Capítulo I

“Ventos de Outono”

Haviam se passado vinte e um anos desde o Crepúsculo dos Deuses.

Principiava o mês de Itirkanaan, e com ele vinha a estação do ano conhecida como outono. A natureza, desdobrando-se em frutos, cedia aos mortais férteis colheitas, enquanto as folhas escurecidas e secas das árvores, de suas copas se precipitando, anunciavam a renovação de um ciclo.

Era possível perceber a chegada de tal estação em cada aspecto da fauna e da flora. As formas de vida se preparavam para a chegada do rigoroso inverno, dentro de mais três meses: os animais estocavam alimentos e já preparavam suas tocas para se abrigarem do frio, e as plantas lançavam seus últimos esporos ao ar antes que a neve tudo congelasse. A vida seguia seu curso natural, a natureza conduzindo-a pelas mãos como uma grande mãe, representada pela bondosa Wella.

E, imerso na densa Floresta Negra, que cobria parte do centro do continente de Behatar, o jovem Caleb Rosengard estava mais do que nunca em contato com tal ciclo.

Com os pés cobertos por improvisadas sandálias feitas de folhas, ele, trajando sua leve túnica cinzenta e trazendo numa das mãos seu fiel bordão de madeira, caminhava sobre o tapete natural que as árvores, livrando-se de suas copas, começavam a proporcionar. Cabelos negros, pele clara e com uma barba rala cobrindo-lhe o rosto sereno, o rapaz seguia um caminho definido através da vasta floresta, a qual, no decorrer de seus vinte e cinco anos de vida, aprendera a conhecer como a palma de cada uma de suas calejadas mãos. Ela representava um ambiente inóspito e perigoso para os forasteiros, devido à sua densidade de vegetação – o que tornava fácil nela se perder – e aos animais selvagens que a habitavam. Mas para Caleb, que crescera naquele local e fora desde muito cedo introduzido ao pleno conhecimento da natureza, com sua magia e perfeita sincronia, aquela floresta era seu estimado lar.

Os Rosengard compunham uma família descendente de um dos mais antigos círculos de druidas de Boreatia. Há séculos seus representantes, espalhados pelos quatro cantos do mundo, zelavam pela proteção da natureza e a manutenção de seu ciclo, além de serem exímios praticantes das artes mágicas a ela associadas. Retirando suas forças da fauna e da flora – forças estas cedidas, em primeiro lugar, pela própria essência de Wella – os druidas conseguiam interagir completamente com os elementos naturais, e até se fundir a eles.

Sim, eles tinham consciência, mais do que ninguém, do imenso ciclo em que tomavam parte. E, por saberem disso, era exatamente dele que retiravam seu imenso poder.

Sorrindo, Caleb continuou caminhando, pisando as folhas e transpondo as grandes raízes das árvores centenárias. Normalmente suas espessas copas praticamente bloqueavam a luz solar, mas, devido à estação, agora mais raios conseguiam chegar até o solo da floresta. Era quase final de tarde, e logo o céu assumiria tons laranja similares aos que predominariam durante aqueles meses na vegetação. Num dado ponto, aos pés de um majestoso pinheiro, o jovem olhou para trás e, procurando com seus olhos entre os arbustos, exclamou:

- Venha, Anuk!

Eis que surgiu dentre a mata um belo e forte lobo branco, adulto, seguindo o druida como o leal companheiro que era. Farejava o chão no rastro de algum pequeno animal – um caçador nato. Ou então talvez se interessasse pelo cheio de algo ou alguém estranho à floresta. Isso era inclusive costumeiro: a estrada principal ligando Borenar, a capital do continente e do Reino Boreal, às cidades da costa oeste, passava bem no meio da Floresta Negra. Caleb nunca compreendera totalmente a razão de uma via tão utilizada por viajantes cortar aquela região tão hostil aos não-habituados a seu ambiente. Muitas pessoas já haviam se perdido ali, e o druida inclusive guiara algumas delas de volta à segurança da vida à qual estavam habituadas. Outras morreram, perdidas ou vitimadas por alguma fera. A vegetação da floresta era tão impetuosa que, de tempos em tempos, soldados do reino eram obrigados a abrir novamente a estrada, cortando parte das plantas e da grama que rapidamente a tomavam. Não seria mais simples utilizar uma estrada que contornasse a região, ao invés de empreender tanto trabalho e freqüentemente correr riscos ao utilizá-la?

