Heróis de Boreatia: a Perfídia de Macker

Capítulo III: Um navio de histórias


Capítulo III

“Um navio de histórias”

A Briss era uma nau fina e longa, poderia dizer-se até esguia. O conjunto da estrutura de convés estreito com o comprido e afiado esporão à proa se assemelhava a um sabre, como a maioria das embarcações élficas. Nomeado em homenagem à donzela da lendária narrativa “Nemitus”, uma história de paixão e guerra, o navio possuía aquele formato para trespassar o vento, vencendo correntes e lufadas desfavoráveis. Surtia efeito. Não era à toa que os barcos de Astar eram considerados há muitos séculos os melhores do mundo.

Realizava uma viagem entre a terra dos elfos e a renascente Behatar. Partira durante o inverno, efetuando uma rota que contornava Etressia e Equitis. Um caminho mais longo, por certo, porém mais seguro. Viajar por muito tempo em alto-mar àquela época poderia levar a uma alarmante situação unindo-se a carestia de suprimentos às baixas temperaturas. E, apesar de muito habituado à natureza e aos aspectos naturais, o organismo dos elfos era, em sua constituição física, mais fraco. Chegavam a idades avançadíssimas e eram catalisadores quase inatos de magia, porém sofriam mais com danos corporais e condições ambientais adversas. Por isso, melhor seria seguir um trajeto mais favorável. Ainda mais considerando a grande distância a ser percorrida.

A tripulação do Briss àquela ocasião era, em sua maioria, élfica. Existiam alguns humanos, poucos halflings, mas os representantes de Astar compunham a parcela mais significativa. O capitão e os marinheiros, porém, não provinham do continente, mesmo pertencendo à mesma raça. Eram elfos das Ilhas Kartan. Com seus olhos levemente puxados, pele mais morena e sotaque característico, mostravam-se exímios navegadores, apesar de serem alvos de certo preconceito dos astarianos e outros ali presentes que viam o povo de tal nação como um aglomerado de piratas e comerciantes desonestos. O que poucos sabiam – informação divulgada como mero rumor – era que o próprio financiador daquela viagem era de Kartan. Optara por erguer âncora a partir de Astar devido aos custos reduzidos, às facilidades apresentadas pelas companhias ali instaladas e ao maior número de passageiros àquele período do ano. E sim, o indivíduo misterioso e esperto provavelmente se encontrava em meio à tripulação, anônimo.

Todavia, não existia somente um anônimo ilustre a bordo daquela embarcação. Parecia até que os deuses, pedindo a Feger que colocasse em movimento sua infame Roda da Fortuna, haviam reunido naquele convés vários mortais de passado obscuro, aura intrigante e futuro destinado a grandes feitos. Quietos, afastados, cada um isolado dentro de seu próprio plano particular, remoendo eventos de antes e ansiando por venturas adiante. Suas histórias seriam reveladas aos poucos, como raios de sol invadindo aos poucos um cômodo escuro pelas frestas de uma janela vedada, dissipando gradualmente a escuridão da dúvida.

Com a aproximação do litoral de Behatar e do destino final do navio, o clima gélido do inverno ficava para trás, cedendo lugar aos dias mais quentes e agradáveis da primavera. Do convés era possível vislumbrar, em meio às águas de tom azul-esverdeado, cardumes de peixes se deslocando pelas correntes submersas e, com relativa freqüência, outros representantes da fauna marinha, como águas-vivas e até tubarões.

Céu anil, poucas nuvens. De pé junto a uma das bordas do navio, braços nela apoiados, um elfo em particular admirava tal espetáculo com intensa admiração. Cabelos castanhos curtos arrepiados – na verdade ligeiramente espetados, várias mechas se assemelhando, em forma, às suas orelhas protuberantes. Vestia roupas coloridas, as peças se alternando entre tonalidades azuis, amarelas e vermelhas. O tórax era coberto por uma espécie de casaco, com uma capa lisa presa às suas costas lhe descendo até a altura dos joelhos. As calças eram simples, com alguns rasgos aqui e ali, e os pés se encontravam inseridos em botas marrons confortáveis, ainda que um pouco surradas. Tendo os olhos perdidos em meio à vastidão do oceano, assoviava de leve uma canção. Música... seria capaz de viver sem ela?

Não, não seria. Era um bardo e, conforme aprendera desde pequeno, bardos viviam para a música, a poesia e a retórica. Com a devida prática, era possível até conjurar certas magias e encantos com base em canções, poemas ou belos discursos. A palavra tinha poder – bastava saber utilizá-la. Um escolhido por Mager, íntimo das mais belas e inspiradoras musas, o bardo tinha como missão de vida influenciar o mundo ao redor de si através de sua arte. Dependendo do ofício que dominasse, cada um possuía algum pertence inseparável: determinado instrumento musical, cânticos e epopéias de autores célebres, manuais de argumentação... ou mesmo todos eles. Constituíam ferramentas para que o dono pudesse botar em prática seu talento, fascinando aqueles ao redor e muitas vezes sendo-lhes de inspiração nas mais variadas situações.

Os bardos tornavam o mundo mais alegre, interessante e motivado. Sua música acalentava os corações dos aflitos, seus versos encorajavam guerreiros no campo de batalha, seus discursos desmascaravam qualquer mentiroso ou charlatão. Como já dizia seu falecido pai, “um lugar que não conhece bardos é um lugar mudo”.

Sorrindo, recordou-se de um antigo poema que ouvira quando criança, e que muito remetia ao teor de seus pensamentos naquele instante. Rimas singelas, estrutura simples, mas conteúdo sábio e verdadeiro:

Que seria de nós sem as palavras?

Exatas e inexatas, que correm em tropel

Sem elas seria inviável e impossível

Que das idéias surgisse a obra, o troféu!

Que seria de nós sem as palavras?

Doces como néctar, amargas como fel

Hoje este mundo cruel e insensível

Não vê através delas a poesia, o céu

Palavras que constroem

Palavras que destroem

Palavras que o coração remoem

Que seria de nós sem as palavras?

