Hoje é Domingo de ENEM!

Único; Garfield estava estranhamente calmo



GARFIELD LOGAN
estava estranhamente calmo naquela véspera de ENEM.

Para ser sincero, Garfield estava indo fazer a prova naquele dia 13 mais por pressão — da família, escola e sociedade — do que por qualquer outro motivo.

Afinal, você precisa fazer esse exame, tirar uma boa nota para entrar na faculdade dos sonhos e definir seu futuro! Mas será mesmo? Realmente não havia outras formas de conquistar um bom futuro sem ter que passar por aquela insípida prova?

Garfield achava aquilo tudo muito exagerado! Nem faculdade ele pretendia fazer, iria seguir pelo caminho do mercado de trabalho e se especializar numa área através de cursos técnicos.

Ele nunca se viu como universitário, ao contrário de sua melhor amiga Rachel Roth. Eles se conheciam desde o Ensino Fundamental 1, Rachel morava na casa amarela à sua esquerda, com sua mãe e seus 3 irmãos mais velhos.

No início, foi difícil se amigar com a garota, por mais que ele tentasse, ela sempre encontrava uma maneira de o afastar, até que um dia, durante o intervalo, ele finalmente conseguiu se aproximar.

Ela estava sentada num cantinho do refeitório, sozinha, vestindo um vestido amarelo, meias brancas de detalhes azuis combinando, um sapatinho crocs branco nos pés, com o cabelo sendo segurado para trás por um arquinho rosa e com o livro de “O mágico de Oz”, com ilustrações, nas mãos. Ele se lembrava de tudo muito bem.

Gar, que nunca havia comido carne na vida e desde bebê, incentivado pelos avós, seguia um cardápio vegetariano, se aproximou com sua lancheira do Ben 10 e sorriu para a garotinha quando sentou-se no banco vago a sua frente.

Ele não puxou conversa, poderia ter apenas 7 anos, mas não era bobo, conhecia muito bem o histórico rude da garota.

Rachel fingiu não notar sua presença focando na leitura. Contudo, não conseguiu conter uma careta quando discretamente o viu levar um pedaço de brócolis à boca.

Hm… — Fez uma expressão de nojo. — Como você consegue comer isso?

O garotinho apenas riu.

— Comendo? Do mesmo jeito que você come? — respondeu como se fosse o óbvio.

— Mas isso é nojento…

— Você não gosta? — Ela negou. — Por quê?

— Porque eu não gosto. A cara não é nada boa.

— Então você nunca experimentou?

Ela negou novamente.

— Minha mãe já me ofereceu várias vezes, mas nunca comi. O cheiro é ruim e a aparência não é bonita.

— Não seja boba. Minha vó me ensinou para nunca julgar alguma coisa pela aparência. É gostoso, anda, prove! — Esticou a colher de plástico até a boca da menina. Que fechou novamente a expressão. — Vamos, é gostoso, eu garanto!

— Da mesma maneira que você garantiu que não iria me derrubar naquele dia na educação física e me derrubou? Não, obrigada.

— Não acredito. — Afastou a colher e balançou a cabeça em negação. — Uma garota grandinha dessas fazendo birra pra comer.

— Eu não tô fazendo birra! — rebateu rápido. — Só não tô a fim de comer esse treco verde.

— Tá fazendo birra, mas não quer admitir.

— Não tô!

— Tá sim!

— Já disse que não tô!

— Então prove. — Balançou a colher com brócolis em sua frente. Ela recuou instintivamente. — Tá vendo, é birrenta e…

Rapidamente, Rachel abocanhou o brócolis, pegando Gar de surpresa, que puxou a colher para si assim que a viu engolir o alimento com um gole seco e sorriu vitorioso ao ver a careta se tornar uma expressão de saborear.

— Gostou?

— É, até que é bom…

— Eu disse que era. — disse convencido. — Se quiser mais, pode pegar.

— Não, já comi o suficiente por hoje. — respondeu dando uma mordida em sua maçã. — Você é o garoto que mora com os avós na casa bege ao lado da minha, não é?

— É, a gente se vê todo dia na van.

A garota tentou voltar a prestar atenção na leitura, mas não conseguiu. Reparou melhor a companhia e viu que suas roupas estavam sujas de terra, possivelmente ele passou os últimos vinte minutos da hora da soneca brincando no parquinho com outros meninos da turma, depois que o professor os liberou por estarem agitados demais e atrapalhando o sono dos demais colegas, principalmente o dele. Desceu o olhar. Pelo menos as mãos ele havia lavado.

Silêncio se fez por algum tempo e isso estranhamente a incomodou.

— Sua vó é legal por me trazer bolo toda vez que minha mãe precisa sair à noite. — comentou.

— Todo dia então. — respondeu voltando a olhá-la. — Ela te leva bolo todo dia.

— É, minha mãe anda sempre muuuito ocupada, ela diz que precisa trabalhar muito há noite para manter a mim e meus irmãos depois que o papai se perdeu quando foi comprar cigarro.

— Cigarro? — Gar franziu o cenho.

— É, ele foi comprar um dia e nunca mais voltou.

— Nossa, o mercado era muito longe então.

— Parece que era em outra cidade.

— Espero que um dia ele encontre o caminho de volta pra casa. Meus pais também sumiram. Eles embarcaram numa viagem de avião e foram pro céu. Meus avós tomam conta de mim desde então. Eu não tenho memórias deles, só os vejo por fotos. Mas eu pretendo poder me comunicar com eles algum dia, caso eu consiga, vou pedir para eles conversarem com seu pai e o ajudar a voltar pra casa.

— Como você iria conseguir se comunicar com eles? Meu irmão Darren disse que o céu é impossível de chegar de carro e todo mundo que vai pra lá, nunca volta. — questionou séria, fechando o livro.

— Darei meu jeito. Pesquiso todo dia depois da escola no computador. Encontro muita coisa por lá.

— Dúvido. Você tá mentindo.

