Heróis de Boreatia: a Perfídia de Macker

Capítulo IV: A comitiva de Kal Sul - Parte I


Capítulo IV

“A comitiva de Kal Sul”

A estrada para Feritia, apesar de ter retomado certo tráfego de viajantes, encontrava-se mais vazia do que o normal. Talvez fosse uma característica comum àqueles caminhos após o Crepúsculo dos Deuses; os relatos sobre criaturas, humanóides ou não, à espreita dos desatentos para atacá-los – e Beli Eddas sabia bem que tais histórias possuíam sólido fundamento – afastavam a maior parte das pessoas comuns das vias do continente. O aspirante a mago, no entanto, via tal risco mais como oportunidade do que como perigo. Enfrentar um goblinóide ou orc seria um ótimo desafio para testar seus conhecimentos arcanos em combate, apesar de ainda serem limitados e de sua vitalidade física não lhe garantir a capacidade de sustentar muitos ferimentos. Por isso mesmo a misteriosa herança de Palas Eddas, o tio que jamais imaginara possuir, fosse-lhe talvez bem-vinda. E se o parente houvesse sido, em vida, um conjurador poderoso dotado de vasto acervo mágico? O destino parecia favorecê-lo, após tanta penúria já vivida...

Com os pés calçados de sandálias pisando determinados o pavimento da estrada, cabeça oculta pelo capuz do manto que, apesar de um tanto sofrível em temperaturas mais altas, preservava-lhe a identidade, Beli Eddas dirigia-se já há alguns dias na direção de Feritia. Desde o encontro com o mensageiro nas terras ao norte da capital, procurava percorrer o máximo de léguas possível enquanto o sol mantinha-se no céu, parando para repousar durante a noite somente o mínimo necessário: oito horas, tempo suficiente para que seu corpo recuperasse as energias e sua mente pudesse, quando acordado, concentrar-se para lidar com as artes arcanas. Além disso, toda manhã, logo após despertar e antes do café – quando o tinha – o jovem gastava aproximadamente uma hora preparando os truques que usaria durante o dia, lendo as improvisadas folhas de pergaminho que lhe serviam de grimório.

Era fato que os magos sempre tinham de preparar com antecedência as magias que utilizavam. Muitos viam esse característica como fraqueza, porém Beli enxergava-a mais como o preço de se poder aprender praticamente um estoque ilimitado de conjurações, apenas o modo de usá-las sendo mais restrito. Outros praticantes de magia, como os feiticeiros, não precisavam preparar seus truques previamente, conseguindo decorá-los e assim realizá-los quando quisessem e mais vezes por dia, no entanto a capacidade que possuíam de aprender novas conjurações, por guardá-las apenas na memória, era bem mais baixa e limitada. Beli achava isso no mínimo patético. Ter um grimório e nele poder registrar qualquer magia que aprendesse, o número máximo delas sendo ilimitado, era algo prático e motivo de orgulho. Magos eram os supremos mestres arcanos. Mais do que utilizar as artes mágicas, eles as estudavam e as compreendiam com amor e dedicação. O rapaz almejava se tornar, com o tempo, um grande praticante de magia. E esperava, dentro em breve, abandonar aquelas surradas folhas de pergaminho e obter um grimório de verdade – primeiro passo rumo à excelência.

Ao menos a falta de um volume adequado para o registro de magias era compensada pela vasta variedade de componentes materiais que trazia consigo. Guardados numa bolsa de couro que trazia a tiracolo embaixo do manto – mantida assim afastada de olhares curiosos – tais artefatos constituiriam, a uma pessoa comum, um monte de quinquilharias inúteis e até bizarras. A um mago, porém, tais objetos eram vitais para a conjuração de inúmeras magias, apesar de raramente obterem efeito sozinhos.

Existiam três tipos de componentes mágicos – combustíveis para as conjurações que, utilizados pelo mago, geravam o resultado desejado quando aliados à devida dose de concentração. Quanto mais poderoso ou duradouro o efeito da magia, mais concentração era requerida – e os componentes, por conseqüência, eram quase sempre mais dispendiosos. Os verbais constituíam encantamentos falados. Palavras ou frases mágicas que tomavam parte no processo de conjuração de uma magia – mas não todas. O que deveria ser dito, para cada truque, era estipulado pelo próprio conjurador. Não existia padrão. Desse modo o mago era capaz de realizar os mesmos encantamentos que os outros, mas de maneira distinta – protegendo seus métodos e inclusive podendo assim pegar seus oponentes de surpresa. A língua a ser utilizada não importava, apesar de os conjuradores mais tradicionais freqüentemente optarem pelo idioma arcano e suas variações. A origem desse dialeto era bem misteriosa e nem os maiores estudiosos conseguiam determinar quando surgira, apesar de ser senso comum dizer-se que era oriunda dos primeiros tempos após a criação do mundo...

O segundo tipo de componente era o gestual. Movimentos sutis e precisos com as mãos e dedos, coreografias inteiras traçadas pelos magos no ar, mais complexas quanto mais poderosa a magia. Por esse motivo conjuradores arcanos raramente trajavam armaduras: o peso das vestimentas prejudicava e muito a mobilidade de seus braços, quase sempre botando os encantamentos a perder. Valia a pena abrir mão de uma proteção corpórea mais alta para se conseguir defender-se por intermédio das artes mágicas, mais seguras e eficientes do que qualquer armadura mortal jamais poderia ser.

O terceiro tipo de componente constituía o material. Dividia-se então em dois sub-tipos: consumíveis e não-consumíveis. Os consumíveis desapareciam logo que a magia fosse invocada, como se ocorresse uma troca. A magia “metamorfose”, por exemplo, capaz de converter uma criatura em outra, requeria como componente material um casulo animal vazio, que era desintegrado assim que a conjuração se completasse. O ataque “bola de fogo”, por sua vez, necessitava em sua preparação de uma pequena esfera de guano e enxofre, igualmente dissipada durante o processo. Já os não-consumíveis eram objetos que, quando devidamente focados pelo conjurador, cediam energia à magia sem desaparecerem. Quase sempre constituíam itens como amuletos ou símbolos sagrados – no caso de magia divina.

Tais componentes dificilmente funcionavam sozinhos, sendo preciso uni-los na conjuração, dependendo da magia. Enquanto uma requeria componentes verbais e gestuais – fala e movimentos – outra poderia precisar somente de verbais e materiais, enquanto uma terceira necessitaria de todos. Existiam, também, conjuradores que, tendo treinado com extrema dedicação, conseguiam ignorar algum tipo de componente para usar suas magias, senão todos. Um mago que aprendera a conjurar sem precisar falar poderia utilizar encantamentos mesmo se estivesse amordaçado, assim como um que conseguisse ignorar gestos poderia se valer de mágica quando amarrado, ou outro que acabasse perdendo seus pertences fosse capaz de conjurar mesmo sem componentes materiais. Essas técnicas, todavia, eram difíceis de dominar e necessitavam de muito tempo de aprendizado – pré-requisitos que Beli Eddas acreditava poder dispor.

Sorrindo, o mago avistou, não muito longe, os muros de Feritia despontando no horizonte, acima da pequena extensão de floresta que se aproximava da estrada. Essa visão vinha unida aos primeiros ares da brisa marinha e o grasnar das gaivotas que habitavam o litoral. Atingiria o portão no princípio da tarde, podendo visitar o Armazém Público ainda aquele dia. Logo teria as respostas que queria. Estava intrigado a respeito do que o incógnito Palas Eddas poderia lhe oferecer...

Ansioso, Kal Sul há algum tempo mantinha-se atento de pé junto à proa do navio – provavelmente desde que terra fora avistada por Reurx, um dos mais valorosos membros da tripulação, horas antes. Com o coração aos pulos, observava a imensidão do oceano se reduzir, os contornos do continente tornando-se cada vez mais definidos. Aos poucos o borrão cinza no horizonte transformou-se no traçado nítido das construções da cidade litorânea, e as antes indistintas ondulações esverdeadas tornaram-se colinas cobertas de grama e pequenos focos florestais junto ao solo. Mas, apesar de compor bela paisagem a ser admirada, não era isso que o embaixador de Glacis ansiava ver. Ouvira falar do tal monumento apenas em conversas de taverna, entre um gole e outro de cerveja – quando até os próprios anões começavam a sentir seus efeitos. Por conta disso suspeitava que vários dos relatos que escutara a respeito deviam ser por demais fantasiosos, e devido a isso desejava agora comprovar com os próprios olhos como era tal maravilha...