Caleb estava convencido de que jamais compreenderia a forma de pensar daqueles que viviam em cidades...

E também acreditava que em breve teria uma nova leva de pessoas a socorrer. Naquela época do ano o movimento na estrada crescia, devido ao Festival de Outono em Tyrnan. A cidade, localizada a oeste da floresta, quase adjacente a ela, possuía grande devoção a Wella, havendo inclusive uma grande estátua erguida em sua honra fora dos muros e, dentro deles, um conhecido santuário de sacerdotisas dessa mesma deusa. Todo ano, no final do mês de Wella, último do ano, a povoação recebia pessoas de toda aquela parte de Behatar, para a celebração da colheita e da renovação do ciclo natural. Uma semana de festividades, que incluíam jogos, música e banquetes. Os viajantes que utilizavam a estrada, geralmente se deslocando a pé ou no máximo a cavalo, passavam então a confluir até Tyrnan a bordo de extensos carroções que a estreita via não comportava. Muitos contratempos, assim, costumavam encontrar os peregrinos desavisados, e Caleb, conhecedor da mata, via-se no dever de auxiliá-los. Se ao menos eles fossem mais sábios, seu trabalho não seria tão árduo...

Acenou para Anuk. Deviam retornar a seu abrigo, pois a noite logo chegaria. Abandonando o rastro que acompanhava, o lobo assentiu, seguindo o mestre. O dia findava, e um tranqüilo repouso existia além daquelas árvores.

O grupo de estudos encontrava-se reunido em volta de uma mesa redonda de madeira. Seis cadeiras a circundavam: numa delas estava sentada uma mulher de cabelos grisalhos, usando uma túnica branca semelhante a um vestido. Tinha preso a seu pescoço um singelo colar contendo, em sua extremidade inferior, uma pequena peça esculpida em metal, representando uma folha de árvore: o símbolo sagrado da deusa Wella. As outras cinco pessoas próximas à mulher também eram do sexo feminino, porém aparentavam bem menos idade. Trajavam vestes semelhantes e também traziam a mesma relíquia ao pescoço.

Diante de cada uma delas, na mesa, havia um livro aberto. Todos os exemplares de capa surrada pertenciam a uma mesma obra: “Os Sábios Deuses”. Um dos vários guias à Religião Comum difundidos pela Ordem de Gartur antes das perseguições empreendidas pela extinta Liga do Norte. A biblioteca do santuário havia conseguido salvar vários daqueles livros da destruição nas fogueiras da guerra religiosa. Eram verdadeira raridade, e agora cumpriam seu papel na instrução daquelas jovens.

A mais velha virou uma página de seu volume, limpou a garganta e então falou, erguendo o semblante sério:

- Como eu dizia, Northar é o responsável por impor ordem ao caos, realizar a criação de tudo que é existente a partir do cosmos, que era então desordenado. Muitos confundem Northar com o cosmos, mas a personificação deste na verdade é sua esposa e mãe dos deuses, Rimya. A união dos dois representa a submissão do cosmos à ordem imposta por Northar, o caos sendo suprimido para que a criação pudesse ocorrer. Tanto que Rimya é simbolizada pelo ventre.

- Senhora Jent, então a união de Northar e Rimya simboliza tanto a criação dos mortais quanto a criação dos deuses, já que estes deles são filhos? – perguntou uma das alunas, loira de cabelos longos, bastante interessada.