— Então vá para minha casa quando descer da van e eu te mostro.

— Tá. Eu vou.

Quando o período das aulas se encerarram naquela manhã, as crianças entraram na van e a avó de Garfield, Maggie, se surpreendeu ao ver Rachel descer junto com o neto e entrar na sua casa.

— Nós vamos brincar, tia Maggie. — Foi a única coisa que a garotinha respondeu quando questionada.

Aquela tarde eles passaram de frente a tela do computador, discutindo sobre a veracidade do conteúdo que Garfield consumia. Rachel, desde jovem sendo tão cética, conseguia refutar quase todos os vídeos apresentados, dizendo que não passavam de uma montagem profissional; como seu irmão Darren dizia, essas montagens eram muito bem feitas e geralmente eram criadas para os filmes de terror que assistiam todas as sextas.

A discussão entre eles prosseguiu, parando somente hora ou outra, quando Maggie aparecia na porta aberta do quarto para saber se precisavam de alguma coisa ou os oferecendo sanduíches de manteiga de amendoim e limonada.

A partir daquele dia se formou um laço de uma linda parceria entre eles, cresceram e se tornaram inseparáveis.

Por isso, reconhecia quando Rachel estava ansiosa e agora, percebeu que ela estava em desespero. Ainda eram sete da manhã e já havia 10 ligações dela no histórico de chamadas.

Ela estava como uma pilha de nervos, com razão. Seu sonho era medicina e esse era o curso mais disputado entre as universidades públicas, curso esse que precisaria de uma nota média de corte de no mínimo 810 pontos no Sisu.

E para ajudar, os dois primeiros anos do Ensino Médio foram atípicos por causa da pandemia da Covid-19. O EAD era bom, porém entraram num consenso de que nunca chegaria aos pés das aulas presenciais. Correr com as revisões na exaustiva terceira série foi a opção. Rachel se exigiu demais e isso o fez ficar preocupado com a garota, ela precisava relaxar. Ela era capaz, ele acreditava nisso, porém nem sempre as coisas podem sair do jeito que queremos. Independente de seu resultado — que provavelmente ela se sairia melhor que ele —, ele estaria com ela e isso era a única certeza que tinha.

Rediscou o número da garota e sua voz rouca e cansada logo surgiu.

— Você demorou! — Observou assim que atendeu. — Estava dormindo até tarde de novo?

— Rae, nem são oito da manhã ainda.

— Oito horas é tarde para mim. — Pontuou. Garfield piscou os olhos, Rachel realmente deveria madrugar, para ele oito horas ainda era hora do amanhecer. — Que seja, já tô descendo. — Notificou desligando a ligação.

Em menos de cinco minutos, a campainha tocou e sua avó foi atender. Debruçado na cama, conseguiu ouvi-la no andar debaixo conversando algo sobre lhe passar uma receita de bolo com sua avó antes de subir.

— Bom dia, senhor soneca. — disse assim que entrou no quarto do garoto, sem bater.

— Credo, parece minha vó falando desse jeito — Riu sozinho, ela não respondeu, apenas andou até a janela e abriu as cortinas. — Mas aí, Rae? Dormiu bem?

Rachel suspirou fundo.

— Mais ou menos. — Puxou a cadeira de sua escrivaninha e a colocou de frente a ele — Dormi apenas duas horas essa noite. Quando eram umas nove horas revisei as cinco competências da redação, foi uma última revisada básica, juro. — Garfield piscou os olhos, sabia quando ela estava mentindo — Acabei tudo eram umas onze horas. Aí fui dormir ou tentar. Estou ansiosa para como vai ser a atmosfera de amanhã, sabe? Tipo… Será que vou encontrar minha sala? Será que vou chegar a tempo para a prova ou irei virar meme? Será que vou conseguir comer? Mal consigo respirar direito com essa máscara, quem dirá comer! Mal vai dar tempo para revezar entre tirar e colocar… e… e… e se o meu celular, mesmo desligado, ligar sozinho e tocar o despertador e… — As palavras saíam rapidamente de sua boca, fazendo o rapaz começar a se confundir.

— Rachel, chega! Respira! — Pediu. — Por favor, se acalme. Vai dar tudo certo, ok? Com certeza terão fiscais orientando onde cada sala fica.

— Mas aquele lugar é enorme, deveríamos ter seguido o conselho da professora Jasmine e ter ido lá num dia livre desta semana que passou para verificar melhor onde fica cada setor e…

— O Richard estuda lá, lembra? Caso não tenha algum fiscal, ele vai poder nos guiar.

— Mas ele sempre se atrasa por causa da Kory! — Observou. — Lembra aquele dia que marcamos passar a tarde assistindo um filme na minha casa? Marcamos às duas, eles aparecerem às três e meia porque a Kory estava indecisa sobre qual sapato combinava mais com o vestido florido dela.

— A gente dá um jeito, ok? Nem que a gente tenha que chegar lá ao meio-dia em ponto e ter que ficar meia-hora revirando aquela faculdade para encontrar sua sala, a gente vai encontrar. — Garfield respondeu calmo, brincando com seu chaveiro do Pato Donald, da bolsa escolar que iria levar no dia seguinte, com a mão livre.

— É bom termos um plano B para chegarmos lá na hora amanhã.

— Por quê? Meu vô vai nos levar, lembra?

— Mas e se o pneu furar na hora que estivermos saindo da garagem!

— É sério isso? — Gar soltou um riso abafado. — Alguém já te disse que você é muito pessimista, anjo?

— Temos que pensar em todas as possibilidades. Hipoteticamente falando, caso aconteça, como vamos nos virar?

— Pegamos um ônibus?

— Moramos na segunda maior cidade do país, acha mesmo que vamos atravessar a cidade, de ônibus, em menos de uma hora?

— Vamos correndo? — Arriscou dizer com um dos olhos fechados.

Rachel bufou, impaciente.

