Eu sonhei com um buraco oco escondido na terra. Eu tentava sair, mas havia algo me prendendo e eu soube o que era: o ar. Meus músculos ainda estavam em movimento, como se eu tivesse corrido, mas eu não estava cansada. O buraco não era redondo, mas ainda sim eu tinha a impressão de que estava dentro de uma cápsula. Então uma luz surgiu aparentemente do nada e eu me achei em uma cápsula, se fato. Era toda de metal, havia uma cama no que poderia ser o chão e tinha uma janela, mas lá fora estava escuro. A agonia domou-me e eu me debati violentamente para tentar sair daquele lugar abafado, mas não tinha como sair. Eu era demasiado fraca. A luz também não ajudava. Só a sensação de que eu estava naquele lugar me deu vontade de morrer...

Então minha consciência voltou a funcionar de repente. A escuridão estava na minha frente, o que me assustou. Aí eu percebi que estava de olhos fechados.

Eu estava em um quarto pequeno. O teto era de madeira e as paredes de barro. Tinha uma pequena estante ao lado da cama sob a qual eu estava; nessa estante estava uma cruz escura, adornada com ondas e os resquícios do que um dia fora Jesus pregado. Eu particularmente não era religiosa, não havia tudo tempo para gastar em pensamentos sobre quem iria me salvar quando eu morresse. Por enquanto eu estava decidida a apenas sobreviver.

Minha cabeça latejava. Eu estava com dores intensas nas pernas e no meu pescoço. A visão da porta a minha frente girava em um espiral externo, dando-me a sensação de que morreria. De repente aconteceu a última coisa que eu desejava: minha audição se aguçou tanto que até os passos fora do quarto ficaram nítidos. As lembranças surgiram e os efeitos dessas dores só poderiam ter uma origem: álcool. Eu havia bebido na noite anterior e agora estava com as consequências.

O mistério da dor de cabeça havia sido resolvido; agora eu precisava saber onde estava. Aquele quarto não era familiar. Não havia visto nada igual, não que eu me lembrasse. Optei por ouvir os sons, mas minha cabeça doeu mais. Antes que eu pudesse perceber que fora uma péssima ideia usar o sentido mais aguçado que tinha naquela hora, os passos no chão ficaram mais nítidos e então uma bomba explodiu.

Ok, não foi uma bomba, mas ainda sim foi muito forte. A porta havia sido aberta em um som de madeira contra cimento e um rugido fino, tão agudo que eu quase desmaiei. Na minha frente tinha um homem. Ele não parecia ter mais que vinte anos. Seu cabelo era preto e havia sido cortado recentemente. Suas feições eram grossas e as bochechas eram magras. Sua boca parecia abrigar dentes tortos, a julgar pelo beiço inferior ser um pouco curvado para direita. Ele não tinha muitos músculos, e era magro a até certo ponto, mas ainda havia alguma coisa nele que me assustava. Talvez era sua postura ameaçadora ou a camisa de um vermelho semelhante ao sangue... Ou talvez fosse seu olhar; seus olhos...

Os olhos... os olhos eram a coisa nele que mais me deixou nervosa. Tinham um profundo tom vermelho. A parte branca parecia descansada, mas a pupila também brilhava em um carmesim semelhante ao sangue.

Ele, assim que terminou de entrar, falou em uma voz tranquila, mas não tranquilizante. Era tocante, e roca.

– Hum, olha quem finalmente acordou. Espero que esteja doendo muito, está? - pareceu notar meu sentimento de agonia - Bom saber - seus lábios curvaram-se naquilo que alguém chamaria de riso.
– Quem... é você? - foi difícil falar. Minha voz saiu brevemente roca, mas embargada e fraca.
– Você não pode saber meu nome. Não ainda. Só depois - o modo como ele me falou aquilo me arrepiou. Ele parecia estar guardando qualquer coisa que fosse pior do que alguém pudesse imaginar.
– Por que você não me matou? - dessa vez eu consegui adicionar um pouco menos de emoção em minha voz.
– Você faz parte de algo que nós não podemos interferir. Não ainda. Por enquanto você tem um destino a seguir, não tá muito longe dele, mas só podemos matar você na hora certa.

Deixei que ele percebesse o que eu estava pensando lançando-lhe um olhar.