Meroah Jent era uma mulher rígida e de grande devoção aos deuses. Fora nomeada sacerdotisa-mor do santuário de Wella em Tyrnan pela Ordem de Gartur num dos primeiros anos após o Crepúsculo dos Deuses e, desde então, vinha realizando um trabalho extremamente disciplinado em administrar o local e cuidar da iniciação de novas clérigas. Se nos corredores do lugar ou em seus aposentos ela dificilmente encontrava tempo para responder às dúvidas das jovens sacerdotisas, suas aulas diárias na biblioteca, alternadas entre turmas, constituíam momento ideal para isso. E se havia uma coisa que Meroah sabia fazer bem era explicar os preceitos e práticas da Religião Comum, principalmente os relativos ao culto específico de Wella.

- Sim, exato, cara Hennia – ela respondeu esboçando um leve sorriso, algo raro de se ver. – Toda a criação, divina e mortal, resulta dessa união, da ordenação do cosmos.

Em meio às cinco pupilas, uma delas não estava muito interessada nos estudos religiosos. Ou melhor, não possuía interesse algum. Ela olhava para o livro aberto diante de si, mas sua mente não se encontrava de modo algum focada em seu conteúdo, muito menos na explicação de Jent. Era fim de tarde, e ela podia ouvir, através das janelas da biblioteca, o cantar dos últimos passarinhos nas árvores do jardim do santuário, antes de se recolherem para seus ninhos. Queria estar lá, aproveitando os últimos momentos do dia ao ar livre, do que permanecer enfornada naquele lugar ouvindo sobre divindades que não queria nem saber se existiam ou não! Queria muito poder deixar os sufocantes muros daquele prédio com mais freqüência e poder passear livre por Tyrnan e seus arredores, não somente em celebrações ou missões de caridade! Como detestava aquela vida!

- Kirinak, você não está muito atenta hoje, não é verdade?

A voz ríspida da sacerdotisa-mor fez a garota de cabelos castanhos curtos e lisos, olhos verdes e pele muito clara ter um sobressalto na cadeira, sendo retirada bruscamente de seus pensamentos. Ergueu a cabeça, um pouco corada. Apesar do susto, julgava-se psicologicamente preparada para o sermão da superiora:

- Já passou da hora de você demonstrar ao menos um lampejo de seriedade! Logo irá completar dezoito anos e passará pelo ritual de sagração, tornando-se uma sacerdotisa de verdade! Não poderá servir Wella se não possui maturidade suficiente para compreender e difundir seus ensinamentos!

- Dane-se Wella! – Kirinak explodiu subitamente, levantando-se da cadeira e causando espanto em todos na biblioteca. – Não sei a razão de eu precisar aprender essas chatices! Não acredito nesses deuses! Se eles fossem tão sábios e bondosos assim, não teriam deixado o Crepúsculo dos Deuses acontecer!

- Kirinak, você está blasfemando! – protestou Hennia, erguendo-se também de seu assento, muito nervosa. – É assim que se refere às divindades que lhe concederam a vida?

- E que vida é esta? – bradou a revoltada garota, lágrimas brotando em seus olhos. – Eu mereço uma vida assim?

Aos prantos, Kirinak cobriu o rosto com ambas as mãos e saiu correndo para fora da biblioteca, sob os olhares de todos, inclusive a reprovadora Meroah.

Do lado de fora, desatou a fugir pelos corredores, olhos ainda obstruídos pelos dedos, não desejando ser vista ou interpelada por ninguém. Desejava apenas poder deixar aquele santuário e aquela vida que rejeitava para trás, poder ir embora dali, viver livre descobrindo o mundo existente além daqueles muros! Se ao menos pudesse...

Sua corrida foi interrompida quando colidiu com alguém. A julgar pelo familiar tecido de túnica que seu tato percebeu, era uma das clérigas. O que Kirinak menos queria era ouvir outro sermão! Trêmula e soluçando, caiu sentada sobre o piso frio, retirando as mãos dos olhos. Ergueu a face. Sua visão ainda estava um tanto embaçada pelo choro, porém os cabelos de um vermelho forte da pessoa com quem havia se chocado fizeram com que reconhecesse de imediato quem era. As orelhas finas e pontudas também não deixavam enganar. Estava diante da elfa que era sua única verdadeira amiga naquele santuário, sua confidente, a única mãe que um dia tivera. Elya.