As doces, as amargas

As que correm em tropel?

Mais que a música, ele jamais conseguiria conceber uma existência sem palavras...

Killyk Eleniak nascera e crescera em Astar. Sua mãe morrera cedo, vítima dos sítios e saques realizados pelos soldados invasores da Liga do Norte. Fugindo com o filho, seu pai, Fertick Eleniak, do qual se orgulhava imensamente, passara então a viver de forma nômade pelas florestas, campos e vilas do continente. Mas, não cedendo ao impacto da tragédia, acabou dela tirando forças para compreender sua razão de existir: alegrar as pessoas do mundo, fazendo com que não se abalassem frente às penúrias e se reerguessem do solo quando caídas. De castelo em castelo, lugarejo em lugarejo, Fertick passou a levar esperança, paz e felicidade com sua música e sua poesia. E Killyk, junto a ele, foi gradativamente iniciado nas mesmas artes. Unidos, pai e filho deram forças aos elfos para que se curassem das terríveis pragas enviadas pelos deuses, emocionaram combatentes inimigos a ponto de desertarem de seu exército, apaziguaram sangrentas disputas entre nobres, inspiraram construtores enquanto povoados e cidades refloresciam... Num mundo abalado pela destruição, os Eleniak rumavam contra a maré e levavam tudo que existia de bom aos locais mais desolados, a magia das palavras sendo agente da mudança.

Até que, cerca de um ano antes, Fertick adoecera gravemente. Já não era tão jovem – encontrava-se, na verdade, às portas da velhice élfica – e fora vitimado por uma das moléstias mágicas que ainda assolavam Astar mesmo depois do Crepúsculo dos Deuses. Sua agonia fora lenta: perdera as forças aos poucos, sua voz tão vivaz se silenciando, seus gestos antes contagiantes cedendo lugar a membros em constante tremor, seu semblante sorridente perdendo espaço para um crânio pálido e sempre febril. Conseguira prosseguir em suas viagens com o filho ainda durante meses; porém quando caiu de cama, foi de forma definitiva. Tratado por caridosas sacerdotisas de Rimya ao norte de Astar, na companhia de Killyk até o derradeiro momento, tivera com este uma última conversa cujo conteúdo jamais seria esquecido:

- Filho... – o velho bardo chamou-o a grande custo, após vários instantes tossindo. – Você aprendeu muito de mim. Vi-o crescer, tornar-se sábio, dominar a harpa e os versos melhor que eu... Já pode andar com suas próprias pernas!

- Sim, sem dúvida devo tudo isso a você, pai... – suspirou o filho, choroso. – E é em sua honra que seguirei em frente!

- Killyk, nós trouxemos alegria a este mundo... – sorriu Fertick, esforçando-se para tomar uma das mãos do jovem. – Pacificamos corações, demos esperança aos que sofriam... Mas nosso trabalho não terminou. Um bardo deve se comprometer a melhorar o mundo por meio de seu dom até que a fria lâmina da morte venha finalmente feri-lo. E há muito que fazer, filho. Há vinte anos os deuses fulminaram o mundo, punindo os mortais por sua heresia. Desde então todos ganham forças para se reerguer, porém a calamidade ainda é constante. A Boreatia de depois do Crepúsculo dos Deuses precisa de todo apoio para adentrar uma nova era de prosperidade, principalmente as terras de Behatar, antiga sede da Liga do Norte. É por isso que quero que parta para lá o quanto antes. Use sua música para reduzir o sofrimento dos miseráveis, seus poemas para encorajar os temerosos. Eles necessitam de ajuda!

- Não sei se consigo, pai...

- Conseguirá sim, por certo. Você aprendeu muito comigo, como já lhe disse. Tem cem anos de idade agora e conhecimentos suficientes. E Mager abençoará cada uma das notas de sua harpa e cada um dos refrões entoados por sua boca. Confie em si mesmo, Killyk.

E, apertando a mão do filho, fechou os olhos eternamente.

Auxiliar os habitantes de Behatar com sua arte, inspirá-los a limparem de suas vestes a poeira do desespero e banharem-se nas águas límpidas do reinício. Essa seria a missão de Killyk, e vinha empenhando-se enormemente para cumpri-la. Após meses de preparação e soma de recursos, o elfo bardo conseguira garantir seu embarque no Briss. Depois de dois meses viajando, a chegada agora se avizinhava, e ele tivera tempo suficiente no navio para preparar o que tanto queria. Concluíra o último verso na noite anterior, em meio a um mar calmo e uma leve neblina que envolvera o convés. Segundo o capitão, desembarcariam em poucos dias no porto de Tileade, ao sul de Behatar. De lá planejava rumar imediatamente até a capital. Tinha de entregar seu presente a tempo... e tomar parte nas comemorações que lá teriam palco.

Estava prestes a revisar mais uma vez mentalmente o conteúdo do que preparara, quando algo chamou sua atenção, tirando-lhe os olhos do mar...

Uma elfa, distante poucos metros de si, braços também apoiados na superfície de madeira. Era fato a beleza ser um atributo comum à maioria dos representantes daquela raça, porém a jovem parecia ter sido favorecida pelos deuses nesse aspecto: o conjunto formado por seu rosto claro e de contornos suaves, com os olhos azuis penetrantes e cabelos negros lisos e sedosos que se estendiam até seus ombros compunha aparência comparável às musas dos poemas que Killyk costumava declamar. Apesar de ela estar de lado, o bardo conseguiu notar uma tatuagem no centro de sua testa. Representava uma lua minguante, a concavidade do astro voltada para cima. De cada lado dela, alinhados, havia um pequeno ponto. Não conseguiu compreender o que aquele símbolo poderia significar, mas era no mínimo interessante...

