu... – começo, lutando para engolir um soluço intruso. – Eu sonhei que haviam arrancado de mim algo muito, muito precioso. Algo que eu sonhei a minha vida toda em ter. Algo sem o qual não me imagino continuar vivendo... Algo que já faz parte de mim.

Apertei sua mão que trazia junto ao meu peito. Percebi a inspiração nervosa dele como reação.

— Algo, não... Alguém. Alguém sem o qual não conseguiria continuar vivendo.

O Carneirinho mantém o silêncio, sem ousar nem piscar ou me interromper.

— Sabe por que fiquei tão desesperado com esse sonho?

Ele negou levemente com a cabeça.

— Porque eu não vivo sem você, Carneirinho.

Eu vejo a surpresa em seu semblante. É claro como água que ele não esperava por isso. O brilho de lágrimas rapidamente surge nos olhos verdes, marejando-os e tornando-os mais brilhantes e cristalinos. Geralmente, isso tem o poder de me esmorecer internamente, mas não agora. Essa emoção fui eu quem provocou, e neste momento, orgulho maior do que o meu não há.

— Félix... – murmura com voz levemente embargada. – Eu é que não vivo sem você.

— Ah, não senhor, eu falei primeiro, Niko! Eu é que não vivo sem você! – minha réplica o surpreende mais uma vez, só que de maneira diferente. Ele arregala levemente os olhos e deixa escapar uma risada entre lágrimas. Eu o acompanho no riso, me deliciando com o som de sua gargalhada, um misto recompensador das melhores emoções possíveis. Se o paraíso existe e possui trilha sonora, certamente essa é a música que eu passaria uma eternidade toda ouvindo no repeat.

— Tá bom, Félix, você venceu. Você não vive sem mim, e eu não vivo sem você. Posso deixar assim? – Ele se aproxima de mim na cama, ainda rindo, e diz antes de me beijar. – Deal?

Ainda trago sua mão junto ao meu peito quando nossos lábios se tocam, e sei que nem mil pesadelos me fariam soltá-la de novo. Sinto o gosto salgado de suas lágrimas, e sei que logo se misturará com o gosto das minhas.

— Deal. – murmuro entre beijos. Após um último selinho, afastando o rosto ele me encara ainda sorrindo, e satisfeito repousa a cabeça no meu travesseiro, colando seu corpo ao meu.

O refúgio entre seu pescoço e seu peito me acena tentador e aceito o convite, aninhando-me ali. Eu respiro profundamente, moldando meu corpo ao dele, me regalando no conforto dos seus braços ao meu redor e no calor da sua pele contra a minha. Uma mão carinhosa toca em meus cabelos, e seus dedos se entrelaçam nos fios em leves cafunés antes de repousarem imóveis.

Fecho os olhos.

“Eu não vivo sem você” talvez seja nosso “Eu te amo”.

Essa certeza disfarçada de talvez me embala o pensamento e eu deixo a inconsciência magnânima me envolver sem reservas, pois agora, envolto por seu abraço seguro, sei que não preciso mais temer a escuridão.

* * * * * *

Estou sonhando de novo, só que dessa vez eu sei que estou sonhando.

Ao mesmo tempo também sei que esse sonho é uma lembrança. O cheiro do mar de Angra dos Reis, com suas ondas suaves beijando a margem da praia, assim como o contato frio da areia embaixo dos meus pés contribuem para reforçar essa constatação. Eu olho para baixo e vejo pés pequenos, com seus dedos se contorcendo na areia meio pedregosa. Pés de criança.

Uma lembrança de criança.

Eu já vivi isso, e agora estou revivendo. Não tenho certeza de quantos anos eu tenho, mas suspeito que talvez uns nove ou dez anos. Tem outra mão de criança na minha, só que bem menor. Olho para o lado e a face sorridente de minha irmã menor me encara.

Olho para o outro lado e ergo o olhar. Sério, meu pai dirige o olhar distante para o mar e nada diz. Ele nem parece notar que o estou observando, e de alguma forma isso não me surpreende. É uma sensação familiar, que uma criança da minha idade já assimilou desde muito cedo.