— Rae — Gar voltou a falar. — Nada vai nos acontecer quando sairmos da garagem…

— Mas…

— Te garanto que os ladrões aqui da rua estarão todos também fazendo a prova para mudar de vida — Brincou para aliviar o clima. Rae deixou um sorriso irônico escapar. —, porque roubar de pobre não dá futuro.

— Agora não é o melhor momento para piadas.

— Tá bom, tá bom, entendi. Se caso, hipoteticamente, o pneu do carro do vovô furar ou um ladrão assaltá-lo e não tiver ônibus disponíveis. Aí a melhor opção seria ligar para o Victor, ele mora duas quadras daqui, nos dá uma carona.

— Ele vai passar na Lucky, já combinou com ela.

— Que é nossa vizinha da rua de baixo, não vai ficar muito fora do trajeto dele. — respondeu, se levantando de uma vez. — Garota, pare de colocar obstáculos.

— Eu queria ser calma nessa véspera de ENEM que nem você.

— Isso foi um elogio?

— Foi… mas não abuse.

— Rachel Roth me elogiando, me sinto realizado.

— Começou… — Revirou os olhos, se direcionando a porta — Já tenho que ir. Tenho que me encontrar com a minha mãe na casa da madrinha dela, pra almoçar. Mais tarde te vejo de novo. Tchau!

— Tchau, Rae. Vê se esfria a cuca!

— — —


Mais tarde naquele mesmo dia, no cair do entardecer, Garfield tocava violão e cantava baixo a música Counting Stars da OneRepublic, quando Rachel adentrou seu quarto, pegando-o de surpresa.

— Rae? Tá tudo bem? — perguntou deixando o violão de lado na cama e encarando a amiga, que andava de um lado para o outro no quarto.

— Vai dar tudo errado! Vai dar tudo errado!

— Calma, o que vai dar tudo errado, meu anjo?

— Tudo!

Gar olhou-a sem entender. A moça roía as unhas e passava freneticamente as mãos nos cabelos, a respiração estava pesada.

— Vai dar tudo errado, tô com esse pressentimento. Por que eu fui inventar de fazer a inscrição, hein? O que eu vou fazer lá amanhã? Passar vergonha?

Ela parecia que estava prestes a ter um ataque. Logan se levantou rápido e a segurou pelos ombros, fazendo-a olhar fixamente em seus olhos.

— Respira, respira, respira — pediu baixo enquanto buscava pelas palavras certo, nem percebendo o leve rubor nas bochechas da garota. — Não precisa ficar assim. Vai dar tudo certo, garanto. Eu tô aqui por você.

— Eu sei disso.

— Quer um abraço?

Com seu consentimento, puxou-a para perto e distribuiu beijos no topo de sua testa, confortando-a. Em seus braços, Rae sentiu seu coração disparar e seu peito pareceu ficar mais leve. Sentaram na cama, mas não quebraram o toque.

— Vamos falar de outra coisa. Vamos ver videos de gatos fofinhos. Vamos distrair a cabeça, o que tinha para estudar, já estudamos. Agora é relaxar!

Rachel concordou, não querendo. Apesar de tudo, ele tinha razão. Nervosismo não os levariam a nada, muito menos para a aprovação.

Nesse momento, o coração da Roth acelerou ao se dar conta que seus rostos estavam perigosamente perto um do outro. Era possível sentir a respiração do rapaz em seu pescoço e sua barbicha em seu ombro e isso a fez se arrepiar.

— Ei, pare com isso!

Pediu, envergonhada, afastando seu rosto com a mão.

— Ok.

— Então — Abriu o aplicativo do YouTube no celular. — Que tal uma última revisão de todas antes da prova?

Garfield delicadamente retirou o aparelho de suas mãos.

— Negativo. — Balançou a cabeça. — Nunca faça! Perigoso aumentar sua ansiedade e lhe dar um branco amanhã na hora.

— Então, o que segure?

— Hm… — Apoiou o queixo na mão. — Que tal cozinhar?

— Cozinhar?

— É, podemos assar cookies com gotinhas de chocolate. Fazíamos muito isso quando éramos crianças.

— É — Ela sorriu minimamente. — Gostávamos muito de fazer isso.

— Vamos, minha vó fez compras no início da semana.

Rachel concordou e ambos desceram, de mãos dadas, até a cozinha.

Ligaram o interruptor. A cozinha era grande e espaçosa. Garfield pegou o livro de receitas antigas da avó disposto em cima da geladeira, enquanto Rachel pegava os ingredientes que ainda se lembrava de cór na geladeira.

Na sala de estar, Maggie assistia a novela que acompanhava devotamente. Seu esposo, Gerald, estava ao seu lado, porém distraído na leitura de um livro espírita, Rachel o considerava um homem sábio, sempre pedindo seus conselhos em dias tempestuosos.

— Encontrei! — Garfield exclamou após folhear várias páginas do caderno. Colocou o indicador em cima do enunciado da receita.

— Isso mesmo — Leu a lista de ingredientes. — Olha só, consegui me lembrar de todos de cabeça.

— Claro que conseguiu. Você é incrível!.

— Você também é. — Sorriu, mas ele não o viu, havia ido para perto da fruteira e pegou um laço de cabelo que a avó mantinha guardado ali. Estendeu-lhe para Rachel, que agradeceu baixo.

Rachel se agachou no armário para pegar o recipiente que usariam.

— Então, mãos nas massa.

Com a ajuda da batedeira misturaram bem os ingredientes no recipiente, deixando a farinha de trigo e o fermento por último.

Enquanto distribuía a farinha no copo, a mesma se espalhou, fazendo Rachel tossir ao tê-la contato com o nariz. Garfield passou o dedo indicador no braço sujo de pó e marcou o antebraço dela.

— Rae, seja mais esportiva.

— Mais esportiva…

Desfez a expressão ao repetir a frase e sorriu irônica, ao jogar um pouco da farinha caída na pia em seu cabelo.