Tinha o tronco coberto por um traje branco semelhante a um vestido, calças de material similar e botas nos pés. Embaixo da peça principal, porém, era possível visualizar a silhueta de uma armadura simples. Apenas essa característica já dizia muito a respeito daquela elfa: alguém que guardava muitos segredos. Um observador comum dificilmente notaria isso, porém a experiência de Killyk como bardo itinerante lhe valera incrível percepção. Além da proteção oculta, capaz de surpreender agressores desatentos, a jovem possuía notável habilidade em esconder seu equipamento. Mesmo com as roupas relativamente despojadas, o rapaz conseguira notar que várias armas e itens inidentificáveis estavam presos ao corpo da moça. O único artefato mais perceptível era o arco longo às suas costas, junto a uma fina aljava de flechas. Dificilmente, porém, era aquele o único armamento que ela sabia utilizar...

Wuolf!

Só então Killyk descobriu. Como pudera ser tão desatento? Seus olhos fascinados pela figura da elfa deixaram escapar totalmente aquele detalhe... Aos pés da personagem, sentado em direção ao mar, havia um lobo. Branco, pêlos lisos e bem-cuidados, lealdade total à companheira. O animal parecia ter sido completamente adestrado, mas a natureza lupina não enganava: ainda era feroz e valente, atacando qualquer um ao comando de sua dona, ou vitimando quem a ameaçasse. Um predador formidável. E, quando a fera se levantou das tábuas do convés, acompanhando a jovem que começava a se afastar, o bardo notou tratar-se na verdade de uma loba.

- Espere! – exclamou ele, erguendo um dos braços num gesto quase involuntário.

A elfa voltou a cabeça para trás surpresa, interrompendo seus passos. Não esperava aquele chamado, assim como sua mascote, que também parou e moveu o focinho sem entender. Ambas aguardavam a próxima fala do indivíduo desconhecido de roupas coloridas, que sem demora se manifestou:

- É uma bela loba...

- Oh, obrigada – sorriu de leve a intrigante mulher, mãos na cintura. – Se está com receio dela, não se preocupe... Provei ao capitão que ela não atacaria ninguém, nem invadiria a dispensa, e por isso mesmo permitiram que eu embarcasse com ela.

- Não, não é isso! – exclamou Killyk um tanto desconcertado, coçando a nuca. – É que dizem que para conseguir se domar um lobo, é preciso uma alma tão brava e lutadora quanto a do animal... Um espírito praticamente forjado ao fogo, capaz de resistir às mais cruéis adversidades. Pensando nisso, eu me encontrava a admirar sua pessoa.

A elfa permaneceu calada, fitando o bardo com atenção durante alguns instantes, até responder de forma simpática, porém séria:

- Há pessoas mais dignas de sua admiração neste navio, meu caro. Não perca seu tempo com alguém como eu...

E, dando as costas novamente para o elfo, distanciou-se com sua loba.

Uma resposta curta e direta, destinada a não torná-la foco de curiosidade ou perguntas. Assim o bardo analisou a atitude da jovem, e tinha quase certeza de que possuía tal objetivo. Tivera nele, no entanto, efeito contrário: a ânsia em saber mais a respeito daquela esquiva moça crescera após a dissimulada afirmação. Como era alguém que cantava grandes proezas, julgava ter um faro natural para encontrar mortais de ar heróico. E aquela elfa parecia ser capaz de inspirar mais versos enaltecedores até do que a própria Briss...

Voltou sua atenção mais uma vez para o mar. A quantidade de nuvens no horizonte crescera, compondo extensa muralha branca inserida no azul celeste. Killyk sorriu...

Estava mesmo numa nau repleta de histórias...

Veio a noite em alto-mar, o luar iluminando as águas que serviam de espelho à vaidade das brilhantes constelações no firmamento.

Pelo convés do Briss, boa parte da tripulação aproveitava os ares agradáveis do pós-entardecer, como vinha sendo costumeiro desde que o inverno passara. Aqui e ali humanos se entretinham com jogos de cartas e fichas, sentados sobre caixotes e emitindo freqüentes berros em meio às jogadas favoráveis ou desfavoráveis. Elfos conversavam sobre assuntos diversos, aqueles oriundos de Kartan sempre acompanhando cada sentença de um gole de seu tradicional vinho de arroz. Inquietos, vários halflings corriam pelo tablado, tentando, em sua imensa curiosidade, tomar parte em todas as atividades ali realizadas – sendo quase sempre sumariamente repelidos – ou então cantando e batendo palmas entre gracejos. A embarcação fervilhava em vida e atividade sob a claridade natural das noites limpas e o brilho amarelado de lampiões acesos perto dos mastros.

Junto a um deles, até então em silêncio, encontrava-se sentado Killyk Eleniak.

Reflexivo, o elfo tentava canalizar toda a inspiração que aquele alegre ambiente lhe fornecia na forma de uma canção ou poema. Os jogos, os diálogos, os risos, os gritos, as palmas... Tudo compunha uma sinfonia única, contagiante, celebrando o mundo, os deuses e os próprios mortais. Desejava também se expressar, dar sua contribuição àquele inesquecível momento. Depois de mais alguns instantes centrando-se, suas atentas orelhas de elfo captando todo mínimo som, sua mente obtendo de cada um o máximo de satisfação e ânimo, o bardo finalmente levou uma das mãos à bolsa que trazia consigo. Retirou dela algo dourado, um tanto pesado. E os mais próximos de si se surpreenderam assim que notaram do que se tratava...

Uma harpa. Um instrumento assim já era raro àqueles dias; que falar então de uma exótica como aquela? Toda esculpida em ouro, continha em sua coroa, na parte superior, a representação da cabeça do deus Mager, em seu divino esplendor élfico. O pescoço era muito detalhado, cada dobra talhada com extremo esmero e as curvas sendo de uma suavidade ímpar. As cordas, finíssimas e luminosas, eram feitas de pêlo de unicórnio. Para completar, o pilar anterior, frontal, era todo cravejado de pequenas e preciosas jóias. Um item raríssimo, de valor inestimável, que Killyk herdara de seu amado pai.