— Ehhh! – me assusto com o grito infantil e volto a olhar para a pequena Paloma. Uma onda mais forte alcançou seus pés e ela solta mais gritinhos de alegria. Já eu recuo um passo para que a água gelada do mar não me incomode mais do que já o faz.

— Posso, papai? – ela pede, e só então meu pai desvia o olhar do horizonte e a olha sorrindo. Sua face se suaviza. – Posso ir na água?

Eu faço uma careta mental. Por que alguém iria querer entrar nessa água gelada, com um tempo desses? No céu nublado dessa manhã, o sol se esconde atrás de uma nuvem e um vento frio vem do mar só para completar o clima nada convidativo para um mergulho.

— Claro, minha princesa. – Só então meu pai parece lembrar-se da minha existência. – Félix, vá na água com sua irmã.

— Mas papi... A água tá gelada... – Eu apelo, já sabendo que de nada adianta, mas espero pelo menos adiar meu infortúnio por alguns momentos. Uma irritação cresce dentro de mim. Minha irmãzinha sempre tem as piores idéias e eu sempre acabo levando a pior em todas as vezes.

— Já disse para parar com isso de papi. Me obedeça, Félix. – ele empresta uma rudeza a mais à voz. É sempre tão fácil para ele fazer isso, quando o assunto sou eu. – Sua irmã é muito pequena para entrar no mar sozinha.

Eu suspiro, vencido. Nem mesmo posso contar com minha mami agora, já que ela não veio nesse passeio à beira da praia por estar com dor de cabeça. Eu poderia ter dado a mesma desculpa que ela, se soubesse que adiantaria alguma coisa para escapar desse passeio desagradável, mas meu pai é sempre inflexível.

Paloma puxa minha mão, afoita, e eu quase tropeço. A água fria toca meus calcanhares e me provoca um arrepio. Tento tomar coragem, mas então vem a voz do meu pai.

— Vai logo, Félix. Parece uma menininha, com medo de água fria... Aliás nem menininha você é! Olha como sua irmã, tão novinha, não tem medo nenhum.

Às vezes uma revolta abrupta surge em mim, e é sempre quando meu pai me compara com minha irmã. Eu estanco no lugar, decido não ir. A mão da Paloma continua me puxando, em sua incompreensão infantil de não ter seus desejos logo atendidos.

— Eu não vou! A água tá gelada demais. Se Paloma quiser que vá sozinha. Ou por que o senhor não vai com ela, então? – solto a mão de Paloma e cruzo os braços. Eu sei que esse átimo de coragem não vai durar muito tempo, mas não me importo.

Ah, mas meu pai se importa, e muito. Seu rosto se fecha na pior expressão possível. Eu hesito, penso em voltar atrás, mas antes que possa fazer ou dizer qualquer coisa, suas mãos estão sobre mim, se apossam de meu braço e me empurram com truculência em direção ao mar.

— Você vai me obedecer, Félix! Por bem ou por mal!

Eu sou jogado sem misericórdia na água fria e não consigo evitar o mergulho forçado. Quando venho à tona, o choque do ar frio me deixa com o queixo tremendo. Pelo menos uma coisa posso agradecer ao mergulho obrigado... As lágrimas de indignação que já afloram serão encobertas pela água salgada.

— Félisss... molhado! – exclama Paloma entre risadas, e meu peito dói com algo indefinido, mais cortante que o frio quando vejo meu pai acompanhar minha irmã no riso.

— Seu irmão parece um ratinho encharcado, filhinha! – Ele diz divertido entre as gargalhadas.

Eu observo furioso que ela continua basicamente toda seca, enquanto que eu estou nessa situação patética... E por culpa dela. Sempre, sempre por culpa dela.

— Eu te odeio! – Eu vocifero para minha irmã, quase cuspindo as palavras, mas a raiva não me dá coragem suficiente para afrontar meu pai da mesma forma. Somento olho com ira para ele enquanto tento sair da água, abraçando a mim mesmo, tremendo de frio.

Paloma para de rir e para piorar mais ainda minha situação, começa a chorar.