- O que está fazendo aí, Kal Sul, parado feito uma estátua? – perguntou, curioso, o imediato Kraivin, aproximando-se do amigo e capitão.

- O farol – ele respondeu sem tirar os olhos da costa. – Eu quero ver o farol!

Foi quando, como se materializada pelas palavras do anão, a dita estrutura pôde ser observada junto à cidade, mais precisamente ao norte do porto e, como o barco vinha pelo oeste, à esquerda da visão dos navegadores. Em seus imponentes trinta metros de altura, formato ligeiramente cônico e paredes erguidas na mais sólida pedra – as quais, inclusive, vinham durando milênios, pois haviam sido erguidas durante a Pax Borea e lograram resistir até ao Crepúsculo dos Deuses – o farol de Feritia vinha dar boas-vindas aos estrangeiros. E estes esperavam que aquela fosse somente a primeira dádiva das muitas daquela terra que muitos deles, incluindo Kal Sul e Kraivin, desconheciam.

Era hora do almoço quando a imponente nau anã Barestia inseriu-se no píer do porto de Feritia, mergulhando sua âncora. O cais reunia, àquele dia, poucas embarcações de vulto, com exceção de dois aparelhados navios da Marinha de Behatar que ali sempre se mantinham como parte da defesa costeira do continente, o emblema do pinheiro sob uma espada tremulando em suas velas. Pelo tablado caminhavam, atarefados, diversos indivíduos de variada procedência – humanos, halflings, gnomos – que dia e noite não permitiam que a atividade naquele importante entreposto comercial cessasse. A maioria dos funcionários encontrava-se ocupada carregando e descarregando o interior dos barcos, que traziam sacas e caixas contendo os mais diversos produtos. O trajeto dos empenhados nessa função partia das docas e rumava até o Armazém Público, um vasto galpão adjacente erguido em madeira e pedra, possuindo grande portão e cuja estrutura, em tamanho, assemelhava-se até a uma pequena fortaleza, dominando toda a porção sul do porto e situando-se junto a uma dobra do tablado contínuo do ancoradouro. Quando depositavam as mercadorias no interior da construção, os carregadores então retornavam pelo mesmo caminho às naus, preparando as mãos calejadas para mais peso... Uma rotina árdua, porém há muito estavam a ela acostumados. Era a vida no porto. E o porto jamais podia parar.

Feritia constituía urbe bastante antiga. Desenvolvera-se a partir da vila de Feritus, nome que, na velha língua boreal, significava “aquela voltada ao mar” – antigo lar de pescadores e porto comercial anterior ao próprio Império Boreal. Quando este foi instituído, o local conheceu grande prosperidade, expandindo seu tamanho e sua importância, além de ter ganhado na mesma época o farol tão conhecido, erguido sob os auspícios pessoais do próprio imperador Borto I em honra a Serinius, deus dos mares. Também servira de vital porto militar à Liga do Norte em suas conquistas, dele partindo os navios de guerra que, pela segunda vez, conseguiram subjugar o mundo para os boreais... antes da implacável fúria divina. Quase totalmente recuperada do Crepúsculo dos Deuses, quando foi seriamente alagada, a cidade voltava a alcançar o esplendor de outrora, tornando-se um dos melhores lugares para se viver numa Behatar cujo interior ainda era assolado por salteadores e criaturas malignas. Abrigando então cerca de dois mil habitantes, Feritia, cercada por muros e torres de guarda, possuía traçado quase retangular, com exceção de uma reentrância da costa na parte sul do porto, junto ao Armazém Público. A porção oeste da urbe terminava no cais, enquanto a leste ostentava o portão principal, no qual terminava a estrada que vinha de Tyrnan e, mais longe, da capital Borenar. Existia um portão secundário na seção noroeste da muralha, levando ao pequeno pátio situado fora dos muros que abrangia um pequeno altar a Serinius e o milenar farol de pedra. Depois dele, tinha início uma outra estrada levando a Krisman e demais terras ao norte do reino. Tanto ao norte quanto ao sul, pequenas áreas florestais forneciam lenha e outros recursos à população.

No interior da muralha, a vida em Feritia era agitada como costuma ser a de qualquer cidade litorânea. Já dizia Kirnit sabiamente em sua “Arte da Política” que cidades costeiras, por receberem navios e tripulações estrangeiras, estão sujeitas todo tempo à influência externa e à novidade de pensamento – podendo ser isso benéfico ou não ao território do qual fazem parte. No caso de Behatar, que tentava se reerguer da devastação ocasionada pelo Crepúsculo com o auxílio das demais raças e nações, tal característica podia ser vista como benéfica. A população local era dominada por humanos, halflings e gnomos em proporção quase idêntica. Existiam também alguns elfos, mas em número bem menor. Os quarteirões junto ao porto possuíam as casas dos funcionários e administradores vinculados às atividades do Armazém Público, situado próximo. Logo depois, mais a leste, encontrava-se um templo a Northar tão antigo quanto o farol – seus pilares riquíssimos em esculturas –, casas mais ricas e um pequeno jardim de frente para o portão secundário. Continuando a leste, entre casas e algumas lojas funcionando em sobrados – os donos vivendo acima dos estabelecimentos – encontrava-se a taverna Eterna Bruma, que costumava reunir mais marinheiros de fora do que os próprios moradores da cidade. Já a sudeste, junto aos muros, havia mais um pequeno jardim, além da conhecida hospedaria Manhã Amarela e o quartel da guarda, estrategicamente erguido perto do portão principal. Singela, acolhedora, Feritia era um dos mais agradáveis portais de entrada ao Reino Boreal.

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Logo que o Barestia aportou devidamente, a tripulação anã desceu ansiosa no ancoradouro. Não via terra firme há dois meses, e para o povo de Glacis, tão vinculado às montanhas e sua solidez, passar tanto tempo no oceano não era para os fracos! Conforme caminhavam pelo tablado, observando tudo com curiosidade e trocando entre si falas e risadas alegres e aliviadas, os recém-chegados eram observados com relativa estranheza pelos locais. Mesmo Feritia sendo um porto movimentado, ver anões ali era verdadeira raridade. Alguns halflings, um tanto assustados por encararem tais figuras pela primeira vez em suas vidas, afastaram-se receosos, por pouco não derrubando as pesadas sacas que seus corpos reduzidos já com dificuldade tentavam carregar. Perguntavam-se se aqueles seriam os temidos trolls dos quais tanto se falava...

Kal Sul também deixou o navio, acompanhado de Kraivin. Sorridente, fitava tudo com uma enorme ânsia pelo novo. Como sua missão prometia frutos, tanto para si quanto para seu amado reino! Depois de passar por alguns funcionários humanos do porto e ao lado de um pequeno barco em cujo convés um capitão da mesma raça aplicava intensa bronca num imediato halfling, o embaixador aproximou-se de um grupo anão que agregava parte de sua tripulação e indagou:

- Há algo que queiram requisitar agora que aportamos, meus caros?

- Hidromel! – todos replicaram em coro, sem nem precisarem pensar na resposta.

O diplomata riu de leve. Aquilo já era de se prever... Apenas para confirmar, respondeu calmamente:

- É isso mesmo que desejam? Não preferem antes visitar o armazém e comprar víveres para sua viagem de volta, já que quase não possuímos mais suprimentos?

- Hidromel é nossa prioridade! – respondeu um marinheiro cuja barba caía até os joelhos, destacando-se dentre os companheiros. – Nosso estoque terminou há três dias. Consegue imaginar o que é isso, capitão? Três dias! Eu sei que sabe... Precisamos beber, ainda mais agora. Nossa chegada em terra firme deve ser comemorada, em gratidão ao grande Bragondir!

- É melhor dar a eles o que querem, Kal Sul... – Kraivin recomendou em tom brincalhão. – Não queremos um motim justo agora!

- Está bem, está bem! – assentiu o capitão. – O resto do dia de hoje será de folga. Amanhã, porém, logo que o sol raiar, vocês deverão comprar tudo que precisam no armazém. Eu permanecerei neste continente como embaixador, mas vocês e Kraivin devem retornar sob ordens reais!