Sob os olhares admirados daqueles ao redor, o bardo começou a dedilhar o instrumento. As cordas emitiram uma seqüência de sons melodiosos, bastante agradáveis, que, após ajuste preliminar, logo tomaram parte nos acordes iniciais de uma bela música. Os jogadores de cartas pararam, os elfos calaram-se, os halflings aquietaram-se. Toda a atenção do convés se voltou para o habilidoso músico, sua linda harpa e a canção maravilhosa que era tocada.

Com os lábios até então entreabertos, Killyk começou a cantar. Não apreciava sua voz – era ainda muito jovem e destreinada. Quando a emprestava à letra de uma canção, todavia, a mágica da harpa e a inspiração de suas musas pareciam fazer com que ela contagiasse a todos. Era por isso que, mesmo sabendo que deveria melhorá-la, não a continha. E, naquela ocasião, era pareceu igualmente não incomodar nem um pouco os que ali se encontravam:

Ó povo belo de Astar

Ó raça divina de Mager

Habitante de florestas e planícies infindáveis

Senhores das artes, da natureza e da magia

Como grande parte da tripulação provinha das Ilhas Kartan, desconhecia aquela música e sua procedência – ainda mais por ser entoada em língua élfica. Os astarianos a bordo, no entanto, sentiram seus corações acelerarem. Era uma tradicional canção élfica, de muitos séculos antes. Constituía na verdade quase um hino da raça, um cântico aos seus feitos, memória e cultura. O bardo seguiu tocando a harpa, e um crescente coro de vozes somou-se à sua, conforme a letra avançava:

Rejubilem-se, nobres elfos

A fortuna e a paz estão consigo

Sagrados seres das matas milenares

De perfeição quase infinita

Nisso, Killyk notou algo. A elfa daquela tarde, com sua loba. Após terem trocado breves palavras, ela se recolhera até seu dormitório no interior do navio, porém agora voltara ao convés. Talvez já estivesse ali há mais tempo, e ele não percebera. Quando se referia a ela, tudo parecia envolto em névoa...

Olhando na direção da jovem de forma discreta, dedos sem descuidar da melodia, o bardo notou algo interessante: ela o fitava fixamente, quase sem piscar. Imaginou qual seria o motivo, o que teria despertado a atenção daquela pessoa que parecia tão difícil de agradar e conhecer. A canção? Não, ela não parecia apegada assim à sua pátria. Foi então que deduziu... sua harpa. Ela estava encantada pelo instrumento, assim como metade da tripulação. Havia algo diferente nos olhos azuis dela, entretanto... e Killyk pensou ter compreendido. Não era mesmo a música que a fascinava. O valor material daquele item, então. Era, aliás, bem provável.

Cante, povo de Astar, seus feitos heróicos

E também não esconda as feridas sofridas

Porque as obteve lutando sob sóis e luas

Mantendo vivo sempre o orgulho do que é

O músico, em seguida, voltou sua cabeça para a direção oposta. E, vislumbrando algo – ou melhor, alguém – igualmente inesperado entre os que cantavam e dançavam, estremeceu.

Uma moça nunca vista antes pelo bardo em dois meses de viagem havia subido ao convés. Elfa, os olhos puxados revelando ser originária de Kartan. Seus cabelos eram prateados, um tom cinza claro que refletia de forma sublime a luz do luar e das estrelas. Lisos, desciam-lhe até a cintura. A pele era bem clara, apesar de tal característica contrastar com a região de clima tropical de onde vinha. Usava um traje que se assemelhava a uma mistura de túnica e vestido, cor alva, braços e pernas expostos quase por inteiros, os primeiros contendo pulseiras douradas em seus pulsos. Os pés calçavam sandálias simples, feitas de sisal. Com os punhos unidos sob o queixo, semblante de intensa admiração, a recém-chegada exclamou, observada pelos demais:

- Eu não nasci em Astar, mas sei que essa é uma canção antiga do povo élfico, não? Meu tio costumava cantá-la para mim...

E, com lágrimas nos olhos, continuou ouvindo. Killyk, por sua vez, sentiu-se ainda mais motivado pela presença daquela linda jovem, cantando com vigor ainda maior:

De Astan a Gaehl, grandes feitos se vêem

Wella também está conosco, entre as árvores centenárias

Grandes artistas criam mosaicos e epopéias

Sabres marítimos desbravam terras distantes

O coro acompanhando o cantar do bardo chegava ao ápice, quase todos no Briss que conheciam a melodia reforçando-a. A emoção transmitida pela letra contagiava a todos os astarianos e igualmente a elfa misteriosa de cabeleira prateada. A jovem com a loba parecia ser a única exceção, tendo tirado os olhos da harpa de Killyk e agora caminhando despreocupadamente pelo local.

Veio a última estrofe:

Esta canção honra todos os elfos

Até aqueles de longínquos lares

Pois estão unidos sob o pai Mager

Criador de uma raça sem outros pares

Ao término da música, palmas de entusiasmo e agradecimento foram ouvidas. Alguns tripulantes até arremessaram moedas na direção do bardo: ele não as pedira, porém as aceitaria de bom grado. Mesmo possuindo suas economias, não sabia de quanto dinheiro precisaria após desembarcar. Logo depois as atividades prévias pelo convés foram retomadas, o clima de alegria predominante tendo sido intensificado. Killyk esperava poder observar novamente a elfa de cabelos prateados, mas frustrou-se: ela desaparecera tão rápida e inesperadamente quanto surgira, tendo por certo voltado às profundezas do barco. Conformado, curvou-se para frente, apanhando uma a uma as moedas que recebera. Foi quando, restando apenas a última, viu uma mão feminina adiantar-se em relação a si, descer até o artefato e apanhá-lo.

Ergueu os olhos. Diante de si, sorrindo de forma discreta, a elfa de cabelos negros e tatuagem à testa estendia a peça de ouro em sua direção, sua fiel loba de pé bem ao seu lado.

- Uma bela música, sem dúvida! – ela falou enquanto o bardo apanhava a moeda e, fitando novamente o instrumento no colo deste, acrescentou: – E essa é uma formidável harpa!

- É o legado de meu pai, além dos conhecimentos sobre música, lírica e retórica que ele me ensinou... – murmurou Killyk, enfiando o dinheiro num bolso. – A letra não a comove?