— Retire o que disse à sua irmã, Félix! E NÃO OUSE SAIR DESSA ÁGUA! – Eu o vejo aproximar-se, entrando na água, e penso na ironia: Meu pai não quis acompanhar minha irmãzinha e entrar no mar com ela, exatamente pelo mesmo motivo que eu não queria. Mas para me castigar, me punir, ele entra com todo o gosto e decisão.

O choro de Paloma aumenta, ferindo meus ouvidos junto com o vento frio. Furioso, meu pai se aproxima cada vez mais.

Eu não penso duas vezes. Prendo a respiração e mergulho, desaparecendo de vista. Submerso, ouço sua voz furiosa me chamando, e me afasto da margem da praia, adentrando o mar até que meus pés não tocam mais o solo arenoso. Quando me sinto seguro o suficiente, eu volto à superfície. Meu pai e minha irmã são agora vultos distantes, e não consigo mais ouvi-los.

Claro que meu pai não me seguiu. Talvez agora ele se arrependa das aulas de natação que me pagou. Naquela época não entendia porque precisava aprender a nadar desde tão cedo, mas me lembro que Mami fez questão e não descansou enquanto não fui matriculado no curso.

Eu olho para a praia, e consigo divisar que meu pai entrou na água afinal, mas não para vir atrás de mim. Eu não valho o esforço. Ele acompanha Paloma, que deve a essa altura ter parado de chorar e estar se divertir horrores com o pai. Porque é claro, minha irmãzinha sempre consegue o que quer.

Volto a mergulhar e nado em direção a outra margem lateral da praia, bem longe deles. Não que estejam prestando atenção em mim. Não que já tenham alguma vez.

Não seguro os soluços e as lágrimas quando alcanço a margem arenosa. Meu pai nem me dera a chance de despir minha camiseta e agora ela gruda em minha pele, pegajosa de frio. Tremendo e chorando, eu caminho de volta para o acesso ao condomínio de casas, em direção à nossa. Em dado momento eu corro, na esperança de que assim possa espantar o frio que parece atravessar minha alma.

Quando chego à entrada, não quero ser visto por ninguém, então me dirijo aos fundos da casa, pegando um atalho por dentro do pátio central arborizado que une todos os cômodos.

Vou direto para o único cômodo da casa de praia em que ninguém pensaria em procurar por mim. É o menor dos seis quartos, e atualmente ele não é ocupado por ninguém, servindo apenas para guardar caixas de objetos e roupas passíveis de doação futura.

Meu esconderijo.

Entro no quarto e fecho as duas portas. Não acendo a luz. Antes de mergulhar esse quarto na escuridão eu já localizei uma toalha pendurada no cabideiro e depois de despir a camiseta molhada, a pego rapidamente e me enrolo nela. Me enxugo com urgência.

Vou tateando até achar a porta de correr do armário. Abro-a, entro no ármario, e corro a porta para fechá-la. Envolvido pela toalha felpuda, sento no chão do interior do armário, com as costas contra o fundo de madeira. O armário está vazio, à exceção de algumas poucas caixas amontoadas em um canto.

Finalmente paro de tremer, mas as lágrimas insistem em continuar mais um tempo. Estou dentro de um armário às escuras, mas estranhamente, aqui me sinto seguro. Protegido. Não me sinto sozinho. Tateio no escuro e minha mão encosta no motivo dessa sensação reconfortante. Não preciso olhar para ele, só preciso saber que está ali. Que sempre estará ali.

A coisa mais preciosa em todo o mundo para mim. É tudo de que preciso agora. Deixo minha mão ali, e é como se estivesse me abastecendo de boas energias. As lágrimas secam. Fecho os olhos, apoio a cabeça na parede de madeira e respiro fundo.

Estou quase cochilando quando um barulho me desperta. Abro os olhos sonolento e franco terror me invade ao ver o filete de luz aumentando de tamanho enquanto a porta do armário é aberta.

Fui descoberto. É papi, ele vai me castigar pelo que fiz na praia... Talvez até me bater!

Mil pensamentos cruzam minha mente, mas quando a porta termina de abrir, eu vejo que não é meu pai.