- Nós sabemos... – murmurou um outro anão, o mais jovem do grupo, de modo entediado. – Só temos então de descobrir onde há uma taverna decente por aqui...

- Pode fazer isso por nós, capitão? – pediu o mesmo marinheiro de barba comprida.

- É verdade! – concordou um outro. – O nobre Kal Sul é um diplomata, e deve obter informações sobre esta terra para nosso reino. Um bom primeiro passo seria mapear todas as tavernas, hehe!

- Sim, Kal Sul! – mais um aprovava a idéia. – Faça reconhecimento desta terra desconhecida para nós!

- Certo... – o embaixador aceitou de início de forma um tanto contrariada, mas aceitou. – Eu vou procurar uma taverna e retorno assim que encontrar, para avisar vocês. Então todos poderemos beber para comemorar.

- Ótimo! – os olhos dos anões brilhavam de entusiasmo. – Viva Kal Sul!

Rindo, o diplomata afastou-se dos compatriotas e percorreu o píer rumo às ruas da cidade. O calçamento de pedra ocupou o lugar da madeira, e as faces cansadas dos funcionários do porto deram lugar aos rostos pacatos dos habitantes que se ocupavam em outras atividades, mas que também se tornavam surpresos e intrigados diante do incomum vislumbre de um anão. Numa certa via, o embaixador percebeu-se observado com atenção por uma criança humana, que parecia achá-lo engraçado ou no mínimo interessante... Mas quando se adiantou para brincar com ela, sua mãe, de cara fechada, apressou-se e puxou-a para dentro de casa.

Pois é... Kal Sul teria de trabalhar, e muito, para melhorar a visão que se tinha de seu povo naquelas terras...

Uma hora da tarde. Há pouco o almoço fora servido na hospedaria Manhã Amarela aos que, junto com o valor de seus quartos, haviam pagado por ele. Como era hábito, Fëanor ajudara os demais funcionários a prepararem a mesa e trazerem os pratos. Agora que os hóspedes se alimentavam, o garoto também almoçava numa sala separada, junto à cozinha, onde costumava comer todos os dias. Enquanto mordiscava uma coxa de frango, viu de relance alguém surgir à entrada do modesto cômodo, erguendo os olhos... Era Tucker, a face possuindo o tom preocupado que Fëanor já testemunhara algumas vezes e o espesso bigode preto deixando mais do que nunca os primeiros fios grisalhos à mostra. Algo parecia incomodar – e muito – o dono do estabelecimento.

- Aconteceu alguma coisa? – o rapaz perguntou sem pestanejar, soltando o pedaço de carne e esfregando as mãos engorduradas na roupa.

- Não, nada, eu só gostaria que você fizesse um favor para mim, se não for incômodo... – o homem falou sem muito ânimo.

- Hoje?

A ênfase que o faxineiro deu à presente data possuía relevante motivo: era seu aniversário de dezoito anos. Não necessariamente o dia em que nascera, mas sim a ocasião em que fora deixado naquela hospedaria, e que desde então era todo ano celebrada como sua natividade. E, como fora instituído desde cedo, em seu aniversário Fëanor tinha sua carga de tarefas bastante reduzida, os períodos da tarde e da noite ficando-lhe completamente livres para aproveitá-los da maneira que desejasse – e, perto da hora de dormir, era freqüente que Tucker e demais amigos o aguardassem com um bolo, torta ou outro tipo de presente para celebrar a data.

Ou seja, requisitar a ajuda de Fëanor para uma tarefa depois do almoço, em seu aniversário, era um natural contra-senso.

- Não é nada demais... – tentou justificar o dono da hospedaria. – Só quero que entregue esta carta.

Dizendo isso, estendeu ao garoto um envelope branco fechado com um selo vermelho. Este possuía algum tipo de símbolo, em alto relevo, que o jovem não conseguiu determinar. Apanhou-o e, guardando-o num dos bolsos, esperou que Tucker lhe explicasse a quem deveria ser entregue. Algumas vezes o faxineiro costumava prestar serviços de caráter diverso para o pai adotivo, como lhe servir de mensageiro, então sabia que a encomenda tinha um destinatário. Só restava saber qual.

- O velho Rabesdin está aguardando para receber isso.

- Ah não, Rabesdin? – Fëanor repetiu o nome em descrença. – O ermitão?

Tucker só podia estar brincando! Não existia uma história normal sequer a respeito da figura do louco que vivia isolado na floresta ao sul de Feritia, a poucas horas de caminhada. Todos os garotos da cidade contavam casos estranhos a respeito dele. Alguns diziam ser um bruxo recluso que transformava em patos todos que ousassem chegar perto de sua acabada propriedade. Outros, que ele era um caçador de recompensas senil que pensava enxergar goblins em qualquer um que se aproximasse, atacando. Não importava qual fosse a versão correta: era certo que o velho Rabesdin não estava em seu perfeito juízo e odiava visitas. Afinal de contas, quem lhe endereçaria uma carta? Ainda mais por intermédio de Tucker?

- Ai, eu não sei... – hesitou Fëanor, receoso só de pensar na possibilidade de ser transformado em pato no dia de seu aniversário.

- Ora, não acredite em tudo que os outros dizem... Rabesdin é só um senhor cansado e um tanto melancólico. E acredito que, indo rápido, você poderá voltar ainda algum tempo antes do entardecer. Desculpe-me pedir-lhe este favor justo hoje, mas... Ao menos o recompensarei depois com moedas.

- Não é preciso me dar nada, não se preocupe... – suspirou o rapaz que, apesar de ter seu descanso frustrado, não conseguia deixar as pessoas na mão.

- Bem, muito obrigado...

Terminando de comer, Fëanor levantou-se da mesa para calçar suas botas e partir até a casa do ermitão. Esperava mesmo que as histórias que corriam pelas ruas fossem apenas lorota, ou então sua vida encontraria um fim estranho e definitivo justo quando atingira a maturidade e poderia então adquirir sua tão almejada independência. Corria em sua mente a idéia de tratar disso com Tucker desde o início daquele dia, mas a tarefa a ser cumprida atrasava seus planos. Seria uma estratégia do dono da hospedaria para que o garoto não conseguisse tocar no assunto? Não... Fëanor já estava pensando demais!

Apanhando também seu surrado casaco, o jovem deixou o cômodo enquanto observava o pai adotivo desaparecer atrás da porta de sua sala de trabalho... tremendo. Será que vira direito? Ou seria apenas uma impressão errônea de sua mente por ter lançado os olhos naquela direção muito rápido? Chegou a cogitar ir atrás de Tucker e indagar o que se passava, porém logo depois achou que seria besteira. Apressando-se até a entrada do estabelecimento, Fëanor estava decidido a partir o quanto antes até a floresta e retornar dentro de poucas horas, conseguindo ainda aproveitar parte de seu período de folga. Talvez se embrenhar na mata fosse até divertido, e conseguisse pensar no trabalho como um passeio... Isso se o doido Rabesdin não encerrasse cedo demais sua alegria!

As ruas de Feritia encontravam-se calmas no período da tarde, com um trânsito de pessoas relativamente reduzido e o cantar dos pássaros nas árvores conseguindo se sobrepor às vozes junto às casas. Beli Eddas caminhava tranqüilo na direção que lhe fora há pouco indicada por um guarda para se chegar ao Armazém Público. Trajando suas vestes negras, o rapaz era facilmente confundido com um mendigo ou um andarilho. Não apreciava tais denominações, mas por certo seria melhor do que evidenciar a todos ser um praticante de magia arcana.

Distraído com seus próprios pensamentos, praticamente ignorando tudo e todos ao seu redor, o forasteiro logo viu algo – ou melhor, alguém – que lhe chamou atenção: vindo na direção contrária pela rua em que andava, um anão, de fartas barba e cabeleira, corpo revestido por ornamentada armadura e três machados presos a ela, andava despreocupado rumo a um destino desconhecido, parecendo ignorar os olhares curiosos e até hostis que a população local lançava sobre sua atarracada figura. Era raro ver representantes do povo de Glacis em Behatar – e Beli já viajara o suficiente por aquelas terras para poder fazer essa afirmação com total certeza. Olhando de soslaio para o estrangeiro, acreditou que não teria qualquer relevância para seus assuntos e simplesmente continuou avançando até seu objetivo.