- Na verdade não... Mesmo eu tendo nascido em Astar, não me considero pertencente a aquele lugar. Digamos que cada local que eu visito passa a pertencer a mim, e não eu a ele.

- Não compreendo seu raciocínio, apesar de suspeitar de uma figura de linguagem... – riu o elfo, levantando-se e limpando suas roupas com as mãos.

- É simples: quando viajo para um lugar até então por mim desconhecido, eu guardo em minha mente as coisas que nele vi, ouvi e senti. Então de certa forma, em minhas memórias, ele passa a ser meu pertence.

- É uma interessante maneira de se pensar. Será que, tendo a compartilhado comigo, posso ter a chance de guardar em minha mente seu nome, além de sua imagem?

- Você também é habilidoso com as palavras. Bem, pode me chamar de Lisah.

E, apontando para a loba, complementou:

- E ela é Kiche.

Lisah e Kiche. Dois nomes fortes. Encaixavam-se perfeitamente à personalidade da elfa e à imponência do animal. O músico, por sua vez, também se apresentou:

- Sou Killyk Eleniak.

- Um artista, pelo que vejo. Admiro isso. Vivemos num mundo bárbaro que precisa de artistas...

Ele sorriu, um pouco desconcertado, como era seu jeito. Esperava que aquele fosse o início de uma amizade tão harmoniosa e inesquecível quanto as canções que costumava tocar em sua harpa.

Descendo as escadas de madeira, a elfa de vestes brancas passou a deslocar-se por um dos corredores internos do navio, contornando vários barris, caixotes e sacas de mantimentos. Não passou por nenhuma outra pessoa: todas se encontravam no convés, aproveitando a noite. Achou melhor assim. Ponderara muito antes de subir até lá para apreciar a música élfica mais de perto – melodia que marcara sua vida – e agora preferia continuar zelando por seu anonimato. A meta que possuía viajando para Behatar seria bastante favorecida pela discrição.

Parou diante da porta de seu dormitório. Abriu-a após remover com uma chave o pequeno cadeado que selava a passagem. Guardou a peça de metal um tanto enferrujada consigo e adentrou o local. Suspirando, tanto de cansaço quanto devido à impaciência ocasionada pela longa viagem, examinou o espaço brevemente. Era apertado, porém suficiente. Uma lamparina iluminava a porção central, deixando os cantos e paredes semi-imersos na penumbra. A jovem deteve os olhos sobre uma singela mesinha de carvalho: seu arrojado arco e as flechas que lhe serviam de letal munição permaneciam onde os havia deixado. Dirigiu-se então até sua cama: um suporte bambo contendo um colchão de penas e um travesseiro surrado, apesar de macio. Sentou-se nela. As pálpebras pesavam-lhe, seus membros fraquejavam. Seu corpo exigia repouso, ainda que o sono breve – mas ainda assim reconfortante – dos elfos. No entanto, não deitou de imediato. Antes estendeu as mãos até o móvel em que deixara sua arma, arrastando-o em sua direção. Levou então os dedos à parte de baixo da mesa, tateando uma textura atípica. Depois de mais alguns movimentos, o som de algo sendo aberto propagou-se quase nulo pelo quarto: uma gaveta oculta sob o que parecia ser apenas um objeto ordinário de carpintaria.

Apesar do Briss ter sido construído em Astar e operar com maior freqüência na rota que ligava tal continente diretamente a Behatar, a presença de tripulantes das Ilhas Kartan a bordo já concedia à embarcação inúmeros artifícios escusos como aquele. A elfa só tinha a agradecer. Recuando as mãos, havia agora algo numa delas, semelhante a um pergaminho, bordas rasgadas e aspecto gasto. As linhas delineando um litoral e os padrões representando florestas e montanhas revelavam ser na verdade um mapa. Com cuidado, a moça abriu-o em cima da mesa, passando sobre ele os dedos para que se mantivesse plano. Era um esquema do continente de Behatar, com as principais cidades, fortes, estradas e acidentes geográficos. Havia, entretanto, uma marca ao extremo norte, junto às elevações em que se lia “Cordilheira Boreal”. Um “X”, mais precisamente, assim como em antigos mapas de piratas levando a um tesouro. A situação, naquele caso, não era muito diferente...

Hachiko – como seu nome estranho à língua élfica já permitia supor – nascera e crescera em Kartan. Perdera os pais cedo, numa epidemia de “febre da costa” que assolara as ilhas durante os últimos anos antes do Crepúsculo dos Deuses. Fora criada então pelo tio, Hoshi Kaynan, um rico comerciante da capital Hitton. Crescendo com independência na cidade conhecida por suas perigosas vielas e cortiços insalubres, já que o responsável por si quase sempre se encontrava fora de casa viajando, a elfa de cabelos prateados aprendeu desde a infância a lidar com o perigo. E seu instrumento de escolha para saber se defender de gatunos foi o arco. Ganhou o primeiro do tio aos trinta e cinco anos de idade, ainda muito nova, e desde então só se aperfeiçoara em seu uso. Muito estudiosa, lera inúmeras obras tratando de grandes arqueiros do passado e técnicas para se conseguir atingir alvos de forma mais efetiva e a grandes distâncias. Orgulhosa de sua habilidade, Hachiko costumava dizer que sua arma não era apenas algo material. Ela compunha parte de sua própria alma.

O tempo passou, e com ele vieram adversidades. Os negócios de Kaynan iam mal, perdendo compradores e afundando até o pescoço em dívidas. Para piorar, o comerciante logo adoeceu, delegando a administração de sua companhia a intermediários que, inexperientes, acabaram por piorar ainda mais a situação. Até que, numa manhã cinco anos depois do Crepúsculo dos Deuses, durante uma tempestade de verão que alagou Hitton por uma semana, Kaynan faleceu. Não pôde deixar a Hachiko nenhuma herança: seus credores se adiantaram e, logo que o proprietário expirou, seus pertences foram repartidos legalmente entre eles. A jovem pôde ao menos permanecer em sua antiga casa, porém tendo de pagar pesado aluguel aos novos donos. Sem dinheiro, passou a se sustentar apenas com os prêmios dos concursos de tiro ao alvo dos quais participava. Tempos difíceis.