Definitivamente não é meu pai.

* * * * * *

— Você? – Eu deixo escapar um murmúrio incrédulo quando um par de olhos verdes espia para dentro do armário e se focalizam em mim. Cabelos loiros cacheados coroam o rosto do rapaz ajoelhado em frente à porta aberta do armário. Ele sorri, um sorriso largo e sincero.

Sim, eu sei quem é ele. Mesmo que isso seja um sonho onde sou uma criança de dez anos, sei muito bem quem está olhando para mim com esses olhos tão brilhantes e estranhamente familiares.

Ele é aquele por quem eu sempre esperei. Uma voz sussurra no fundo da minha mente e me tranquiliza. Mesmo assim ainda não quero sair do armário.

— Achei você. – Ele diz simplesmente com uma voz macia, e ainda sorrindo me estende a mão. Eu não falo nada e não me mexo do lugar. – Venha, deve estar tão escuro e solitário aí dentro. Vem aqui pra fora. – Ele pede mantendo a mão estendida. – Por favor? – O sorriso aumenta e dá a impressão de iluminar tanto sua face quanto o interior desse armário, quase como se eu estivesse olhando para um anjo bem na minha frente, com halo e tudo.

Eu nego com a cabeça, mas ele não desiste, mantendo a mão esticada.

— Você está com medo de sair?

Eu aceno com a cabeça afirmativamente, e me encolho mais ainda dentro da toalha que me envolve.

— Não tenha medo. Vem... Está tudo bem aqui fora. Você já pode sair.

— Não posso. – Eu finalmente encontro uma voz fraca para responder, e acho que é porque sinto que seria um pecado continuar mudo. Quando um anjo fala com você... É melhor responder, não é?

— Por que não?

— Meu papi... É... meu pai... Ele está com raiva de mim. Vai brigar comigo. – Um leve pânico ameaça me tomar quando percebo que estou prestes a chorar.

— Ninguém vai brigar com você. – O anjo loiro e sorridente me garante, e sua convicção é tanta que começo a considerar a idéia de aceitar seu convite. – Não precisa ter medo. Se você sair, eu prometo que vai ficar tudo bem.

— De verdade? – ainda estou inseguro, mas já estou quase cedendo.

— De verdade.

Estou convencido, mas antes de começar a me levantar, tenho uma idéia. Estendo a mão fechada para ele, com o dedo mindinho levantado. O anjo de cachos loiros olha para minha mão sem entender.

— Jura juradinho?

Qualquer adulto em seu lugar riria da minha cara... Mas esse não é um adulto qualquer. Por isso não fico surpreso quando ele me encara com toda a seriedade que o momento exige.

— Juro juradinho. – Ele responde, entrelaçando seu dedo mindinho no meu. Balançamos levemente as mãos unidas pelos dedinhos, então eu deixo que pegue minha mão de verdade e me ajude a levantar, saindo enfim de dentro do armário.

A claridade que entra pelas portas abertas do quarto ofusca minha visão e eu pisco brevemente. Raios de sol tomam conta de tudo. Aparentemente o sol decidiu, enfim, parar de se esconder atrás das nuvens. Ou quem sabe não foi o anjo que me resgatou de dentro do armário quem trouxe o sol junto com ele?

Ele me leva pela mão para fora do quarto. Eu me deixo levar por ele, confiante. Ele cumpre o que me prometeu, como poderia se esperar de um anjo de palavra. Não cruzamos com absolutamente ninguém no caminho através da imensa casa. Lá fora, o dia está milagrosamente lindo. O azul do céu parece celestial de tão vívido, o que parece bem apropriado. O calor do sol beija minhas faces como um pedido de desculpas pelo frio que me consumiu não muito antes.

— Pra onde estamos indo? – Eu pergunto, mas ele apenas me olha sorridente e nada diz. Continuamos nosso caminho.

Andamos um pouco, passamos pela área da piscina, pelo jardim extenso intermeado por coqueiros, e logo chegamos à praia particular em frente à nossa casa. Eu paro ao lado dele. Seu olhar está voltado para o horizonte longínquo. Eu sigo seu olhar e mantenho a visão à frente também. Quase não dá para perceber o ponto exato onde o céu vira mar, ou vice-versa.