Pouco depois chegou ao galpão, parando por um momento diante do amplo portão de metal, aberto, contendo diversas inscrições e esculturas em louvor a Tradir. Carregadores entravam e saíam do local a todo instante, tanto se dirigindo às docas como às vias da urbe. O excesso de movimentação incomodava um pouco o rapaz, acostumado a condições menos agitadas em que poderia com facilidade concentrar-se para conjurar, mas procurou continuar ignorando os fatores externos e entrar. O interior do armazém era ainda mais extenso que o lado de fora, compondo enorme ambiente que, apesar de devidamente preenchido, ainda parecia ter espaço para muito mais coisas. Junto às paredes disputavam em altura várias pilhas de caixotes e sacas, os produtos que continham informados através de plaquetas escritas a mão perto de cada uma. Alguns desses montes de mercadorias atingiam até o teto, cerca de dez ou doze metros acima, e ainda assim pareciam querer perfurá-lo e estender-se infinitamente até os céus. Aqui e ali se via também pequenas barracas e tendas improvisadas para a troca, compra e venda de produtos, alguns ganhando novos donos logo que deixavam os porões dos navios. Além de depósito, aquele lugar também servia de mercado. Bastante versátil.

Um pouco perdido devido à profusão de pessoas e objetos ao redor de si, o recém-chegado pôs-se a procurar alguém que pudesse lhe informar onde deveria requisitar sua herança. Já estava com a carta que recebera do mensageiro dias antes em mãos, como prova de ser a pessoa correta. Aproximando-se de um carregador halfling envergado sob um saco de feijão, na falta de alguém melhor, Beli inquiriu-lhe:

- Por favor, sabe onde posso receber uma herança que me foi legada?

- Fale com o gnomo Trinx, administrador daqui! – o ser diminuto esclareceu com sua voz aguda. – É ele quem cuida dessas coisas!

E, arfando, voltou a trabalhar. Trinx... Era o nome registrado no comunicado, como o rapaz logo conferiu. Bufando, pôs-se, em seguida, a procurar pelo baixinho. Não seria tão fácil encontrá-lo em meio a tanta gente, mas, sendo ele o administrador, deveria haver algo em sua aparência que o tornasse distinto dos demais. Passou alguns minutos olhando por entre os amontoados de recipientes, examinando qualquer criatura de menor estatura que se encontrasse nas proximidades... Até avistar um gnomo quase careca, dotado de pouca quantidade de cabelo dourado junto às orelhas, uma verruga no nariz e corpo realmente em miniatura. Usava um pequeno colete vermelho de botões aberto, camisa amarela, uma gravata roxa cujo nó demonstrava esmero, calças beges justas e um par de sapatos novos bem lustrados. As chances de o tal Trinx corresponder àquela alinhada e ao mesmo tempo cômica figura eram bem grandes.

Beli Eddas chegou mais perto, sem que o gnomo o percebesse. Distribuía ordens exasperado a seus subordinados e parecia à beira de um ataque de nervos. Pelo que o jovem conseguira depreender de suas falas, havia um carregamento para Etressia atrasado e o administrador fazia agora o que estava ao seu alcance para compensar o lapso. Foi sem receio, apesar da tensa situação, que o humano abordou-o:

- Olá.

A criaturinha voltou nervosa a cabeça para o visitante e, arregalando os olhos, perguntou com sua vozinha estridente:

- O que quer? Não vê que estou ocupado?

- Perdoe-me, mas recebi isto de um mensageiro deste armazém dias atrás, presumivelmente enviado por você – explicou Beli, estendendo a carta a Trinx. – Ao que parece, preciso reivindicar a herança de meu tio Palas Eddas, correto?

- Palas Eddas, Palas Eddas, Palas Eddas... – o administrador murmurou consigo mesmo, um dos punhos junto à boca, tentando se lembrar. – Ah, sim! O mago! Sei do que se trata!

“O mago”. Então era mesmo como Beli suspeitara. A magia era viva em sua família, ou ao menos suposta família. Afinal de contas o falecido, ou suposto falecido, poderia muito bem apenas estar se passando por seu tio. Era característico do jovem desconfiar de tudo e todos antes de ter evidências suficientes do contrário. E, naquele caso, tais evidências ainda eram bem escassas. Procurava analisar aquela situação com extremo tato, sem tirar conclusões muito precipitadas. Bem, ao menos agora sabia que Palas Eddas era um praticante de magia. Então seria de se supor que seu legado tivesse algo a ver com tais artes.

- Posso então receber o que me é de direito? – insistiu o rapaz.

- Oh sim! – exclamou o gnomo como se houvesse retornado de um transe. – Venha comigo, por favor.

O aspirante a mago acompanhou Trinx até uma seção mais isolada do armazém, atrás de uma alta pilha de caixas, onde o gnomo mantinha uma espécie de escritório, com seus papéis e tabelas devidamente dispostos sobre pequenos caixotes que lhe serviam de mesa. Apressado, o administrador afastou alguns recipientes de perto de uma parede, apanhou uma diminuta chave de um dos bolsos de seu colete e, de dentro de uma das estruturas de madeira, retirando-lhe a tampa, pegou um pequeno baú de ferro, adornado com alguns ligeiros detalhes em ouro e prata. Diante de Beli, colocou a arca sobre um dos caixotes e, inserindo a chave na fechadura, abriu-a sem qualquer dificuldade.

- Aí está! – falou ele apontando para o interior agora revelado do artefato.

O jovem aproximou-se e olhou, erguendo a tampa. Dentro do baú havia somente um livro de capa remendada, a mesma sendo feita da pele de algum animal que Beli não conseguiu identificar. Intrigado, tomou o volume em suas mãos e folheou-o rapidamente, podendo discernir inscrições a mão na milenar linguagem arcana. Encantamentos. O rapaz abriu um sorriso satisfeito, principalmente após encontrar o nome Palas Eddas, seguido de um ode a Mager, registrado numa das últimas folhas. O grimório de seu tio. O parente desconhecido lhe deixara de herança justamente o instrumento pelo qual há tanto tempo vinha ansiando.

Havia algo estranho, no entanto. A quantidade de magias naquele volume era incrivelmente pequena. Não parecia se tratar do grimório de um mago experiente. Folheando-o mais uma vez, agora com maior atenção, Beli encontrou somente algumas conjurações de nível básico, mais conhecidas como “truques”, e escassos encantamentos de primeiro círculo. Alguns deles ele até já sabia fazer desde algum tempo, apesar de os componentes verbais e gestuais ali descritos serem diferentes. Será que o tio lhe deixara um número pequeno de magias de propósito, sabendo que era um iniciante? Ou algum tipo de magia protegia o próprio livro, impedindo o sobrinho de ter contato com conjurações mais poderosas enquanto não praticasse? Muito intrigado, procurou esclarecer tais dúvidas com o gnomo:

- Exceto isto, meu tio não me deixou mais nada? Nem uma carta, ou bilhete?

- Oh, como pude me esquecer! – Trinx deu um leve tapinha na testa. – Ele deixou uma nota sim, mas a mantive comigo por segurança... Aguarde um momento.

Guardando a chave do baú novamente no bolso, o administrador do galpão usou uma mão para retirar um pequeno papel dobrado de sua calça e a outra para apanhar um diminuto par de óculos redondos, sem aro, que trazia pendurado embaixo da camisa. Desdobrou o bilhete diante de si, segurando-o com a mesma mão que o pegara, enquanto com a outra, um pouco desajeitado, mantinha as lentes erguidas diante dos olhos. E foi assim que leu a nota, em tom pausado, dando ênfase a cada palavra e perceptivelmente tendo certa dificuldade em identificar algumas delas:

- Grimório deixado para sobrinho Beli Eddas. A fim de obter mais informações sobre a família e magia, verificar gaveta com meu nome no Arquivo Público da capital Borenar, no subsolo da Biblioteca Real. Registro de número oito mil novecentos e trinta e dois. Assinado: Palas Eddas.

Certo. Seu suposto tio lhe dera apenas uma pista do que ainda viria a descobrir. Um aperitivo. Por que não deixara tudo ali de uma vez? Não teria sido mais fácil? Sim, por certo, mas talvez houvesse mais pessoas atrás de tais informações. Pessoas perigosas. Era incrível como o rapaz, perseguindo a verdade sobre seu passado, parecia só se envolver mais e mais na espessa névoa do mistério. Então Palas Eddas vinha protegendo a verdade sobre sua família e agora, tendo morrido, desejara revelar tudo ao sobrinho que nem sequer suspeitava de sua existência. Era justo... Ávido por respostas, o jovem indagou ao gnomo, apesar de acreditar que da parte dele não obteria mais nenhuma:

- Esse Palas Eddas vivia aqui em Feritia? Sabe algo sobre ele?