Até que, poucos meses antes, a moça resolvera revirar sua residência em busca de antigos pertences do tio que não houvessem sido levados. Esperava encontrar alguma quantia em peças de ouro escondida ou um item valioso, pois sabia que Kaynan a amara muito e se recusaria a deixá-la sem recursos, por pior que fosse a situação. Arrastando os móveis que restaram nos cômodos e checando cada parede, acabou encontrando um cofre secreto. Conhecia o tio bem o suficiente para saber que a combinação era a data em que Hachiko passara a viver naquela casa – e acertou. Dentro do invólucro havia uma pequena bolsa com moedas, uma carta e o mapa que trazia consigo. Ela havia destruído o texto logo depois de lê-lo, para que ninguém mais soubesse de sua existência, mas conseguira memorizar seu conteúdo registrado em ideogramas kartans:

Minha querida Hachiko,

Um período conturbado nos atingiu. Minha companhia comercial se encontra à beira da falência e meus credores desejam devorar meu fígado. Todo o meu lucro nos negócios está comprometido e, como fui vitimado por esta doença, acredito me aproximar de meus últimos dias entre os mortais. Quando você conseguir ter acesso a esta carta – isso se conseguir, pois desconheço o destino que terá nossa casa, onde a ocultei – eu provavelmente já terei partido. E, por vias legais, terei sido incapaz de deixar-lhe qualquer herança.

Digo-lhe porém, minha sobrinha, que nem tudo está perdido. Lembra-se da história do guerreiro Dikanjin, que eu costumava contar a você antes de dormir? O mito do soldado de duas faces? Há uma face de seu tio que você até então jamais conheceu. Uma face incógnita da qual me orgulho e ao mesmo tempo me envergonho.

Além de um comerciante, eu também sempre fui um pirata.

Possuía minha própria frota de assalto nos mares. Trabalhei com contrabando, falsificação. Lidei com pessoas vis e corruptas – algumas delas tendo se tornado agora espoliadores de minha riqueza. Operando como corsário, fiz enorme fortuna, que mais tarde mascarei com a fachada legal de minha empresa. Parte desse dinheiro também está comprometido, mas eu, muito tempo atrás, garanti que certa quantia dele oriunda jamais fosse encontrada. Junto a esta carta há um mapa do continente de Behatar, com uma marca em meio à Cordilheira Boreal, a cadeia de montanhas no extremo norte que separa tais terras das geleiras do Pólo Norte. É o local onde ocultei um tesouro particular, anos atrás, numa antiga mina de ouro. Essa será minha herança a você, Hachiko. Viaje até Behatar, encontre essa riqueza e zele para que jamais caia nas mãos de meus inimigos. Seja feliz, minha querida!

Com amor e sinceridade,

Hoshi Kaynan.

Então era verdade: seu tio fora mesmo um pirata. Quando criança, ouvia chacotas de seus amigos a respeito, e nunca as levara a sério. Possuíam, afinal, fundamento. E Kaynan mostrava-se ainda mais astuto e ágil do que aparentava!

Em segredo, Hachiko iniciou os preparativos para sua viagem. Somou economias, treinou arduamente com seu arco para não titubear diante dos perigos que possivelmente a aguardavam numa terra estranha. Aos cento e dez anos de idade, acreditava se encontrar no ápice de seu vigor físico. Visando ao máximo não chamar atenção, contatou um grupo de navegadores locais conhecidos de seu tio e financiou uma travessia marítima que partiria de Astar durante o inverno daquele ano, rumo a Behatar. Assim, embaralhando seus passos ao seguir até um outro continente para só então zarpar rumo ao seu destino, Hachiko era a principal responsável pela jornada do Briss. Mantivera tal fato desconhecido pela tripulação estrangeira e esperava que assim permanecesse. Desembarcando em Tileade, só teria de avançar até as montanhas do norte e, longe dos olhos dos credores de seu tio, tomar posse do que lhe era de direito.

Sua perspicácia, habilidade e flechas abririam caminho, se necessário.

Iniciava-se outro dia e o sol da manhã banhava o convés.

Alguns marinheiros halflings, usando de baldes e esfregões, limpavam as tábuas alegremente. Zanzavam para lá e para cá em linha reta, alternando a direção quando atingiam uma das extremidades do barco e descrevendo, assim, uma trajetória em zigue-zague que facilitava a tarefa. Apesar da faxina, outros tripulantes se encontravam ali àquele momento, entre os quais Killyk.

Encarando o mar, o bardo via-se perdido mais uma vez em seus devaneios poéticos. Desde que aquele navio zarpara de Astar, a viagem a bordo dele o inspirara muito. Além do cenário exuberante, levando em conta que o elfo nunca havia deixado a terra firme antes, os personagens misteriosos que também ali se encontravam faziam com que sua fértil imaginação elaborasse mil histórias. O que Lisah tanto parecia esconder? Quem era a jovem de cabelos prateados que surgira repentinamente à sua vista e então desaparecera como uma mera miragem marítima? Mesmo que ainda não pudesse elucidar essas questões, Killyk tinha uma certeza: adoraria, se pudesse chegar à verdade algum dia, escrever a respeito das vidas daquelas duas elfas. Sua intuição insistia que renderiam material suficiente para uma incrível epopéia. Quem sabe, no desconhecido futuro que em todos prega peças, não teria oportunidade?

Foi quando, como que invocada pelas musas do rapaz, Lisah adentrou o convés, sua loba Kiche sempre junto a si. Devagar, passos descompromissados, ela aproximou-se de Killyk e, apoiando os braços no beiral de madeira, também começou a fitar o oceano. O silêncio ali predominou por período considerável, a total ausência de som só não sendo possível devido à cantoria em voz baixa dos halflings que terminavam de limpar o local. Num dado instante, todavia, a jovem voltou a cabeça para Eleniak e disse, num tom de voz levemente jocoso:

- Para um bardo, até que você fala bem pouco...