- Kirinak? – ela indagou, a surpresa não suprimindo o tom manso e calmo que sua voz sempre carregava.

- E-eu... – oscilou a garota, sem saber o que responder.

Sentia, acima de tudo, vergonha. Reprovava-se por não conseguir ser uma boa clériga. Se autocondenava por desapontar Elya, que, apesar de entendê-la, sempre recomendara que tentasse abraçar aos poucos uma vida dedicada somente a Wella, dizendo ser o melhor para si. Como ela queria poder gostar de tudo aquilo! Como queria ser feliz ali!

- M-me desculpe...

Dizendo isso ainda entre soluços e lágrimas, Kirinak levantou-se do chão e voltou a correr, agora com o rosto descoberto. A elfa ruiva, sem ação, limitou-se a olhar para trás, observando preocupada a jovem enquanto ela se distanciava. No fundo... também queria descobrir uma maneira de fazê-la feliz.

Passando por algumas sacerdotisas pelo caminho, as quais ignorou, Kirinak dirigiu-se até os dormitórios, esbaforida. Quase empurrou a porta do vazio aposento onde costumava dormir com suas companheiras de quarto, trancando-a logo depois por dentro e dirigindo-se até sua simples cama, localizada num dos cantos. Jogou-se sobre o colchão de penas e, desesperada, arrancou do pescoço o pingente de Wella, como se o metal estivesse queimando sua pele. Em seguida levou um dos braços até embaixo do móvel, de onde retirou uma caixinha de madeira. Levando-a até em cima da cama, abriu-a. Dentro existia uma outra correntinha, da qual, no entanto, pendia um símbolo diferente: uma espada com a lâmina voltada para baixo.

Kirinak envolveu o pescoço com o novo colar rapidamente, e só nesse momento pareceu tranqüilizar-se. Baixando a cabeça e relaxando o tronco, disse, em voz muito baixa, como numa prece:

- Senhor da Espada... me ajude nesta aflição. Você é o único que me compreende...

E, em meio à sua oração, os desejos da jovem tornaram a ganhar asas. Desejou nunca ter sido abandonada pelos pais na frente daquele santuário quando bebê, desejou poder professar em público sua fé no único deus que acreditava ser justo, desejou ter condições de viajar, deixar aquele local e aquela vida para trás... eternamente.

Muito cansada, pouco depois adormeceu.

A noite caíra no centro-oeste de Behatar.

Pela Floresta Negra, uma figura estranha caminhava, não pertencendo ao lugar. Formas femininas fortes, músculos desenvolvidos. Parecia trajar uma armadura, mas com poucos segmentos visíveis devido à capa que a cobria. A cabeça era envolvida por um capuz, porém olhos mais desenvolvidos, como os das aves noturnas, conseguiriam identificar alguns fios de cabelo loiro. Os contornos do rosto, porém, eram imersos em sombras. Sem portar qualquer fonte de luz, a misteriosa personagem, trazendo consigo equipamento e armas escondidos, orientava-se somente a partir da luz do luar e das estrelas no firmamento.

A constelação do Corvo irradiava grande brilho aquela noite. Ela considerava isso um sinal de boa sorte, e sempre desejava contar com esta em seus trabalhos. Já passara muitos apuros em seu passado, e eles haviam lhe garantido várias de suas cicatrizes. Também haviam lhe conferido, porém, experiência. E, considerando o valor que dava a esta, as cicatrizes eram um preço humilde a se pagar.

Vinha da capital Borenar, a leste, e agora dirigia-se até a cidade de Tyrnan. Procurava evitar a todo custo estradas ou caminhos mais movimentados: desde que chegara ao continente, meses antes, ainda não tivera seu rosto denunciado por ninguém, e preferia que a situação permanecesse assim. Abundavam ali contratantes para seus serviços, e tornar-se procurada pelas autoridades logo naquele momento, sendo obrigada a deixar Behatar até as coisas esfriarem, prejudicaria seus negócios. Por isso optara por chegar a Tyrnan cruzando o trecho mais denso da Floresta Negra. Apesar de não ser nenhuma “guerreira da floresta”, ela conseguia transpor áreas como aquela sem maiores problemas. E viajar durante a noite, além de ser mais discreto, faria com que chegasse mais rápido ao local em que cumpriria sua atual missão. Seu contratante pagava mais pela rapidez.