- Ih, nadinha! – riu Trinx um tanto impaciente. – Ele não morava aqui na cidade, tampouco ouvi falar dele antes disto. Alguns já comentavam a respeito de ele ser um mago, mas apenas rumores. Esse grimório foi entregue a este armazém por um remetente anônimo, contendo apenas essa nota assinada por Palas e instruções para que o material fosse entregue ao sobrinho deste, Beli Eddas, assim como um saco de moedas pagando pelo serviço. Como trabalhamos com inventários, e a quantia de peças de ouro mostrou-se bastante generosa, concordei em realizar a entrega. Pode ser até que você esteja sendo enganado por alguém, filho, mas enfim... está feito!

O administrador a seguir entregou a nota ao humano, guardou o baú vazio e, despedindo-se, voltou para seus afazeres. Beli Eddas agradeceu e, munido agora do grimório e do bilhete contendo a localização de mais informações na capital, convenceu-se de que seus assuntos naquela cidade estavam encerrados. Tinha agora de partir rumo a Borenar – próxima peça daquele quebra-cabeças – porém faria isso somente na manhã seguinte. Antes daria mais uma volta pelas ruas, refletindo acerca dos acontecimentos e tentando obter mais alguma informação a respeito do recém-descoberto tio...

A taverna seria, talvez, o lugar ideal para isso.

Kal Sul estava satisfeito. Alcançara a meta almejada em sua jornada, e levara pouco tempo nela para isso. Numa esquina, depois de dois ou três quarteirões, encontrou uma simpática taverna instalada num sobrado, e uma rápida olhadela para seu interior, com seu ambiente limpo, mesas abundantes e fregueses alegres, fez com que se convencesse de que seria o local perfeito para o descanso – e boemia – de seus comandados. O estabelecimento se chamava “Eterna Bruma”, o letreiro ostentando o nome grafado em azul tendo como fundo um contorno esbranquiçado lembrando uma nuvem. No mínimo acolhedor.

Sorrindo, o anão deu meia-volta e iniciou o regresso até a tripulação no cais, para informar-lhes a boa nova. Perguntou-se se no caminho voltaria a ver, além dos habitantes da cidade surpresos com sua presença, o misterioso sujeito de manto e capuz negros que há pouco se dirigia no sentido oeste. Não devia passar de um mero andarilho, mas algo que o diplomata não conseguia explicar lhe chamara atenção nele. Achou que seria inútil continuar pensando a respeito e, animado, apenas seguiu pelas ruas até o porto. Se demorasse mais, não seria de se espantar Feritia acabar sendo sitiada por um bando de anões enlouquecidos sem hidromel!

A floresta fora dos muros, ocupando boa parte da porção exterior sul da cidade, parecia àquela tarde bastante agradável e convidativa a Fëanor. Trajando uma reles camisa de chita na cor bege com botões, surradas calças marrons e as já desgastadas botas de couro, o rapaz se embrenhava pela infinidade de trilhas que a área possuía, deixando claro que os moradores de Feritia freqüentemente visitavam aquelas paragens com os mais diversos fins. Enquanto a maioria ali colhia frutas para alimentação e folhas utilizadas em poções e chás, casais de jovens namorados costumavam se amar às escondidas em meio àquelas moitas e em algumas ocasiões até gatunos e contrabandistas as utilizavam como recurso de ocultação de suas atividades ilícitas. O rapaz já ouvira diversas histórias divertidas e até trágicas relativas ao lugar, o que acabava apenas aumentando seu encanto. Para quem, em tenra idade, até então vivera apenas numa hospedaria como faxineiro ouvindo relatos de locais longínquos e fantásticos, sonhando em conhecê-los, até uma paisagem simples e entediante a olhos mais experientes, como aquela, a ele se mostrava muito fascinante.

Entretido com o passeio, nem se preocupava mais em relação ao velho Rabesdin. Qualquer coisa que lhe acontecesse visitando o idoso seria no mínimo curiosa, senão engraçada. Sabia de antemão o caminho para a casa deste, já que viera àquelas redondezas com os amigos algumas vezes no passado e eles lhe mostraram, ao zombarem do ermitão, qual trilha levava até a morada. Haviam até desafiado uns aos outros para ver quem tinha coragem de ir importunar a figura, porém toda a preparação mostrava-se sempre infrutífera, pois voltavam acovardados para a cidade temendo que as histórias contadas fossem verdadeiras. Era irônico pensar a partir dessa visão, já que boa parte de tais relatos eram criados pelos próprios “aventureiros” que temiam ir ter com o velho em sua residência. Coisa de moleques... E Fëanor, devido a conseguir analisar a situação com tal viés, orgulhava-se por julgar realmente estar amadurecendo...

Dezoito anos. Esperava que aquela jornada fosse apenas a primeira de muitas... E que as outras fossem maiores e mais importantes!

Pisando algumas folhas secas pelo solo, resquício do outono e do inverno, o jovem avançava pelo caminho na ânsia de avistar a casa do destinatário do envelope a qualquer momento. Ainda se perguntava a respeito do que poderia tratar a correspondência, e por que raios Tucker tremera devido a isso. Procurou então se distrair com o cantar dos passarinhos e o farfalhar da vegetação que entrava em contato com seu corpo, sons que o relaxavam. Curiosidade em demasia era sempre prejudicial. Melhor seria somente fazer sua parte entregando a carta e esquecer tais indagações.

E foi então que viu... Movendo alguns arbustos espinhudos, tomando cuidado para não espetar as mãos, Fëanor retirou os obstáculos que tampavam sua visão e pôde observar com clareza o que havia diante de si, poucos metros adiante. A floresta se abria numa clareira de consideráveis dimensões, o chão coberto por um tapete de grama que chegava perto dos joelhos do rapaz. No centro existia uma casa, pequena e exageradamente humilde. As paredes de tijolos caíam aos pedaços, com diversos blocos faltando e o revestimento de tinta alva já bastante descascado. As telhas sobre ela padeciam de igual miséria, acumulando sujeira, folhas e sustentando até um ninho de pardais. Dessa cobertura erguia-se uma chaminé quase desmoronando que, através de sua boca desgastada, cuspia errantes golfadas de fumaça como alguém engasgando à beira da morte. As janelas fechadas possuíam estrutura de ferro enferrujado e madeira apodrecida, a porta de entrada não chegando nem perto de melhores condições. Ao lado da morada, junto a uma das paredes, existia improvisado cercado feito claramente de galhos de árvores trançados com cordas que abrigava modesto galinheiro, as aves nele tão magras que pareciam não ter forças sequer para cacarejar. Atrás da residência, por sua vez, via-se uma série de sulcos em meio à grama aparentando compor uma horta, a qual, apesar do aspecto malcuidado, apresentava-se rica em hortaliças e até algumas frutas. Ou o jardineiro dela cuidando era muito habilidoso, ou os deuses realmente compensavam a precariedade daquele lar concedendo ao seu morador a dádiva de comer bem.

O recém-chegado aproximou-se lentamente, deixando o abrigo que a mata lhe fornecia. Pé ante pé, cauteloso, olhando agitado em volta, Fëanor temia cair em alguma armadilha física ou mágica preparada astutamente por Rabesdin para deter pessoas intrometidas. Mas conseguiu chegar perto o suficiente da casa – a ponto de apoiar-se na parede da porta – sem sofrer qualquer tipo de dano ou encantamento. Já estava feliz por não ter virado um pato!

Recobrando o fôlego, sua próxima ação foi erguer um dos punhos... e batê-lo relutantemente contra a madeira da entrada. A primeira tentativa foi tão fraca, devido ao temor, que mal causou barulho. Assim o jovem, coração aos pulos, teve de somar coragem e repetir o movimento, agora com mais intensidade. Surtiu efeito, pois um rouco “Já vai!” vindo do lado de dentro, acompanhado de uma longa e sofrida tossida, revelou que o provável Rabesdin ouvira o chamado do visitante.