Espio pelo canto do olho a face do anjo e vejo que ele fechou os olhos. Há um meio sorriso em sua face. O retrato da paz. De repente, eu invejo essa paz, e virando-me para a frente, também fecho os olhos. Respiro fundo sentindo o cheiro da maresia. Meus pés descalços se afundam um pouco na areia quando uma onda de água fria vem beijar suavemente meus pés, mas dessa vez isso não me incomoda nem um pouco.

Sua mão ainda envolve a minha protetoramente. Eu tenho certeza que não quero que ele solte minha mão nunca. Por mim podemos ficar aqui para sempre, desse jeito, de mãos dadas, o menino e o anjo loiro, com esse paraíso de paz e quietude ensolarada ao nosso redor.

Não sei quanto tempo se passa, quando sinto algo mudar. Abro os olhos apenas para descobrir que não sou mais uma criança de dez anos. Agora eu sou um homem adulto, e segurando meu dedo mindinho, uma mão infantil o aperta como que para chamar minha atenção. Quando abaixo o olhar, o rosto sorridente de um Fabrício um pouquinho mais crescido, só o suficiente para conseguir andar, se ergue para me olhar de volta.

O bebê dá uma risadinha e testa a onda leve que se aproxima com um dos pés. Quando a água do mar lambe seu pé ele dá um gritinho e me olha de novo, a face infantil rosada e excitada com a brincadeira.

Eu sorrio para o mini-Carneirinho, e imitando seu gesto, molho meu pé na água do mar também. Fabrício então dá um novo pulo e enterra os dois pés na água, dando mais risadinhas após fazê-lo.

Onde antes havia um anjo, agora há um anjinho de cachinhos loiros e de olhos tão verdes e brilhantes quanto os do seu papai Carneirinho. E por falar em Carneirinho...

Olho para o mar e vejo Niko e Jayminho, rindo e brincando na água, jogando água um no outro. Eu me distraio olhando para eles quando a mão de Fabrício puxa meu dedo.

— Pá... Pá! – Ele fala pausadamente, como se testasse a própria voz, sem seguida mais confiante fala claramente. – Papá! Papá. – conclui, sorrindo orgulhoso de si mesmo.

Eu nem consigo falar tal é a emoção que embarga minha garganta. Limito-me a sorrir emocionado para a criaturinha loira que segura meu dedo mindinho com a segurança que somente crianças muito pequenas possuem.

Mini-Carneirinho, você não esqueceu minha promessa...

Sinto uma lágrima deslizar pelo meu rosto, mas isso não altera em nada a sensação de incrível plenitude que me invade ao encarar o pedacinho de felicidade que segura meu dedo com firmeza.

— Félix! – A voz de Niko chama minha atenção – Vem pra cá também! Tá com medo da água gelada, é? – Ele joga água na minha direção para me provocar, mas a água não chega a me alcançar.

— Vem, papai! – grita Jayminho, e imitando Niko ele me joga água também, e tem sucesso em me atingir.

Ele me chamou de papai... Eu sinto novas lágrimas querendo aflorar, e para reprimi-las eu tento ficar sério e me finjo de ofendido com os jatos de água na minha direção, mas logo o sorriso me trai. Assim como algumas lágrimas rebeldes. Eu não poderia me importar menos com isso.

— Mas é o apocalipse! – Eu reclamo. – É guerra, né? Vamos mostrar pra eles, Fabrício.

Tento puxar sua mãozinha para que entre mais na água junto comigo. Ele dá dois passinhos apenas para estancar de repente. Eu paro também, e vejo que seu queixo está tremendo. O aperto em torno do meu dedo se intensifica. No rosto infantil, insegurança. Antes que qualquer sombra de choro ameace sua expressão, eu me abaixo rapidamente e o pego no colo.

— Não... Papá... Não...