— Estou sendo esportiva o suficiente para você agora?

Garfield gargalhou em resposta.

— Adoro te… ver brava. — falou pausadamente.

— Crianças, não façam bagunça! — gritou Maggie do sofá.

— Foi mal, vó. — Desculpou-se ainda se recuperando — Acho melhor obedecermos.

Rachel levou o recipiente à geladeira, onde a massa repousaria por cerca de 10 minutos, tendo um discreto ataque de riso.

— Tá tudo bem? O que foi?

— Nada, é só que… — Colocou um fio solto para trás da orelha. — Ouvir ela falando isso me deu um dejá-vu, realmente voltamos no tempo agora.

— Isso é. No fundo, por mais que a puberdade tenha nos alcançado, as nossas crianças interiores nunca morreram. — Concordou, mesmo que a frase soasse mais bem elaborada em seu pensamento.

— Crescer é uma droga! — Confessou — Temos tantas obrigações que parece que nem temos vida. Saudades de ser criança.

— Também sinto falta dessa fase. Podia jogar videogame o dia todo sem ser julgado, era perfeito. — Pegou o pacote aberto de gotas de chocolate de preto da prateleira do refrigerador. — Será que a vovó acharia ruim se pedirmos para ela ligar o forno?

— No horário da novela dela? Com certeza.

Garfield untou a forma com manteiga e deixou o forno ligado aquecendo. Rachel marcou o temporizador no celular.

Dado o tempo, ela pegou as forminhas com recortes de coração, estrela, cachorrinho, gatinhos além das redondas tradicionais. Com o pau de macarrão, Garfield espalhou a massa na pia de mármore, por cima do papel manteiga. Os dois começaram a pressionar as forminhas, fizeram bastantes biscoitos, seriam necessárias duas levas para assar todos.

O rapaz pôs as luvas brancas com bolinhas rosas, levando a primeira assadeira ao forno.

— Vão ficar incríveis. — comentou após retirar as luvas. — Nós ainda arrasamos, gatinha! — Deram um bate aqui.

— É, vai dar pro gasto.

— Adoro seu otimismo.

Encostaram-se no balcão e começaram a degustar das gotas que sobraram.

— É, se não adorasse, não estaria aqui do meu lado durante todos esses anos.

— Eu sempre estaria. Fizemos uma promessa de dedinho, lembra?

— Lembro. Fico feliz por tê-la cumprido até hoje, sério, isso significa muito. Tantas pessoas que sumiram durante os últimos anos. Quantos “melhores amigos para sempre” se perderam e não se encontraram mais. Quantas pessoas foram passageiras em nossas vidas… sinto falta de tanta gente que se distanciou… — Desviou o olhar, a fim de disfarçar os olhos marejados. — Quase ninguém ficou, mas você, Gar, você ficou. Eu realmente não sei como viveria sem você.

— Que fofa. — Passou um braço por trás dela. — Posso?

— Pode.

Puxou-a para um abraço.

— Sempre ficarei aqui com você, sob qualquer circunstância. — Beijou sua testa.

Rachel enrubesceu, inspirando fundo, o perfume do rapaz era tão cheiroso.

— Eu te amo, Garfield Logan. — Seu coração disparou ao soltar aquelas palavras.

Queria que eles pudessem ser íntimos, este era seu desejo. Contudo, temia perder a amizade de Garfield caso ele soubesse. Era o único com quem ela se sentia realmente segura. Estar em seus braços era como se estivesse voltando para casa em uma noite tempestuosa, seu porto seguro em meio ao caos que era sua vida e família.

Não sabia ao certo quando ou como esse sentimento surgiu em seu peito. Talvez fosse o modo atencioso pelo qual sempre a tratava ou a maneira linda que formavam covinhas em suas bochechas sempre que sorria sincero para ela.

Sempre teve uma leve desconfiança de que ele poderia retribui-la, mas tinha medo.

Amor era um sentimento complicado em sua concepção, e não tinha boas vivências em relação a ele.

Dentro de casa, o relacionamento de seus pais era desestabilizado, o pai abandonou a mãe grávida dela com três filhos de colo, para complementar a renda, sem o apoio do pai, Angela começou a se prostituir, mal parando em casa. Quantas noites ela e seus irmãos passaram sozinhos. Invejava os coleguinhas de turma por terem pais para buscá-los na escola.

Com o exemplo que teve, achou que nunca iria se render a essa baboseira romântica… até conhecê-lo. Sim, já amou uma vez, na pré-adolescência. Seu nome era Malchior, era três anos mais velho e seu estilo bad boy era hipnotizante para sua jovem versão.

Inocente, se declarou, e em resposta foi debochada e humilhada pelo garoto e seus amigos babacas. Sua vida virou um inferno depois disso, Malchior reivindicou um alvo em suas costas. O bullying que sofreu foi terrível, criticaram seu corpo e sua aparência pelo fato de ser gordinha, a excluíram, era como se as pessoas rissem por suas costas sempre que passava no corredor.

A dor que lhe apertava o peito, a vontade inexplicável de ficar perto, mesmo sabendo que isso a machucaria, a maneira pela qual se importava com ele e o fato de se pegar pensando nele até alguns meses antes, tudo aquilo era muito avassalador para ser apenas paixão.

Garfield esteve ali por ela em todos os momentos, depois de um tempo Kory, Richard e Victor somaram a dupla — eles também sofriam bullying e acreditavam que se eles se juntassem, tornariam-se mais fortes e um defenderia o outro. Durante todo o ensino médio foram taxados como o “grupo dos estranhos”, mas Rachel nem se importava mais, estava na companhia das pessoas mais incríveis do mundo, não os trocaria por nada.

Achou que nunca mais iria se apaixonar, erro dela. Lá estava ele, esse sentimento avassalador outra vez trazendo aflito para os seus dias.

Ainda era um desafio se olhar no espelho, os quilinhos a mais presentes ainda a incomodavam, mas Garfield nunca reparava nisso. Sempre a olhava pelos olhos, não pelas curvas. Ele a achava linda independente do que os padrões de beleza diziam.