Seguiram-se passos quase arrastados no interior da casa, acompanhados pelo praticamente imediato destrancar da fechadura. E, rangendo, a porta da residência foi aberta...

O rapaz viu-se de frente para um homem idoso de semblante firme, cabelos grisalhos e um conjunto de bigode e cavanhaque na mesma tonalidade. Os olhos, coloridos num azul desbotado, remetiam a alguém que já vivera o bastante para presenciar muita penúria. O corpo ainda mantinha certa musculatura avantajada, metido embaixo de uma manta suja e rasgada, pés calçando sandálias. A aparência do velho ermitão não era tão mirabolante como se costumava espalhar. Mas o que realmente assustou Fëanor foi o fato do habitante da casa, logo que o fitou, ter arregalado os olhos e estremecido de tal forma como se estivesse diante de um fantasma, claramente faltando-lhe ar e o vigor abandonando temporariamente sua tez enrugada, empalidecendo-a.

- E-eu... – balbuciou o garoto, temendo ter de alguma forma matado o ancião de susto. – Eu só vim...

- É incrível o passar dos anos neste mundo, e o que ele faz com uma face antes só vista nos primeiros dias de sua vida! – exclamou o idoso num tom forte, como se de repente conseguisse recuperar boa parte de sua energia.

O quê? O que ele estaria querendo dizer? Primeiros dias? Poderia aquele ermitão de alguma forma ter conhecido Fëanor no passado? Ou estava simplesmente caducando, confundindo o emissário com outro indivíduo ou até com alguém que jamais existira fora de sua imaginação?

- Eu vim trazer-lhe esta carta! – o rapaz, trêmulo, proferiu tudo de uma vez e de forma bem rápida, estendendo o envelope na direção do morador.

- Ah, sim... – ele replicou com interesse, apanhando a carta e a abrindo ao mesmo tempo em que se virava de costas para o recém-chegado e andava rumo ao interior da casa, sem qualquer tipo de cerimônia. – Por favor, entre.

O jovem obedeceu, temendo que a transformação em pato viesse tardiamente. A parte de dentro da casa fazia jus total ao exterior: paredes descascadas, teto em colapso com diversas brechas que permitiam visualizar o céu azul, assoalho podre... Inexistia qualquer divisão em cômodos, todo o espaço de vivência compondo apenas uma sala única e limitada. Não muito longe da entrada, folhas secas e lenha mal-cortada queimavam numa maltratada lareira. A mobília se restringia a uma mesa de pernas bambas no centro, cercada por duas cadeiras a ponto de desmontarem, e uma cama igualmente precária num canto. Sobre o primeiro dos móveis observava-se um prato sujo com restos de comida – levando a crer que o velho há pouco almoçara – e livros grossos de aparência bem antiga. Existia somente um objeto na morada que contrastava, de forma radical, com tudo que o cercava: um baú de tamanho médio, quase das dimensões de uma cômoda, esculpido em metal impecável e com diversos contornos dourados. Tal lampejo de riqueza era difícil de ser associado a um lar tão paupérrimo – a não ser que seu proprietário realmente não passasse de um tremendo sovina. De qualquer modo, o destinatário apoiou a carta e as mãos sobre a mesa para ler o que lhe fora escrito e, estando de costas para o inseguro Fëanor, este não pôde visualizar a expressão em seu rosto conforme o fazia. Ao término da leitura, que não se estendeu muito, o suposto Rabesdin dobrou novamente o papel, tossiu, inseriu-o num bolso do manto, olhou para o visitante de forma bastante série e falou, sua voz com a entonação de um verdadeiro arauto:

- Pois bem.

Sentou-se a seguir numa das cadeiras, o rapaz apenas observando se as pernas desta agüentariam ou não o peso do idoso... mas resistiram bravamente. Alojando-se da forma mais confortável possível, o velho tornou a erguer a cabeça e afirmou, sem nem sequer piscar:

- Como completa hoje dezoito anos de idade, conforme informa esta carta, então chegou a hora de você saber a verdade. Certas coisas no mundo e em nossas vidas estão envoltas por véus que nem sequer sabemos existirem, meu caro Fëanor. E sua trajetória desde o nascimento, acredite, ainda se encontra mais coberta do que toda uma infinidade de tendas.

- O quer dizer? – questionou o garoto erguendo uma das sobrancelhas.

- Tudo que Tucker lhe disse sobre seu passado antes de ir morar naquela hospedaria é uma mentira. Mas não o culpe: eu mesmo o instruí a agir assim.

O mensageiro parecia estar diante de uma clara prova de que o tal Rabesdin perdera a razão já há um tempo indefinido. Do que demônios ele estava falando? O passado de Fëanor ser uma mentira? E em que circunstâncias aquele velho conhecia Tucker? Devia existir sim uma relação entre os dois, o que explicaria a entrega da carta, mas o resto não fazia sentido algum! Fëanor já se sentia ofendido o bastante para rumar até a porta e nunca mais voltar, porém algo em seu mais remoto íntimo o impelia a ouvir mais – talvez a busca por aventura que tanto o marcava. O que o ermitão pronunciasse em seguida poderia não passar, e era provável que não passasse, de uma série de absurdos, mas decidiu ao menos tentar escutar.

Mas quando o ancião tornou a abrir a boca para falar, foi acometido de verdadeiro acesso de tosse. Levando um dos punhos à altura do queixo, tentava se conter enquanto seu tronco se curvava para frente e o sintoma de doença só crescia em intensidade; Fëanor, afastando-se em receio, achou que o velho cuspiria a própria garganta para fora. E a suspeita que nutria se tornou certeza quando um ruído líquido encerrou a seqüência, o idoso tentando esconder uma das mãos que mantivera até então diante dos lábios, manchada de vermelho... Ele era claramente tuberculoso, e o rapaz em sua companhia, ao ver que a ação seguinte do anfitrião foi esfregar os dedos sujos sobre a manta, perguntou-se se já não teria sido contaminado pela moléstia, levando em conta o deplorável gesto de limpeza do doente. Seria um belo presente de aniversário...

- Desculpe, a idade me afeta... – justificou-se o interlocutor, relaxando o peito depois de pigarrear por um momento. – Deixe-me continuar.

Fez então nova pausa, agora tranqüila e saudável, antes de prosseguir, como se desejasse que as palavras a partir daquele ponto atingissem os ouvidos do garoto com o máximo de ênfase, para logo depois dizer, finalmente:

- Não sei o que Tucker lhe contou ao longo de todos esses anos, mas eu, agora, revelarei a verdade... Você, Fëanor Bladinor, é fruto de uma paixão proibida entre Göther Bladinor, valoroso Cavaleiro da Luz, e Lívia Eshner, sacerdotisa de Northar.

Aquilo soou ao jovem como idioma kartan, do qual, ainda que desnecessário salientar, ele não conhecia palavra alguma. “Bladinor”? Que raios de sobrenome era aquele? Filho de um Cavaleiro da Luz, ainda por cima com uma clériga do deus Northar? A história era no mínimo mirabolante, para não chamá-la de insana! Até os mitos que ouvira e lera até então pareciam a Fëanor, naquele instante, mais convincentes. Acreditaria mais num minotauro aparecendo de súbito diante de seus olhos pouco vividos do que na falácia daquele velho. Começava a perder a paciência...

- Olhe, eu só vim entregar a carta, então acho que já posso ir embora... – resmungou o rapaz, fazendo menção de retornar até a porta.

- Pare e olhe para si mesmo, Fëanor! – o ermitão explodiu de repente, levantando o tom de voz e o corpo da cadeira. – Seus cabelos são brancos como a neve do mais frio inverno! Nunca se perguntou sobre a origem deles? Acha que são naturais?

O idoso tocara num ponto delicado, fazendo com que o jovem, de costas, acabasse se detendo. Sim, por certo ele já se questionara, e muito, a respeito daquele seu aspecto tão pitoresco. Não era mesmo algo natural, tampouco que possuísse uma explicação ordinária. E, levando em conta que até então o suposto Rabesdin não lhe dissera nada que pudesse ser considerado ordinário... Por associação, quem sabe ele não estaria mesmo tentando contar ao garoto a verdade?

Virando-se, Fëanor viu-se disposto a ouvi-lo, mais uma vez. Aproximou-se novamente a passos curtos e perguntando:

- O que afinal você sabe sobre mim?