— Shh... Tudo bem, mini-Carneirinho... Não precisa ter medo. Não precisamos entrar na água agora. Podemos ficar bem aqui, tá bom? - Eu o tranquilizo, e seu rosto se suaviza. Beijo sua bochecha, fazendo um som estalado que consegue provocar-lhe um sorriso.

— Félix! Socorro! – A voz de Niko finge desespero antes que Jayminho afunde sua cabeça na água em meio a risadas. Niko emerge e pula para cima do filho que tenta escapar sem conseguir. Os dois guerreiam mais um pouco jogando água um no outro, rindo cada vez mais.

Eu me divirto observando-os, e reparo na face feliz do Carneirinho, as linhas perfeitas ainda mais iluminadas pelo sorriso largo. Os cachinhos loiros se renderam à agua do mar e caem por sua testa, emprestando-lhe a mesma jovialidade que compartilha com seu outro filhotinho (como ele sempre os chama). E isso me faz lembrar o quanto ele fica mais lindo assim... Completamente feliz. Seguro a respiração por um momento, ante essa certeza: A cada vez que olhar para ele, o encanto será renovado, num círculo infinito de amor que nada poderá quebrar.

Nossos olhares se cruzam. O mundo gira mais devagar por eternos segundos.

Jogo um beijo para ele. Ele sorri mas antes de conseguir retribuir, Jayme o afunda novamente, pegando o pai desprevenido, soltando ainda mais gargalhadas.

Estou rindo quando me surpreendo ao sentir os bracinhos de Fabrício em volta do meu pescoço em um abraco apertado.

— Papá... - Vem a vozinha enquanto seus braços seguram firmemente em torno do meu pescoço. – Papá.

— Oi, meu amor. – Eu murmuro alisando sua cabeça cheia de cachinhos loiros finos, e deposito nela um beijo. Retribuo o abraço em torno do corpinho que levo no colo, enquanto o som das risadas do Carneirinho e Jayminho fazem coro com o som das ondas se quebrando nos meus pés submersos. Sinto uma lágrima solitária fazer sua trilha pela minha face. Penso que é apropriado que tanto o sal das lágrimas quanto o da água do mar que beija meus tornozelos sejam capazes de purificar minha alma neste momento, porque é assim que me sinto.

Renovado.

Chega-me a certeza de que isso não é mais uma lembrança de criança, muito embora continue sendo um sonho. Mas desde que um par de olhos verdes me encarou da entrada do armário, essa lembrança antiga e já esquecida no fundo da minha memória se transformou em uma visão premonitória.

“A minha família já está feita. É só você entrar.” Aquele convite sincero, que me deixou sem ação, sem palavras, que enviou um calor novo ao meu coração nada acostumado a esse tipo de acesso direto e bem intencionado.

“Eu nunca pensei em ter uma família.” A minha resposta insegura, receosa, a vontade de fugir, o medo irracional que ainda precisaria ser domado, vencido, e finalmente eliminado... Muito embora o sentimento que já nutria por ele fosse igualmente sincero.

Não, eu realmente nunca pensara em ter uma família. Mas não a imitação errônea de uma que por tanto tempo fui obrigado a representar. Uma de verdade. Eu nunca sonhara tão alto assim. Mas agora... O céu de um azul vívido que impera acima de mim parece não ser limite para todos os sonhos que aprendi a almejar.

O Carneirinho me ensinou a sonhar. Mas não um sonho qualquer... Um que realmente importe. E eu sempre fui ótimo aluno em todas as matérias da escola. Não é agora na matéria mais importante de todas que irei falhar. Não mesmo.

Algo me diz que não irei falhar... Pois agora estou convicto que estou sonhando com meu futuro. Meu com minha nova família.

Como que parar reforçar esse fato, os bracinhos de Fabrício se afrouxam e o rostinho redondo me encara, abrindo um sorriso que permite entrever alguns dentinhos de leite.

— Mini-Carneirinho... Quando você estiver pronto, estarei aqui para entrarmos na água. Juntos.