Temia se declarar para Garfield e não ser correspondida. Temia ser correspondida e não saber como agir, deixando seus traumas e ansiedade a impedirem de ser feliz. Sem contar que era uma aposta muito alta, um amor não correspondido ou um relacionamento mal-sucedido poderiam demolir uma amizade sólida.

— Também te amo. — Suas palavras soaram doces.

Não poderia arriscar deixar essa ternura escorrer pelas suas mãos.

Mas… ele sentia alguma coisa, não sentia? Os sinais… A forma como falava com ela…

— Gar… — chamou, sentiu a ponta de seu nariz ficar vermelha.

— Sim?

— Nós… deixa para lá.

— Ei, pode falar.

— Você vai achar que estou sendo boba.

— Nunca acharia isso de você.

— Err… Nós… Nunca iremos nos perder, né? Sabe, nos separar, virarmos desconhecidos…

— É claro que não. Ouça, somos amigos, né?

“Amiga, nunca passo disso mesmo…” junto ao pensamento, sentiu uma vontade inexplicável de chorar.

— Diria que até… — Prosseguiu ele — Irmãos…

Aquilo era demais!

— Não, irmãos não. — rebateu. — Irmãos não se olham desse jeito. — sussurrou a última parte. Nesse instante, o celular bipou. — Hora de tirar a primeira formada.

Foi para perto do fogão, Gar não a acompanhou, a encarando estático.

Não se olham desse jeito, o que ela quis dizer com isso?” Era o único questionamento que sua mente conseguia projetar. Rachel ainda conseguia ser uma caixinha de surpresa.

Por um minuto, uma leve euforia tomou conta de seu corpo. Será que ela tinha finalmente notado o que ele de fato sentia por ela? Será que ela também sentia isso?

— Tá tudo bem?

Era hora de voltar a realidade. “Haja naturalmente”.

— Sim, claro — Balançou a cabeça — Apenas fiquei distraído pensando na prova de amanhã, nada demais.

— Acho que você deveria ouvir mais seus próprios conselhos — Piscou.

— É, eu realmente devia. — Esfregou as mãos. — Enfim, temos cookies quentinhos saindo do forno!

— — —


— Garfield, anda! Já vamos sair! — Rachel gritou no andar debaixo. A avó do rapaz deixou sua bolsa preparada dentro do carro, e vendo como Rachel estava levando apenas uma maçã, montou um lanche reforçado e a entregou para levar para a prova, mesmo a garota garantindo que já estava levando comida o suficiente.

O avô de Garfield encontrava-se ajeitando o carro.

Garfield, por sua vez, ainda estava no banheiro. Iria usar o vaso sanitário uma última vez antes de ir para o local de prova. Lavou apressadamente as mãos, encarou-se no espelho para ajeitar seu topete.

— Sala C-33, lá vamos nós! — Dirigiu-se ao seu reflexo, antes de sair do banheiro, sem enxugar as mãos.

Rachel estava prestes a arrombar a porta e o puxar pelas orelhas para o carro.

— Finalmente! — exclamou o avistando.

Logan vestia uma calça jeans azul clara, camisa polo vinho e os cabelos castanhos estavam levemente bagunçados. Sem esquecer de mencionar os clássicos chinelos de borracha que calçava. Roth achou-o lindo, mas logo afastou tal pensamento.

— Richard e Kory mandaram mensagem, eles já desceram há 7 minutos. A Kory conseguiu ser mais rápida que você! — argumentou, perplexa.

— Ainda são onze e cinquenta e cinco. Relaxa, você não vai virar meme esse ano, baixinha. — Passou por ela bagunçando seus cabelos, a fazendo corar e inflar as bochechas, nervosa.

— Já disse para não me chamar de baixinha. — murmurou o seguindo.

— Boa sorte, crianças! — Desejou a avó de Garfield encostada na porta, os assistindo entrar e o marido ligar o carro.

— Pronta? — perguntou quando o carro saiu da garagem.

— Na medida do possível, sim. — disse ajeitando a blusa vermelha que vestia.

— Tá tudo aí? Lanche, máscara, álcool, canetas pretas reservas, os documentos, o lanche...

— Sim, sim. — Abraçou a bolsa roxa contra o peito.

— Ei — Tocou sua mão. — Calma, vai dar tudo certo.

Rachel apenas assentiu.

Durante o caminho, Rachel colocou os fones de ouvido, Summertime Sadness de Lana Del Rey para se acalmar, a melodia, que repercutia baixo, sempre lhe servia como calmante. Intercalava também com a música Anti-Hero de Taylor Swift, que cantava sobre suas inseguranças numa batida poética. Dividiu os fones com Garfield.

Quando chegaram de frente a faculdade, sua entrada estava lotada, estudantes apareciam de todos os lados e várias rodinhas estavam formadas. Do lado direito da entrada, havia uma barraquinha da instituição onde sorteava prêmios exclusivos com seu logo, caso participassem do seu jogo de perguntas e respostas.

Perto da barraquinha, encontraram rostos conhecidos, alguns colegas de turma, junto a professora Jasmine e outros professores que estavam lá para dar apoio. Jasmine até mesmo distribuía o “bombom da aprovação” para seus alunos. Rachel fez uma careta ao ver Tara Markov, de regata e short, bebendo água e acenando alegremente para Garfield ao perceber a presença do carro.

Despediram-se de Gerald e desceram. Demoraram para conseguir atravessar a rua, devido ao alto número de veículos que passavam pela via.

Rachel conferiu o relógio; 12h15min. Era uma boa hora de entrar e encontrar a sala, antes que mais pessoas aparecessem.

— GAR! Quanto tempo! Saudades! — Tara bradou, o abraçando com força.

— Quanto tempo — ele retribuiu.

Rachel revirou os olhos.

“Quanto grude desnecessário!”.