- Eu é quem agora lhe farei algumas indagações, meu rapaz... – sorriu o velho, astuto, após breve tossida. – Você sabe quem foram os Cavaleiros da Luz?

Claro que ele sabia. Já escutara inúmeras histórias tratando deles, e era fascinado por todas. A Ordem dos Cavaleiros da Luz compunha o antigo braço armado da Ordem de Gartur, sociedade milenar responsável pela preservação da Religião Comum e suas práticas em Boreatia. Surgira num momento de crise: a expansão da Liga do Norte e a conseqüente imposição em todos os continentes do culto a Swordanimus como único deus. Opondo-se a seus inimigos mortais, os hereges Cavaleiros da Espada Longa, os bravos paladinos iluminados lutaram por séculos com o objetivo de impedir que a degenerada adoração ao deus da guerra se consolidasse por todo o mundo, causando a ira divina. Sua luta, entretanto, não alcançou esse sagrado objetivo: os Cavaleiros da Luz foram batidos e gradualmente exterminados pelas tropas da Liga do Norte. Assim como os sacerdotes de Gartur e qualquer outro mortal que recusasse a se converter, acabaram dilacerados nas masmorras e queimados nas fogueiras da guerra religiosa. O ápice da tragédia foi o sangrento cerco à até então imaculada Ilha de Rentis, dez anos antes do Crepúsculo dos Deuses – o qual, de uma maneira incrivelmente destrutiva, acabou encerrando a ousadia dos boreais pelas mãos em fúria dos próprios deuses. Enquanto alguns falavam que pouquíssimos Cavaleiros da Luz teriam sobrevivido a essas últimas desgraças, a maioria acreditava que a Ordem fora extinta para sempre... Porém aquele velho parecia apresentar indícios contrários a tal idéia. Levando em conta a idade de Fëanor, ele nascera depois do Crepúsculo dos Deuses, mais precisamente quatro anos após o cataclisma. E se ele fosse mesmo filho de um Cavaleiro da Luz, então só podia ser de um dos sobreviventes!

- Eu e seu pai éramos apenas iniciados na Ordem na época imediatamente anterior ao Crepúsculo... – explicou o idoso, como que lendo os pensamentos do rapaz. – Fugimos de Rentis num bote junto com alguns sobreviventes, enquanto o santuário ardia... O cheiro do sangue vertido dos cadáveres de meus irmãos na fé nunca mais abandonou minhas narinas... Aqueles malditos Cavaleiros de Swordanimus!

- Além de você e meu pai, mais cavaleiros saíram vivos do massacre?

- Um número muito pequeno, assim como raros clérigos de Gartur. Só conseguimos mais pessoas para nossos grupos depois do Crepúsculo, através de sigiloso recrutamento. Como somos criteriosos nos procedimentos para as novas admissões, estamos voltando a nos expandir muito lentamente. Hoje somamos vinte e cinco ou trinta Cavaleiros da Luz, apenas, no mundo todo. Claro, sem me contar. Este velho saco de ossos chamado Rabesdin mal consegue mais empunhar uma espada...

- Fale-me mais sobre meu pai! – pediu Fëanor, agitado. – Pelo visto vocês eram bem próximos, certo?

- Ora, para quem estava tão descrente em minhas palavras, você mudou rápido de opinião... Mas sim, Göther Bladinor sempre foi um grande amigo, um irmão. Conhecemo-nos quando da nossa iniciação na Ordem. Após a fuga de Rentis, passamos algum tempo exilados em Etressia, onde presenciamos os horrores da ira dos deuses. Assim que os céus se abriram, tomamos parte numa das expedições rumo a Behatar com o intuito de auxiliar na reconstrução do continente. Seu pai era um grande paladino. Suas palavras, repletas de empatia e lealdade a Northar, acalentavam os corações daqueles que tentavam reerguer suas vidas, e a lâmina de seu sabre subjugava qualquer um que tentasse se aproveitar da situação predominante para praticar atos vis. Vagamos por estas terras durante muitos meses trazendo a boa nova à população, além de protegê-la, até que Göther conheceu sua mãe num santuário dedicado ao Senhor dos Deuses... Eles cuidaram juntos de doentes, combateram lado a lado grupos de bandidos, e acabaram se apaixonando. Um amor condenado desde o início. É sumamente proibido, tanto a um Cavaleiro da Luz quanto a qualquer clériga, manter relações carnais com outra pessoa. Eu fui um dos poucos que tomaram conhecimento desse romance, velando dia e noite para que fosse mantido em segredo, ou seus pais cairiam em desgraça. Até que sua mãe engravidou. E esse foi apenas o início de nossos problemas...

- Como assim? – fascinado, os olhos do garoto até brilhavam.

- Seu pai possuía um escudeiro, recrutado logo que chegamos a Behatar. Rapaz de berço humilde, perdido sempre em sonhos de cavalaria... O nome dele era Macker. Ainda que fiel e puro no começo, em algum ponto esse verme foi consumido por sentimentos que remetem apenas ao Panteão Maligno. Invejando Göther por jamais ter conseguido se tornar um Cavaleiro da Luz, pois falhara nos testes, Macker cedeu à torpeza que sempre o tentou e mergulhou nas trevas. Ele traiu e matou, de forma traiçoeira, seu pai e sua mãe, pouco depois de você nascer.

Rabesdin fez uma pausa para tossir – tornando a cuspir sangue – e Fëanor começou a suar. Era muita coisa de uma só vez. Além de descobrir ser filho de um paladino, agora soubera que o mesmo, junto com sua mãe, fora assassinado pelo próprio escudeiro! Seria sua linhagem sempre marcada assim pela tragédia? Em que tipo de mundo, antes completamente desconhecido, ele estava mergulhando?

- A perfídia de Macker não se restringiu somente a Göther e Lívia. Ele também quis eliminar o fruto do amor dos dois: você, Fëanor. Sorrateiro e maligno, dominado por uma energia negativa que só poderia ter sido invocada por um monstro como ele, adiantou-se rumo ao local onde você, ainda bebê, dormia... e conseguiu tocar seus cabelos. O mero contato dos dedos demoníacos daquele maldito algoz fez com que os primeiros fios que despontavam em sua cabeça de recém-nascido se tornassem alvos, marcados para sempre com uma nefasta ausência de tonalidade. Antes que ele pudesse lhe causar mais mal, consegui repeli-lo, tomei você em meus braços e fugi, procurando afastá-lo para sempre da perversidade do assassino!

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Fëanor, num gesto quase involuntário, passou uma das mãos pela cabeleira branca. Então aquela era a explicação... Sentia-se um tanto abalado por aquilo ter sido causado por um indivíduo maligno, ainda mais através do aparente uso de magia, porém um simultâneo alívio também se estabelecia em seu ser. Como a verdade era reconfortante, ainda que fosse uma verdade repleta de sangue e lágrimas! Calado, o jovem continuou ouvindo o ancião:

- Eu tinha de proteger você de Macker e seus aliados, era um dever para com meu falecido irmão de fé. Por isso o escondi, trazendo-o até a insuspeita Feritia e deixando-o com o dono da hospedaria Manhã Amarela, Tucker, e sua esposa. Expliquei a eles toda a situação, frisando que, para que você mesmo se mantivesse seguro, não deveria saber nada sobre seu verdadeiro passado antes que chegasse a hora certa. O dono do lugar aceitou acolhê-lo como a um filho, contanto que você o auxiliasse nas tarefas conforme crescesse. Quanto a mim, instalei-me nesta floresta fora dos muros da cidade, assistindo a você crescer e sempre zelando por seu bem-estar. Afinal, Macker poderia aparecer a qualquer momento para terminar o que começara. Fui consumido pela velhice, mas, como agora vejo, Tucker cumpriu com sua palavra: o combinado foi que, quando você completasse dezoito anos de vida, ele o enviaria até mim com uma carta confirmando que seu período de estadia na pousada terminara e que agora seria entregue aos meus cuidados. Se estava curioso quanto ao que havia naquele envelope...