- Bem, considere que eu gasto certo tempo me inspirando, quieto, para que quando eu fale, use as palavras certas! – sorriu Killyk.

- Boa resposta...

Tornaram a focar suas atenções na colossal massa de água. A curiosidade do bardo o atormentava. Como queria saber mais sobre Lisah! Mas deveria perguntar ou não? Talvez ela se irritasse e assim acabasse se fechando de vez... Porém, entre dois caminhos que poderiam resultar em Killyk continuar sem mais informações, valia mais a pena aquele que envolvia a chance de sucesso. Por isso limpou a garganta, somou coragem e indagou, da forma mais gentil possível:

- Então... qual é seu sobrenome?

A elfa riu, divertindo-se. O rapaz corou de leve, começando a imaginar como seria a debochada réplica da moça. Não foi, no entanto, carregada de sarcasmo ou qualquer outra nuance que desmerecesse a pergunta do bardo:

- Mostre-se digno de minha confiança e descobrirá, garanto-lhe.

Surpreso, o elfo nem teve tempo de ponderar ter lançado aquela questão depois de mais alguns dias, ou ter feito algo que mostrasse à jovem ser ele alguém de confiança, pois o inconfundível som de gaivotas fez-se propagar pelo convés. No céu, várias aves brancas batiam suas asas contra a brisa litorânea, anunciando a proximidade de terra. No horizonte, sentido nordeste, a vaga silhueta continental começava a ser desenhada.

Eles estavam chegando a Behatar.

As sandálias feitas de folhas calçadas pelo druida com certeza incomodariam uma pessoa menos habituada, ainda mais se considerando a distância que seu dono percorrera desde o início do inverno. Caleb, entretanto, não tinha do que se queixar, e seus pés se conservavam praticamente imaculados. Sempre firme e determinado, bordão numa das mãos e Anuk ao seu lado, seguia sua jornada sem titubear. A lembrança do sonho que tivera – ainda vivo em sua mente numa intensidade de detalhes que o tornava quase tocável – o impelia dia e noite. Não podia parar. Não antes de descobrir uma maneira de deter a iminente tragédia.

Desde a Floresta Negra, procurara evitar ao máximo as estradas e vias principais. Cruzara áreas de vegetação densa e colinas íngremes, terrenos inóspitos e acidentados. Atravessara o rio Northar, principal do continente, através de uma das pontes menos conhecidas. Além de não desejar estar na vista de pessoas estranhas, Rosengard preferia viajar justamente por tais regiões selvagens. Quando no meio de ambientes de natureza exuberante, ricos em fauna e flora, o druida sentia-se em casa mais uma vez. E essa sensação o encorajava ainda mais a não desistir.

Caminhando sem muita pressa, apreciando o ar da manhã e a paisagem ao redor, Caleb percorria agora uma estrada pavimentada. Não era seu caminho preferencial, porém constituía o acesso mais fácil ao forte de Tileade, seu próximo destino, àquela distância de poucas milhas. Suspirando depois de fitar seu lobo por um breve instante, passou a recordar-se do início de sua viagem...

Sua intuição mandara-o deslocar-se na direção sul. Não tinha certeza se isso traria resultados e não conseguia confiar plenamente nas palavras do amigo Rabesdin, o qual, apesar de muito sábio, na visão do druida já começava a caducar. Mas quando se lembrava do absurdo de seu sonho, ficava mais inclinado a acreditar em coisas que normalmente não aceitaria. Além do mais, entregava sua sorte a Wella. A fé na deusa afastava de sua cabeça o pensamento de estar procedendo de forma errada.

Mas para que local em específico rumar primeiro? “Sul” era uma orientação por demais abrangente. Existiam inúmeros povoados, lugares sagrados e outros destinos na porção austral de Behatar que poderiam interessar de alguma forma à causa do viajante. Logo no princípio, porém, Caleb parara para ponderar a situação, e acabou aceitando a linha de raciocínio de que, havendo elfos em sua visão, eles provavelmente procediam de fora do continente. Não era improvável que eles já houvessem desembarcado naquelas terras há muito mais tempo, nos primeiros anos após o Crepúsculo dos Deuses, mas existia igualmente a chance de ainda não terem ali chegado. E, considerando as escassas alternativas, visitar as cidades portuárias do sul na esperança de encontrar ao menos algum deles parecia ser uma escolha inteligente.

Assim Rosengard agiu, instalando-se primeiramente em Serinia, importante urbe litorânea localizada à saída da chamada “Floresta Marrom”, região densamente arborizada que constituía um braço da Floresta Negra na direção sul. Passou um mês na localidade, observando seu povo, rotina e, principalmente, o cais. Vira, mesmo sendo inverno, navios de diversas origens ali aportando, muitos inclusive de Astar, mas nenhum sinal de elfos cuja aparência fosse ao menos similar com a daqueles em seu sonho. E, ao constatar que a população da cidade parecia ser mais leal a comerciantes locais de origens obscuras do que às autoridades reais, temeu que sua presença ali lhe acabasse gerando alguma ameaça. Não compreendia bem os assuntos das pessoas que viviam em casas de alvenaria e no interior de muros, todavia decidiu ser melhor abandonar Serinia. Além do mais, estava convencido de que não descobriria nada útil permanecendo naquele lugar.

Colocando-se então mais uma vez em movimento, Caleb seguiu ainda mais rumo ao sul, encontrando o ápice do inverno, no mês de Tradir, em plenas elevadas altitudes, na região montanhosa conhecida como “Terras Altas”. Encarara as nevascas com valentia; repousara com seu lobo na toca de ursos amigáveis. No princípio de Mager, deixou a região e ganhou planícies de grama baixa, planaltos assolados por bandos errantes de goblinóides e focos florestais convidativos. Mais um mês de caminhada e paradas para investigação nas localidades mais relevantes, até que, sem nada ter encontrado, avançava agora até Tileade, no extremo sul da península. Sua última esperança antes de elaborar um outro plano. Isso se conseguisse.