– Você vai sair daqui só à meia-noite. Tá tendo conflito de policiais e uns traficantes e tá perigoso sair agora.
– E o que eu vou fazer por enquanto?
– Dormir. Você precisa descansar, se não sua energia vai ser insuficiente para andar daqui até sua casa.
– E onde estou?
– Isso você também não pode saber.
– Por quê?

Isso pareceu divertir ele.

– Já parou pra pensar que se eu explicasse o porquê de algumas respostas estarem sendo omitidas você teria acesso ao arquivo principal? - fiquei confusa, mas acabei por entender. - Além disso - prosseguiu ele -, seria muita burrice se eu...
– Senhor? - uma mulher apareceu detrás dele.
– Ah, olá. Tem novidade?
– Sim. Matamos o Herói que você pediu.

Os olhos do homem pareceram brilhar; ele abriu um sorriso psicopata.

– Quem matou, mais precisamente.

A mulher enrubesceu.

– Eu.
– Hum... Gostei. Vou promover você. Depois nós nos... falamos - ele piscou para ela. Ela ficou da cor de um tomate e saiu, toda sem graça. - Ele virou-se para mim. - Onde estávamos? Ah, sim. Agora, como percebestes, eu tenho que ir. Vou dar um, ou melhor, dois presentinhos para minha nova vice-líder.

E saiu.

[horas mais tarde]

Fui acordada com um balde de água. A água não estava dentro, só tinha o balde. Minha foi que o arremessador jogou-se a parte do meio, não a borda. O quarto estava escuro, mas dessa vez era uma escuridão mais profunda. A única iluminação ali vinha de uma tocha na mão do homem que me jogou o balde. Minhas costas doíam e o pescoço estalou quando eu olhei para o lado.

Não era o mesmo homem que me explicara tudo antes. Esse era diferente. Era mais alto, mas musculoso e tinha uma barba e um bigode, ambos por aparar.

Quase me desesperei, mas acabei por lembrar que estava na hora de eu ir embora. O homem forte ficou me encarando por tempo suficiente para eu perceber que ele queria que eu o seguisse. Não dirigiu uma palavra a mim, tampouco me tocou. Então eu simplesmente caminhei afrente. Quando eu ia saindo da porta ele bateu o cabo da tocha na parede, derrubando umas faíscas e me incitando a olhar para ele. Levantando a mão, ele me mostrou um saco.

[...]

Eu me encontrava mais uma vez cega pela escuridão. É claro que essa era mais fraca, pois os raios de luzes batiam na superfície do saco e isso provocava um pouco de luz ali. O saco estava com cheiro de pão francês (ou massa grossa, aff) recém assado, o que me abriu o apetite. Lembrei-me de que a última vez que eu havia comido fora na manhã anterior, um café da manhã recheado com a discussão que eu tive com minha mãe.

O que me fez ficar com remorso. Se eu não tivesse brigado com minha mãe, isso nunca teria acontecido. Eu deveria ter sido mais paciente, compreender que ela só estava preocupada comigo. A consequência dessa briga com a tentativa do meu corpo em conseguir relaxar... E isso eu consegui por alguns minutos. Se eu não tivesse relaxado tanto, teria dado ouvidos ao aviso de Maria, evitando que eu "morresse".

Mas afinal, eu estivera realmente morta? Uma vez eu aprendi na escola que se alguém morresse, não voltaria a respirar, nem falar, nem se mexer e nem pensar; e eu fizera tudo isso - menos falar - quando acordei no caixão. Eu pensei sim, e pensei muito mesmo. Havia alguma coisa errada nisso, principalmente porque eu sobrevivi tanto tempo debaixo da terra.

Meus pés moviam-se, passo após passo. Eu não sabia quais saliências apareceriam, eu só continuava andando, mesmo com medo de tropeçar. E eu ouvia sons! Não eram sons comuns, de pessoas falando - esse eu estava escutando desde que saíra do quarto -, mas sim sons de máquinas trabalhando. Engrenagens girando, ferro rugindo contra ferro e até mesmo solda. Tudo isso ecoando dentro do meu saco e batendo-me nos tímpanos.

Quanto mais eu andava, mais os sons ficavam fortes, até que em certo ponto eu ouvi algo como um vulto. Talvez alguma coisa havia passado na minha frente com uma velocidade sobre-humana, mas eu não tive muito tempo para pensar nisso, pois uma bufada de vento - de origem desconhecida - chocou-se contra o meu pescoço e o ar foi redirecionado para cima, e o saco voou.