O contratante em questão, aliás, era um completo mistério. Ela raras vezes tivera contato com uma pessoa de identidade tão bem-protegida. O sujeito atendia apenas pela alcunha de “Grantz”. Sabia-se apenas que, durante os anos subseqüentes ao Crepúsculo dos Deuses, controlara boa parte do submundo de Behatar e seus negócios ilegais por tempo considerável. Agora perdia força perante outros indivíduos, mas não seu prestígio. Ela já realizara, desde seu desembarque no continente, diversas missões para tal indivíduo, o mesmo só a contatando por meio de intermediários, sem nunca mostrar o rosto. Aqueles envolvidos com o crime diziam que, no período mais recente, Grantz tornara-se ainda mais misterioso e incomunicável, sendo praticamente impossível contatá-lo de modo direto. Alguns especulavam a respeito de ele já ter inclusive morrido e pessoas antes associadas a ele ainda utilizarem seu nome para obter benefícios nos negócios. Já outros diziam que Grantz talvez nunca tivesse sequer existido.

O importante era que ao menos quem o representava, pagava bem. Isso bastava a ela por enquanto.

A missão atual era eliminar um nobre em Tyrnan que estaria atrapalhando os assuntos de Grantz. Atendia pelo nome de Just Lerminan e residia numa luxuosa casa junto à muralha norte. A guarda pessoal do alvo era fraca e a contratada teria de precaver-se somente em relação à guarda pública. Recentemente fora nomeado procurador da cidade um nobre de sobrenome Chänter, indivíduo presunçoso e autoritário. Traumatizado com o Crepúsculo dos Deuses, restringia a entrada de qualquer um em Tyrnan e reforçara o contingente de soldados que vigiavam as ruas e muros. Um contratempo a ser vencido, sem dúvida, mas nada com o que ela não pudesse arcar.

Parecia ser um trabalho bastante fácil, na verdade. Ela sem dúvida assassinaria Lerminan rapidamente e desapareceria em meio à Floresta Negra, muito próxima a Tyrnan, antes que o procurador e seus homens pudessem se dar conta do que acontecera. Ela já encarara missões muito mais difíceis em cidades maiores, quando estivera em Barbety e nas Ilhas Kartan. Não seria uma empresa simples como aquela, num lugarejo no meio do nada, que lhe traria problemas.

Freya tinha quase certeza disso.

Caleb Rosengard apagou a fogueira que havia acendido pouco tempo antes jogando sobre ela um pouco de terra. Já haviam se aquecido o bastante e também se alimentado. Com a luz da chama se extinguindo, apenas o brilho dos astros no céu noturno restou sobre a floresta. O druida levantou-se da pedra em cima da qual estava até então sentado e, colocando-se a andar, foi acompanhado pelo fiel lobo Anuk.

Seu abrigo em meio à mata se assemelhava a uma choupana cujas paredes eram compostas pelos próprios troncos das árvores adjacentes. Algumas pedras e improvisadas vigas como fundamento e um telhado feito de arranjos de folhas e gravetos complementavam a estrutura que, apesar de aparentemente precária, era na verdade bastante durável. Já se mantinha de pé há muitos anos, desde antes de Caleb nascer. Fora erguida por seus pais, que já não mais se encontravam presentes.