Eu beijo sua testa e ele demonstra acreditar na nova promessa com um outro abraço. Volto a fechar os olhos, e aprecio a paz que os meus outros sentidos me trazem. O som das risadas de Niko e Jayminho enquanto continuam brincando no mar. O toque morno e gentil do sol em meu rosto, secando as lágrimas que verti e também aquelas que apenas sonharam em cair. A água fria do mar que envolve meus tornozelos enquanto meus pés afundam na areia submersa. E acima de tudo, aqueles pequenos braços de bebê em volta do meu pescoço, com uma determinação de quem não pretende soltar jamais.

Eu sorrio de olhos fechados, e me deixo ficar assim por um tempo indefinido, até que tudo vai se desvanecendo em uma luz branca e suave.

* * * * * *

Desperto no quarto envolvido pela penumbra, pois o dia ainda não amanheceu. Inspiro profundamente e poderia jurar que ainda posso sentir todos os aromas do sonho, o calor do sol em minhas faces e até mesmo a água fria do mar envolvendo meus pés descalços. Reminiscências agradáveis que ao contrário do sonho horrível de antes, fazem meu despertar ser tranquilo, com uma sensação de paz em meu íntimo e envolto em um manto de serenidade morno e aconchegante.

Suspiro satisfeito. Viro o rosto para o lado, e a sensação de paz é redobrada ao ver a face serena do Carneirinho. Demoro alguns segundos contemplando as linhas relaxadas do rosto daquele que dorme ao meu lado. A pura face da inocência, esse menino-homem de cabelos cacheados loiros, adormecido, momentaneamente preso no mundo onírico, um Carneirinho saltitando entre seus sonhos preferidos.

O que me faz lembrar...

Numa poltrona no canto do quarto, repousa minha pasta de couro negro. Um repositório de sonhos tranquilamente descansando sem nenhuma pressa de ter seu conteúdo revelado. Com todo cuidado, levanto da cama e resgato-a, trazendo-a comigo para a cama. Deito-me de lado, de frente para ele, que continua dormindo serenamente com um início de sorriso nos lábios como se pudesse de alguma forma prever o futuro.

E quem pode realmente afirmar que não?

Com a pasta preta entre nós, eu estendo uma mão e busco a dele, mas antes de entrelaçar meus dedos aos dele, eu lembro do sonho, e faço meu dedo mindinho se enroscar no dedo mindinho dele, num aperto sutil, delicado para não acordá-lo. Não ainda.

Eu juro juradinho, Carneirinho.

Uma promessa que jamais será quebrada. Uma promessa que começa a ser cumprida agora... Bem aqui, neste quarto, essa cama se torna berço para o nascimento de uma nova família... A nossa família.

Só então me permito entrelaçar minha mão na dele, em um aperto morno e seguro. Mesmo dormindo, a mão dele corresponde levemente ao toque.

Eu não ouso perder nem um segundo do perfeito retrato da felicidade que é exibido à minha frente. Ela se traduz na forma dessa criatura de cabelos loiros cacheados que dorme à minha frente. Nele sei que posso encontrar tudo que jamais ousei desejar. Meu sopro de ar fresco no deserto. Meu raio de luar na noite mais escura. Minha onda de um mar às vezes sereno, às vezes revolto. Minha morada fixa entre seus braços. Mil palavras e expressões me vêm à mente e nenhuma delas é capaz de descrevê-lo como merece, então aproveito para resumi-lo em uma simples expressão.

Ele é a minha felicidade.

Agora, chegou a hora de eu fazer jus ao meu nome... E ser a dele.

Eu aperto sua mão com mais força.

— Carneirinho... – Minha voz é só um pouquinho mais alta que um sussurro, apenas o suficiente para atraí-lo à superfície da consciência desperta. A testa dele se franze levemente, como se relutasse acordar de um sonho agradável. Eu insisto. Afinal, todos os sonhos que dançam por detrás dessas pálpebras fechadas não são nada perto do que lhe aguarda bem aqui, ao alcance de nossas mãos unidas e inseparáveis. A realização do mais acalentado deles.

O sonho de uma família completa.

— Carneirinho, acorde...

Suavemente, seus olhos começam a se abrir.

E quando eles se abrirem, e eu puder ver a mim mesmo no espelho límpido desses olhos, eu saberei que estou em casa.

* * * * * *

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.