Demoraram um pouco até desfazerem o abraço.

— Ah, oi Rachel. — disse Markov estendendo-lhe a mão.

— Oi. — Ignorou o gesto, apenas acenando de volta.

— Faz tanto tempo que a gente não se fala. — Recuou a mão, sorrindo fraco.

— Nem faz tanto tempo assim.

Tiveram uma recepção calorosa dos professores, receberam os bombons e bateram uma foto, Rachel se incomodou com a aproximação de Tara com Garfield, que o envolveu com os braços durante a pose.

— Boa sorte, meninos! Leiam os exercícios com calma. Estou torcendo por vocês! — disse a professora Jasmine.

Após se afastarem, colocaram as máscaras. Tara beijou a bochecha de Logan, desejando boa sorte, antes de entrar no prédio.

— Pelo visto você gostou de encontrar a sua amiguinha. — Pontuou o vendo corar.

— Quem não gosta de carinho, não é. — Deu de ombros. Ela revirou os olhos.

— Homens… — Nesse momento, encontraram Richard saindo do prédio. Encaminharam-se até ele.

— Fala aí, Dick.

— E aí Gar — Apertou sua mão e deu tapinha em suas costas.

— Oi, Dick.

— Oi, Rae. — A abraçou. — Acabaram de chegar?

— Chegamos há uns 5 minutos, tiramos fotos com os professores e agora vamos entrar. — esclareceu Rachel.

— Nossa escola deve ser a única que está aqui. — comentou Gar — Que cringe! — disse zombeteiro.

— E a Kory? — Rachel perguntou. — Já entrou?

— Sim, acabei de acompanhá-la até a sala. Victor e Lucky também já entraram.

— Então, acho que agora é a nossa deixa. — Gar reconheceu. — Você poderia nos dar uma luz sobre onde ficam as salas C-32 e C-33?

— É, claro cara. É assim, vocês sobem aquela rampa…

Com a informação do Grayson, os dois conseguiram localizar suas determinadas salas.

Rachel entrou na sala e se sentou no início da segunda fileira. A cadeira fez barulho ao se sentar, encolheu-se envergonhada. A sala encontrava-se um pouco cheia, tinha sorte de ter achado um lugar bom na frente. Dispôs todos os itens necessários: documento de identificação, caneta preta, garrafa d’água, lanche, máscara extra, remédio para dor de cabeça e álcool 70% por cima da mesa. Desligou o celular e o lacrou no saco plástico que lhe fora entregue, deixando-o dentro da bolsa, debaixo da mesa.

Ansiosa, roeu as unhas enquanto o ponteiro andava no relógio. Dado 13h30min, o início da prova foi liberado, suspirou fundo e abriu a primeira página daquele encadernado grosso. Os textos eram enormes, sentiu a cabeça ameaçar doer. Foi até o tema da redação. Expectativas baixas, decepção quase nula.

“Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”.

O releu duas vezes e começou a amadurecer as ideias. A cada 7 perguntas respondidas, voltava para a folha de rascunho, para anotar os tópicos, o primeiro detalhe pensado foi a citação em sua introdução; iria dar a “Utopia”, obra do filósofo Thomas More, a oportunidade de brilhar. Para a conclusão, lembrou da tática GOMIFES — Governo, ONG´s, Mídia, Indivíduo, Família, Escola e Sociedade — que estudou, confiante nas dicas que a professora de redação Ana Luíza, a PoxaLulu, do YouTube ensinou.

No interior da sala C-33, Gar estava razoavelmente calmo encarando a folha de prova. Riscou as partes importantes dos enunciados e circulou a letra que achava mais provável. Após assinalar um quarto do exame, verificou o tema da redação. A redação estava muito longe de ser o seu forte. Passava longe de humanas em geral. Exatas e cálculos eram o seu forte.

Iria fazer seu melhor, era isso que importava.

Voltou as perguntas, quando terminou de preencher a última, ainda faltavam 3 horas de prova. Começou o rascunho, sublinhou os trechos mais importantes dos textos de apoio e raciocinou com cuidado para encontrar seus dois argumentos. Foi uma introdução simples, sem citação de mídia ou frase de algum filósofo que morreu há no mínimo 50 anos, porém ela estava redondinha, sem fugir do tema, apresentando implicitamente o rumo que iria levar.

As mãos de Rachel tremiam e apertou forte os olhos, pediu para ir ao banheiro, precisava de um tempo, 2h30 restantes. Faltava passar a conclusão para a folha de redação e 30 perguntas mescladas de humanas e linguagem. Retornou do banheiro e a última marcação foi apagada.

2 horas restantes…

Bebeu um gole d'água e comeu sua maçã enquanto relia o rascunho do último parágrafo, para ter certeza se o transcreveria daquela maneira, procurando erros ortográficos. Respirar com a máscara estava ficando complicado, trocou-a rapidamente, não surtindo muito efeito. Suas mãos estavam suadas, a caneta quase escapando de sua mão mais de uma vez. Quase borrou a folha de redação com seu suor.

Segure firme, estamos quase lá!

A conclusão foi a parte mais difícil para Garfield, não que os argumentos fossem lá muito mais fáceis, de fato. Mas encontrar uma solução para um problema que nem o próprio governo havia encontrado, era uma missão árdua. No fim, elaborou uma proposta de intervenção tendo como base o apoio do Governo Federal, que por meio da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), deveria intensificar a fiscalização nas áreas demarcadas dos povos nativos. Além de caber a mídia, em seus programas e redes sociais, reforçar a importância de valorizar e respeitar as diferentes comunidades brasileiras, pois o Brasil é um país diversificado. Só assim, poderá colher resultados.

O dia estava ensolarado, deixando a sala quente e abafada. A garganta estava seca.

Comeu seu lanche de alface e tomate, bebendo água por cima. Havia saído da sala duas vezes para ir ao banheiro, deveria evitar a terceira ida, para não perder mais preciosos minutos ao seu favor.