Quando pisquei os olhos vi o rápido flash de uma estrutura faraônica. As cores amarelo, azul, roxo e púrpura dançavam em holofotes que se estendiam por todo o salão. E ainda tive tempo de olhar uma porta enorme...

Antes de levar uma coronhada na cabeça.

[...]

Meus sonhos foram distorcidos e pareciam tão distantes... Eu estava em casa, brincando com uma boneca pequena de plástico. Dessa vez eu estava sozinha, pois Fernanda havia saído para o hospital por conta de um surto de diarreia... Todos a tinham repreendido por ela ter comido muito brigadeiro na festa, mas de qualquer jeito eu estava sozinha. Eu aparentemente sorria de alguma piada que eu havia feito, o que me fez concluir que estava feliz. Eu não me lembrava daquilo durante a minha infância, mas isso não fez o sonho parar. Minha mãe apareceu na sala. Ela estava com um semblante de raiva, queimando meu bem estar e me deixando assustada. Ela olhou para mim, mas seus olhos eram vermelhos, profundamente vermelhos.

– Mãe? - chamei. Minha voz saiu assustadoramente entrecortada.
– Marcela - sua face começou a derreter, o sangue escorrendo-lhe pelos seios e chegando à barriga. Meu semblante transformou-se na pura demonstração de pavor, terror. Por baixo outra face apareceu, como se a primeira fosse plástico, e ela era igual à face do homem que me acordara na cabana. - Você não devia ter visto isso...

Ela ergueu as mãos para mim e meu corpo começou a queimar por dentro. Eu sentia o fogo consumir cada órgão interno. Então ele pareceu fazer mais força, mas o fogo não queimou mais, pelo contrário, parecia parar. Então surgiu uma onda detrás de mim e quando eu virei os olhos, mamãe começou a se afogar e eu respirava a água. Gritei, mas a voz não saiu.

Acordei com um suor que molhava meus seios. O que vi na minha frente me assustou: um banco de avião. Minhas mãos estavam amarradas nos braços de outro banco e as pernas presas a alguma coisa. Meu pescoço doía e eu percebi que estivera dormindo de mal jeito. Ao meu lado esquerdo havia uma janela oval, o vidro não muito grosso, mas o suficiente para parar uma bala. E no lado direito havia mais dois bancos e duas pessoas, também dormindo. Estava de noite lá fora, com algumas nuvens brancas e outras levemente transparentes... Mas havia alguma coisa de errado. As nuvens estavam tão perto de mim que se eu pusesse a mão para fora podia tocá-las.

Então eu soube onde estava e me desesperei. Me debati violentamente no banco, tentei rasgar as cordas usando minha força, mas logo me cansei. O esforço só me fez ficar com os braços cansados, as pernas exaustas e notar que havia uma fita cobrindo minha boca.

Ao meu lado uma das pessoas que estavam dormindo resolveu acordar e, quando olhou para uma mulher tentando escapar rasgando as cordas com os braços, arregalou os olhos. Eu pensei que ele fosse me ajudar, mas ao invés disso correu. Olhei para os lados, desesperada, em busca de algo que me ajudasse a escapar... E então o quê? Para onde iria? Estava em um avião, a quilômetros do chão e não sabia voar, por que escaparia?

Ouvi sussurros, então passos e aquele cara apareceu de novo.

– Olá, Marcela! Parece que você quis escapar, né?
– Onde eu estou? Por que você mentiu?!
– Ora, se eu falasse ia ser muito fácil!
– O que você quer?!
– Relaxa! Esse sentimento de revolta vai passar rápido.
– Qual é o seu nome?! Qual seu problema!! - agora eu gritei. Estava com raiva e assustada e deixando o desespero extravasar.
– Meu nome? Por que quer saber?

Fiquei em silêncio.

– Onde eu estou...? - falei, por fim, sem forças.
– Você está num avião, Marcela! Pronta para partir.
– Por que fez isso comigo...?
– Porque você é a pessoa que vai acabar com a própria raça. Não podemos deixar você viver, pelo bem dos mutantes!
– Mas... Você disse que...
– O futuro mudou quando você viu o que não era para ver. Agora, já é tarde.
– Pra onde eu tô indo?
– Você está indo para Capitol City.
– E onde isso fica?

Ele hesitou, antes de falar uma palavra que não sairia da minha mente por alguns meses:

– Na Ásia.