Não estavam mortos, porém, ou vitimados de qualquer mal – ao menos até onde o rapaz sabia. Ocorria que, no clã Rosengard, remetendo às tradições ainda mais antigas do círculo de druidas do qual se originara, os pais ensinavam a seus filhos a compreensão e imersão na natureza, com sua magia e segredos, até uma certa idade. No caso de Caleb, fora quando completara dez anos. Seus pais, então, partiram para outras partes do mundo, com o objetivo de zelar pelas forças naturais e a continuidade de seu ciclo vital em diferentes regiões de Boreatia. Não fora uma separação abrupta: o garoto fora instruído, desde pequeno, a respeito do momento em que ocorreria e suas razões, sendo que na época o menino a encarou de forma totalmente natural, e ainda assim a encarava. Desde cedo aprendera a sobreviver sozinho na Floresta Negra, e jamais tivera problema algum desde a partida dos pais. Era mesmo difícil encontrar mais de um druida numa mesma região, protegendo uma mesma área: a tendência era mesmo se dispersarem. Caleb não via os pais há quinze anos. Talvez voltasse a vê-los algum dia, talvez não. Não importava. Acontecesse o que acontecesse, seria por intermédio das forças naturais, que regiam todos os seres vivos. Por intermédio da bondosa Wella.

Sabia, porém, para onde os progenitores haviam migrado: sua mãe Kirna viajara para os desertos de Barbety, provavelmente vivendo agora entre os convidativos oásis do continente. Já o pai Fheris se mudara para Astar, visando obter novos conhecimentos e vislumbrar em plenitude as verdades sobre as florestas, que encontravam o máximo de sua exuberância na terra dos elfos. Um dia era provável que Caleb também deixasse a Floresta Negra, quando sentisse ser o momento. Havia outras nuances da natureza a conhecer, faunas e floras enigmáticas a desbravar.

Imerso em tais reflexões, Caleb adentrou sua morada e acomodou-se no tapete de folhas dispostas sobre o chão em que costumava repousar. Anuk aproximou-se e se deitou perto de seu mestre, abaixando a cabeça sobre as patas dianteiras. Relaxando o corpo, o druida passou a admirar a claridade das estrelas através das frestas no telhado da choupana. Era como se elas também o observassem, ele sendo tão distante para aqueles astros longínquos quanto estes pareciam ser a ele. As copas das árvores, altas e frondosas, também se assemelhavam, com seus galhos, a alguém com os braços erguidos saudando aquela imensidão. E era fortalecedor tomar parte nela.

Até que algo estranho foi captado pelas pupilas do jovem. Um brilho amarelado, não-natural, misturou-se ao tom predominantemente azul-escuro da noite, aos poucos o substituindo. Esse amarelo parecia se desdobrar em laranja, em vermelho, unido a uma crescente sensação de calor. Tais características só poderiam pertencer ao mais poderoso e destrutivo dos elementos, capaz de converter praticamente tudo de volta ao pó primordial: o fogo.

Aturdido, Caleb levantou-se às pressas do solo e saiu da cabana. Anuk seguiu-o, arfando agitado. Do lado de fora, o que viu fez com que se lembrasse da fogueira que costumava acender todas as noites naquela clareira, porém era como se o pequeno foco de chamas houvesse sido acendido agora pelos deuses e, nessa proporção, englobado toda a área da floresta. Tudo, simplesmente tudo ao redor se encontrava tomado por violentas chamas. As árvores centenárias ardiam por toda parte, seus galhos e ramos despencando entre labaredas e seus troncos transformados em imensas carcaças carbonizadas. Por entre as paragens consumidas pelo fogo voraz, surgiam correndo animais da floresta: raposas, lobos, veados, lebres, falcões... Tentavam fugir desesperadamente daquela fúria elemental repentina, todavia seus corpos eram igualmente dominados pelas chamas e, entre espasmos e sons de horror, transformavam-se em cadáveres queimados. Uma tragédia sem precedentes se alastrava de forma repentina sobre a milenar Floresta Negra de Behatar, destruindo-a por completo.

Desesperado, olhos marejados diante de tanta dor, impotente frente ao clamor de socorro da natureza, Caleb jogou-se de joelhos sobre o chão ainda coberto pelas folhas caídas do outono. Concentrando-se, rogou a Wella. Pediu que a onipotente Senhora da Natureza o auxiliasse naquele momento extremo e salvasse ao menos alguns daqueles seres vivos de tanto sofrimento. Envolvido pelo calor do vasto incêndio, ergueu os olhos... e percebeu algo novo.