Preencheu o gabarito e entregou a folha para o fiscal. Uma vez fora da sala, junto com o caderno de questões, encaminhou em passos lentos até a saída do prédio, suas pernas estavam doloridas e suas costas gritavam. Desceu a rampa, vários jovens espalhados na calçada. 18h37min.

Rasgou o saquinho, com dificuldade, ligou o celular e telefonou o para o vô. Dizendo que havia acabado de sair.

— E como você está?

— Cansado.

— Imagino. Sua amiga já saiu?

— Ainda não, mas já deve estar descendo, o tempo da prova acaba às sete. Pode vir descendo se quiser.

— Tudo bem, tô indo. Sabe, o vovô tá muito orgulhoso de você, certeza que se saiu bem.

— Obrigado.

— Vou colocar uma camisa e já vou descer. Me espere na mesma entrada onde deixei vocês mais cedo.

— Pode deixar. Tchau!

Rachel apareceu quando Gerald encerrou a chamada.

— Rae! — levantou a mão, chamando-a. Ela veio ao seu encontro. Suspirou fundo ao chegar ao seu lado. — E aí? Como você tá?

— Péssima… parece que fui atropelada por um caminhão. Minhas costas estão doendo muito.

— As minhas também. Tô cansadão. — Fez menção que ela se sentasse ao seu lado. — Já liguei para o meu avô, ele está a caminho.

— Ainda bem… Você viu algum dos nossos amigos por aí?

— Apenas vi o Victor e a Lucky saindo com o carro na hora que eu saí. E não vi nenhum sinal do Dick e da Kory.

— Já devem ter ido… já, já o tempo encerra. Por pouco não fiquei entre os 3 últimos que assinam aquele papel.

Garfield concordou. Aos poucos o movimento da rua ia diminuindo. Não havia mencionado, mas viu Tara nesse meio-tempo, conversaram pouco e se abraçaram, ela teria uma longa caminhada até sua casa.

Sugeriu uma carona, mas ela negou, disse que queria dar uma caminhada mesmo, para colocar os pensamentos no lugar e elencar o que faria pelo resto do dia. E também, mesmo não mencionando, tinha consciência de que Rachel não gostava dela — mesmo não sabendo o porquê.

Garfield achava que Tara não se lembrava. A Markov nem sempre foi simpática, quando ela tinha 11 anos fazia parte do grupinho de babacas de Malchior Dane. Ela tinha atitudes pejorativas com vários alunos, inclusive Rachel.

Depois da nona série, Tara viu que aqueles não eram boa companhia e resolveu se distanciar do grupo. Ele sabia que ela havia mudado, mas Rachel parecia que nunca seria capaz de lhe dar um voto de confiança.

Estava virando a esquina com sua garrafinha d'água quando Rachel surgiu.

No silêncio, a barriga de Rachel roncou alto.

— Acho que estou com fome. — explicou envergonhada.

Garfield riu.

— Que tal pedir um lanche?

— Por mim, tudo bem. — Sorriu. — Fugir da dieta por um dia, ainda mais sendo este dia, não irá me matar.

— — —

Fevereiro de 2023

O primeiro ano após a formatura pode ser avassalador se você não estiver preparado. E essa era a questão, ninguém de fato está preparado para enfrentar as responsabilidades da vida adulta e encarar o mercado de trabalho assim que deixamos para trás a adolescência.

A vida de Garfield parecia ter sido girada de cabeça para baixo. Nunca pensou que alguma vez na vida cogitaria isso, mas… estava com saudade de ir para a escola. Sentia falta dos professores, de ter a obrigação de assistir às aulas e de ver os seus melhores amigos todos os dias. Agora todo mundo parecia distante e ocupado.

E o mercado de trabalho não parecia muito gentil aos seus olhos. O primeiro emprego era uma luta diária. Além de exigirem muitos requisitos, para pagar pouco.

Tenha experiência no mercado de trabalho. O clássico, como se alguém que acabou de sair do Ensino Médio tivesse alguma experiência numa área onde estava apenas começando? Isso sem se esquecer das vagas que procuravam alguém com conhecimento em mais de uma língua…

Ah, mas você pode fazer curso técnico e, se tiver sorte, embarcar num estágio do outro lado da cidade, obrigando-se a pegar duas linhas de ônibus para chegar em seu destino. Pois bem, seja sociável e acima de tudo tenha paciência, principalmente quando se tem um senhor ranzinza como chefe que não tem vocação para ensinar e que implicava até com seu jeito de se vestir, tudo isso para ganhar míseros 600 reais.

Bem que seus avós sempre lhe disseram que a vida nem sempre era justa.

Talvez, se começasse a fazer lives na Twitch ou gravasse dancinhas para o TikTok, se daria melhor…

A situação não estava menos complicada para Rachel. Ela havia entregado currículo para a cidade inteira, sem obter nenhum retorno. Seu irmão Darren vivia caçoando da cara dela por isso.

Naquela manhã, mal havia acabado de passar o café quando o mais velho passou por si, tomando o pão de sua mão e dizendo:

— Ih, a lá! Uma desempregada.

Grunhiu.

— Mas que coisa!

— Vai arranjar um emprego, desocupada. — debochou acompanhado de uma risada.

Rachel sentiu uma vontade imensa de pular na garganta dele. Mostrar a língua, numa atitude que julgava infantil, foi a única reação momentânea que teve.

— Já te odeio vida adulta! — resmungou massageando a têmpora.

— — —


Ele havia chegado. O tão temido dia da liberação do resultado, mas o bendito simplesmente não aparecia. O site estava travando, provavelmente congestionado por outros alunos tão apavorados quanto ela.

Adentrou o quarto de Logan de uma vez, nem um cumprimentando o mísero “oi’ antes de se jogar na cama dele, com o tablet nas mãos.

— O site não tá entrando de jeito nenhum. Você conseguiu? — perguntou focando o olhar em Garfield, que estava editando um documento no laptop.