A estrada se aproximava de seu ponto de chegada. Metros adiante, em meio a árvores, o druida avistou a muralha do forte. Tileade, apesar de constituir um dos principais portos de Behatar, possuía minúsculas dimensões. Com seus duzentos habitantes, tratava-se de uma pequena fortificação murada com um ancoradouro, quartel, taverna, um templo ao deus Serinius e poucas casas e armazéns. A diferença em relação a um território puramente militar era a presença de não-combatentes, entre comerciantes e funcionários do cais, que habitavam a área. Seria naquele lugarejo tão singelo que Caleb encontraria o que tanto procurava? Bem, possuía certo conhecimento de História, e achava prudente considerar fatos como o de Herma, uma das menores cidades do Mundo Antigo, ter sido palco de uma das mais decisivas batalhas da Guerra dos Dez Generais, ou a insignificante Berel ter se mostrado de suma importância para os exércitos de bandidos que tanto haviam assolado Barbety quase mil e cem anos antes. Às vezes, os locais menos esperados reservavam os maiores acontecimentos. E Rosengard não poderia deixar de averiguar também aquele porto.

Prosseguiu até o portão, única abertura no muro de pedra que protegia Tileade, isso sem considerar o lado sul da povoação, no qual existia a praia que abrigava as tábuas do ancoradouro. Encontrava-se aberto, grades erguidas, como era hábito durante o dia. Mesmo com bandoleiros e aberrações atacando pelas estradas desde o Crepúsculo dos Deuses, manter o portão de uma cidade portuária fechado e abri-lo somente após um detalhado exame das pessoas em trânsito atrapalhava o comércio e atrasava o tráfego de mercadorias. Seria melhor correr o risco de maus elementos adentrarem o forte, sendo detidos pela guarda em seu interior caso causassem problemas, do que atravancar de forma prejudicial a entrada e saída. Fitando o alto da muralha, o druida percebeu diversos homens armados com espadas e arcos, suas armaduras contendo detalhes em tecido azul, cor predominante entre os soldados fiéis ao Reino Boreal. Patrulhavam os arredores revezando-se entre si, sem contar as torres de guarda, situadas nas junções dos muros: abrigavam exímios arqueiros capazes de atingir seus alvos a distâncias consideráveis. Tileade era, em suma, bem-guardada.

Sem ser abordado pelos vigias, Caleb ganhou tranqüilamente a parte de dentro do forte. Cercado pela muralha, com exceção da praia ao sul, o conjunto se assemelhava a um extenso pátio revestido de pedras, com construções aqui e ali como que brotadas do mesmo. Mais próximos do recém-chegado, via-se, à sua esquerda, o templo dedicado a Serinius, adornado com colunas frontais que compunham imponente fachada. Acima das portas de madeira existia um tridente dourado, símbolo do deus, e a edificação possuía planta num formato semelhante a um triângulo, a estrutura se afunilando na direção do altar. Logo à frente, do mesmo lado, havia a taverna, um convidativo sobrado de madeira com janelas de vidro colorido e um letreiro acima da entrada contendo o nome do estabelecimento: “Gaivota Azul”. Junto às letras existia um desenho um tanto simples representando o referido animal, com sua atípica tonalidade.

À direita vislumbrava-se o quartel, um prédio de dois andares similar a uma pequena fortaleza, a bandeira do Reino Boreal tremulando num mastro sobre o telhado: uma espada na vertical, lâmina voltada para cima, sobreposta a um pinheiro de abundante folhagem – tudo num fundo azul. Depois dele, após um bonito chafariz, avistava-se uma série de casas enfileiradas, onde residiam os soldados e trabalhadores do forte. Já no centro do lugar, em meio ao aparente pátio, três armazéns de igual tamanho, paralelos entre si, abrigavam mantimentos e mercadorias descarregados a quase todo momento dos navios que ali aportavam. O cais, por sua vez, compunha comprido e espaçoso tablado, com três atracadouros junto aos quais, naquele momento, encontravam-se ancoradas duas grandes naus. A primeira, contendo em suas velas o mesmo símbolo presente na bandeira acima do quartel, pertencia claramente à Marinha de Behatar. A segunda, com suas velas finas, voltadas para os lados e segmentadas – atravessadas por hastes de madeira – era por certo oriunda das Ilhas Kartan, e Caleb não precisava entender muito de navios para deduzir isso.

O barco que chamou sua atenção, no entanto, não se encontrava junto ao cais. Vinha ao longe, atravessando o oceano ao sabor do vento favorável. As velas possuíam insígnias élficas, e o formato estreito do casco reforçava a hipótese de ter partido de Astar. Ainda estava distante para que o druida nele pudesse perceber maiores detalhes, mas, por algum motivo, a visão daquela nau fê-lo estremecer. Era como se... como explicar? Tomado por inesperado pressentimento, sentiu que o navio em questão trazia todas as respostas que buscava. Não sabia de que modo, nem o porquê, porém uma enorme segurança tomou-o quando ouviu uma feirante, próxima a si, dizer a um marinheiro em tom alegre:

- Nada do que foi estocado nos celeiros se perdeu durante o inverno, a primavera será farta, Wella foi bondosa para conosco!

Aquilo só podia ser um sinal. Sua reverenciável deusa continuava mesmo consigo. Não podia mais duvidar: apenas confiar nela. Tocando o solo de pedras com a extremidade inferior de seu bordão, Anuk sentando-se próximo a si, Caleb voltou a observar o horizonte, aguardando pacientemente a chegada da embarcação. Tudo seria esclarecido. A catástrofe seria evitada.

“A alma mortal, em sua liberdade, é como

uma gaivota a voar por um litoral de

infinitas possibilidades e sonhos”

Marea de Barbety, aprox. 342 ACD.

Uma pequena composição de Killyk Eleniak. Tema – Primavera:

Começa a primavera

O calor agora impera

Tardes quentes, mas saudáveis

Manda o sol raios afáveis