Era no mínimo curioso: Fëanor fora incumbido de entregar a correspondência que decidia seu próprio destino. E ele chegara até a pensar que Tucker jamais permitiria que deixasse a Manhã Amarela... Sorrindo, o rapaz se deu conta de que, com a maioridade, sua vida realmente ganhava uma nova direção. Consciente de seu passado, ele agora poderia traçar seus próprios caminhos rumo ao futuro, livre para se aventurar, livre para vencer... Mas, com certo incômodo, refletiu mais uma vez a respeito da tragédia envolvendo seus pais. Será que não haveria nada que pudesse fazer para compensar tanta dor? Um modo de reverter tudo?

- Você deu a entender que esse Macker ainda está vivo... – murmurou o garoto, um sinistro lampejo em seus olhos. – Tenho de fazer algo! Meus pais não podem permanecer injustiçados! Esse criminoso tem de ser caçado e morto!

Franzindo as sobrancelhas e torcendo os lábios enrugados, Rabesdin aproximou-se rápido e desferiu incrível tabefe contra a nuca do jovem, o choque emitindo alto estalo. Gemendo, Fëanor passou a massagear a área atingida enquanto ouvia severa reprimenda:

- Você nunca deve dar ouvidos à vingança, meu rapaz! Nunca, está me entendendo bem? Sede de sangue e retaliação são sentimentos e ações que apenas farão você chegar mais perto das divindades malignas! Devitar gargalha nos infernos sempre que ouve um mancebo como você falando tais despautérios, ainda mais alguém prestes a ser treinado como Cavaleiro da Luz!

- Como é? – replicou Fëanor, estremecendo.

Rabesdin tossiu de novo, respirou fundo e explicou:

- Como filho de Göther, o sangue de um grande paladino defensor do bem corre em suas veias. Ainda que tenha sido fruto de uma relação proibida, sua ascendência leva-o a ter nobre compromisso com Northar e os demais deuses. Como atingiu idade suficiente, você será treinado pela Ordem e se tornará um Cavaleiro da Luz. Sua presença em nossas linhas se mostrará vital neste momento de reestruturação e, se seguir ao menos metade dos passos de seu pai, já será um dos maiores benfeitores que este mundo já viu!

- Mas quem me treinará? Você, Rabesdin?

- Não, não... Eu já estou muito velho e cansado. Agora que o tornei consciente de sua importância, resta-me apenas continuar vivendo minha pacata e débil existência neste casebre, aguardando o iminente fim de meus dias. Não encontrará treinamento por aqui, Fëanor, ao menos não comigo. Deve ao invés disso se dirigir até a capital Borenar. Dentro de uma semana, Jetro I será coroado governante do Reino Boreal, o primeiro após o nefasto período da Liga do Norte. Todos os Cavaleiros da Luz neste continente já se encontram a caminho da cidade para participar da cerimônia e reafirmar sua total lealdade a um monarca temente aos deuses. Entre esses paladinos está o admirável Kyrin, atual grão-mestre da Ordem e herói da Batalha de Rentis. Ele será a pessoa perfeita para introduzi-lo aos caminhos de Northar e sua glória. Deve procurar por ele e pedir-lhe orientação.

- É com certeza algo perto do que sempre sonhei, mas... – oscilou o rapaz, hesitante. – As estradas de Behatar andam repletas de bandidos e monstros! Na hospedaria já me cansei de ouvir relatos sobre emboscadas e até inúmeras mortes. Eu ainda não sei usar arma alguma, nem sequer possuo algo que possa ser considerado uma arma... Como poderia viajar até a capital, sendo que são no mínimo quatro dias de viagem?

- Existe dúvida demais em seu coração, meu rapaz! Dúvida e temor! E esses não são valores dignos de um Cavaleiro da Luz. Aprenda a não dar ouvidos a eles, e confiar em Northar sempre e plenamente! Ele lhe dará tudo de que precisa!

Dizendo isso, Rabesdin, entre tossidas, caminhou até um dos cantos da miserável casa... Mais precisamente o canto em que estava situado o baú que em nada combinava com ela. Sereno e calmo, o velho cavaleiro abaixou-se na frente da arca, retirou uma pequenina chave prateada de seu manto – a qual Fëanor achou ter o formato de uma adaga, pelo brevíssimo período em que pôde fitá-la – e usou-a para abri-la. A tampa foi a seguir erguida pelas calejadas mãos do guerreiro, revelando o interior do recipiente que há anos não conhecia luz: uma espécie de capa marrom ocultando algo embaixo de si. O idoso puxou o tecido... e Fëanor, aproximando-se, conseguiu finalmente observar o que era...

Tratava-se de dois artefatos, ambos maravilhosos aos olhos do garoto que sempre se imaginara combatendo vilões e salvando donzelas pelos quatro cantos de Boreatia. O primeiro, disposto dentro do baú em cima do segundo, era uma espada. Media mais de um metro de comprimento e seu acabamento era dos mais lindos que Fëanor já vira. O cabo metálico possuía detalhes em ouro e prata, desde linhas de contorno, arcos em relevo, até um pinheiro – símbolo de Northar – talhado numa esmeralda e devidamente incrustado no centro do suporte. Já a lâmina, afiada e brilhante, ostentava em sua admirável consistência muitas vitórias do passado e a promessa de incontáveis triunfos por vir. Foi quando o rapaz notou importante detalhe: a lâmina era dupla, incrivelmente cortante de ambos os lados. Uma arma de difícil manuseio, requerendo ambas as mãos. Mas, ao mesmo tempo, um dos objetos mais fantásticos que o jovem jamais imaginara ver.

Estendendo os braços, tomou o cabo do sabre em seus dedos. Surpreendeu-se com seu peso; era bem maior do que o das réplicas em madeira com que costumava brincar quando mais novo. Confiante, apertou então o suporte e tentou cortar o ar com a lâmina, num pretensioso e desastrado movimento que acabou por fazer a espada escapar de suas mãos e cair desajeitada sobre o assoalho... fincando-se, na diagonal, no vão entre duas tábuas, quase aos pés de Rabesdin. Este ergueu a cabeça, coçou o cavanhaque e afirmou:

- Kyrin o ensinará a brandi-la.

- Eu espero que sim... – disse Fëanor, envergonhado.

Enquanto o ancião retirava a arma do chão, colocando-a com cuidado sobre a mesa, a atenção do filho de Göther se voltou para o outro artefato no interior da arca. Uma armadura, tão bela e bem-trabalhada quanto a espada. Já vira trajes similares àquele algumas vezes, usados por combatentes que se hospedavam na Manhã Amarela: era uma loriga segmentada, que devia seu nome ao arranjo de placas metálicas enfileiradas que a compunham. Antigo uniforme militar das legiões do distante Império Boreal, constituía uma veste eficiente que conseguia conter diversos tipos de ataques – é claro, se seu dono também se mostrasse ágil fisicamente no campo de batalha. A peça possuía, na região do peito, um pequeno emblema gravado em ouro, representando uma espada com a lâmina voltada para cima: eterno símbolo dos Cavaleiros da Luz e sua causa.

- Esse equipamento é seu, Rabesdin? – inquiriu Fëanor.

- Não, tanto a espada quanto a armadura pertenceram a seu pai – revelou o velho depois de mais um instante de tosse. – Elas tombaram junto com o corpo dele quando Macker o assassinou, porém consegui reavê-las anos mais tarde de um contrabandista em Serinia, empregando todas as minhas economias. Isso para que você, agora, possa usá-las. Essa era a vontade de Göther, e eu persisti para que fosse cumprida!

- E-eu... não sei se posso...

- Pode sim, meu rapaz! – sorriu o paladino, colocando suas mãos, num gesto terno, sobre os ombros do inseguro Fëanor. – Siga para a capital o quanto antes, abrace seu destino. Busque Kyrin e os demais Cavaleiros, eles lhe ensinarão tudo que precisa saber. Coloque-se a serviço do novo rei. E lembre-se: o sagrado sabre de seu pai não deve ser usado para fazer vingança! Como agora sua existência será revelada, é possível que Macker ressurja em seu encalço, porém você não deve eliminá-lo por revanchismo! Rogue a Northar para que, no caminho da luz, encontre paz para todos os seus anseios.

- Eu rogarei... – suspirou o garoto, colocando-se de joelhos.

- Pois bem, meu caro Fëanor... Um grande mal está prestes a se abater novamente sobre Boreatia. Minhas preces apontam para tempos de penúria, amigos prevêem grandes catástrofes... E esse vento de destruição tem de ser detido pelos guerreiros da fé. A sua jornada começa agora.

(Continua na Parte II)