— Bom dia pra você também, meu anjo. — falou esboçando um sorriso. — O site tá travando, mas tarde deve liberar.

— Mais tarde quando? Já é a terceira vez que você diz isso hoje. — rebateu impaciente, voltando a atualizar a página.

— Ei, calma, não precisa descontar em mim. Todos os alunos do país estão tentando entrar, é fácil congestionar.

— Eu tô uma pilha de nervos, esperar vai ser nada fácil.

— Melhor tentar de novo à noite. Deve estar mais tranquilo.

Rachel bufou, por mais que quisesse discordar, Gar estava certo.

— Tá ansioso pra ver sua nota? — perguntou, ajeitando a cabeça no travesseiro. O rapaz deu de ombros.

— Mais ou menos. Baixas expectativas, baixas decepções.

— Ei, não fala assim, você é mais inteligente do que pensa.

— Sim, eu sou inteligente, mas não para provas. Não acho justo um teste definir que você pode ou não entrar na universidade, deveria haver mais requisitos do que isso.

— Tem razão. Histórico escolar seria um ponto bom para se considerar.

— Isso. Mas infelizmente não temos muitas opções, apenas esperar…

— Pois é. — Fixou o olhar no rapaz. Parecia concentrado. — No que está trabalhando?

— Isso, não é nada. Apenas uma ideia.

— Ideia? — Levantou-se. — Posso ver?

— É apenas um poema. — disse, minimizando rápido a página. — Uma poesia boba.

— Duvido muito que seja. Me deixe ler e eu digo se é mesmo boba ou não. Sobre o que ela é?

— Rachel… — Suas bochechas coraram.

— O quê?

— Ela é sobre sentimentos, pessoais e profundos. Me sentiria invadido se você o lesse sem que ele fosse finalizado. Mas… posso te mandar mais tarde, depois que eu terminar de revisá-lo, se quiser.

— Eu quero. Certeza que tá lindo. Não precisa ter vergonha de mim — Olhou nos seus olhos. Ali, Garfield se deu conta de como seus rostos estavam próximos. — Jamais faria mal juízo de você.

— Eu sei, por isso você é a pessoa em quem eu mais confio. — Sorriu, sincero.

— Tão meloso. — Sorriu de volta. Ousada, beijou sua bochecha. Gar enrubesceu. — Vou indo. Boa sorte com o poema! — Pegou seu tablet e bateu a porta.

— Boa sorte com o resultado! — gritou ele.

No final daquele dia. Rachel teve uma média de 624, 840 apenas na redação. Enquanto Garfield 560, 695 na redação. Era aceitável, mas longe de ser excelente.

A garota deitou na cama, bufante, antes de receber uma mensagem.

Era Logan.

Por favor, não ria.

Após isso, chegou o texto.

É incomum pra mim

Em palavras, definir meus sentimentos

Mas por você, meu anjo violeta

Prometo tentar

além de sempre te cuidar,

Te abraçar,

Te amar

Sua mente é engenhosa

Seu caule é grosso, mas delicado

Sua pele é lisa, mas ouriçada

Meu coração forte palpita

Me pergunto, nós não somos muito jovens para nos sentir assim?

O esmagamento do ego

Avaliados como numa competição

Você

Minha musa, minha luz, minha paixão

Em meio a esse mar de reviravoltas

É a única coisa que ainda me traz sentido

Gar, parabéns, isso ficou incrível!

Jura?

Sim, você é muito talentoso.

Gar sorriu bobo para o celular.

— — —


Março começou chuvoso.

Assim como Rachel, que ainda estava devastada com a própria nota.

Todos os seus esforços, tardes tediosas de frente ao computador, fazendo inúmeros resumos e mapas mentais em seu caderno, não serviram de nada.

— Desse jeito, só irei entrar na faculdade de medicina como cadáver!

— Mas você não foi tão ruim assim. — Garfield tentou acalmá-la.

Era Domingo, haviam acabado de sair de uma açaiteria, Gar com uma cumbuca de açaí, cheia de creme de ninho e confete e Rachel com um copo pequeno de sorvete de ninho. Agora, aproveitavam a brisa fresca no banco da praça.

— Imagina. — Revirou os olhos.

— Olha, tá tudo bem, sempre tem o ano que vem.

— É… — Deu uma colherada no sorvete. — Viu que a Tara conseguiu passar no curso que ela queria, não está feliz por ela?

— Ela passou? Nem fiquei sabendo.

— Ela espalhou a grande notícia em todas as redes sociais possíveis, não duvido que ela suborne o dono do “The Gotham Times” para divulgar. “Loira odonto passa na primeira chamada em odontologia da universidade federal de Jump City”.

Garfield riu da imitação da garota.

— Jump City? Nossa! Ela vai se mudar para lá, não vai?

— Não faço ideia. — Deu de ombros. — Achei que você soubesse, afinal é amiguinho dela.

— Depois que a Tara começou a namorar com o Garth, a gente se afastou — explicou. — Acho que você deve ter percebido. Não era para ser, aceitamos isso. — Desviou o olhar do açaí e virou-se para a amiga que estava com os braços e pernas cruzadas.

— Mas você ainda a tem como amiga no facebook.

— A nossa amizade continuou, apesar de tudo.

— É, tem razão.

Rachel odiava se sentir insegura, mas Tara provocava essa sensação dela. Aos olhos de todos, Markov era perfeita — lê-se branca padrão — era difícil para ela competir. O fato deles terem saído no começo de 2020 também não ajudava em nada.

— Me sinto uma derrotada. Minha nota foi horrível. Mas… eu vou tentar de novo no ano que vem.

— Boa escolha. Vamos nos inscrever, não temos nada a perder.

— É, você tem um ponto.

— Além do mais, enquanto tivermos motivos para sonhar, podemos ir longe.

— Enquanto eu tiver você, eu posso ir longe. — Inclinou, selando seus lábios num beijo doce.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.