Além das plantas e animais que crepitavam, havia outras figuras mortais diante do druida. Seres humanóides. O coração de Caleb acelerou enquanto procurava identificá-los em meio ao ofuscante brilho do fogo. Quatro silhuetas. Logo conseguiu distinguir duas elfas e um elfo. Era um tanto raro encontrar representantes dessa raça em meio àquela floresta, ainda mais em condições adversas como aquela. A primeira elfa possuía longos cabelos negros e sedosos, uma tatuagem na testa difícil de examinar àquela distância e uma armadura de aparente couro batido. Carregava junto ao corpo várias armas e equipamentos, que o observador não pôde ao certo determinar. A outra elfa usava roupas brancas e leves, tinha belos cabelos prateados, igualmente compridos, e trazia às costas um grande arco com uma aljava de flechas. Já o elfo vestia roupas despojadas e coloridas, cabelo castanho curto arrepiado e com alguns itens também em sua carga. Todos pareciam confusos e nervosos, não percebendo a presença de Caleb ali.

A quarta figura, por sua vez, era incrivelmente aterradora. Uma jovem de cabelos castanhos curtos, humana, usando uma armadura que parecia não se adequar bem a seu tamanho. Não devia ter mais que dezoito anos. Em complemento a essa aparência frágil, porém, somava-se uma inexplicável e intensa aura vermelha que emanava de seu corpo e o envolvia, sem contar os olhos dominados por terrível brilho também rubro. Dela parecia provir imenso mal, uma ameaça simplesmente incomparável. O calamitoso incêndio na mata aparentava, de certo modo, estar associado a ela. Foi quando uma voz feminina desconhecida, vinda das costas do druida, exclamou, ecoando por toda a clareira em chamas:

É tudo culpa do Macker!

E, num clarão que cegou os olhos de Caleb, tudo desapareceu...

O rapaz levantou-se do tapete de folhas no solo de sua choupana com o coração quase explodindo em seu peito, pulmões clamando por ar e corpo muito suado. Olhou em volta. Lá fora a floresta permanecia como quando se deitara para dormir. Acima de sua cabeça, o brilho das estrelas monopolizava o ambiente. Ao lado do druida, Anuk ergueu o focinho e olhou-o, sem entender. O jovem também procurava compreender: aquilo fora um sonho? Não passava de um sonho ruim e inesperado? Ou possuía algo de real? A mera possibilidade o assustava, mas... poderia se tratar de uma premonição? Algo por acontecer?

Manhã seguinte.

Kirinak acordara cedo. Fazia parte de sua rotina no santuário. Após as orações da manhã, dedicadas a Wella, as clérigas empenhavam-se em suas diferentes funções, e assim a vida ali se desenrolava. Era na cozinha que Kirinak realizava seu papel: desde pequena aprendera com as sacerdotisas mais velhas as artes gastronômicas e assim, já há alguns anos, ficava sempre em parte responsável pelos almoços do local. Não era um ofício que adorava. Assim como todos os aspectos da vida naquele santuário, também era alvo de seu ódio. Porém constituía, ao menos, uma tarefa que costumava deixá-la calma e distraída. Um leve alento em seu cotidiano.

Naquele momento encontrava-se justamente na cozinha, ajudando suas colegas na preparação da refeição a ser servida dentro de algumas horas: suflê de abóbora com molho de cogumelos. Não era sua preferida, porém boa parte das clérigas a apreciavam, incluindo Elya. E isso dava a Kirinak ainda mais disposição para que ficasse saborosa. Junto a um forno a brasa, a jovem sacerdotisa cuidava do molho, despejando fatias de alguns cogumelos encontrados naquela região dentro de uma panela e adicionando tempero. Foi quando, enquanto mexia a mistura com uma colher de pau, olhou através da janela próxima a si que dava para o jardim dos fundos do santuário. Acabou testemunhando uma movimentação anormal do lado de fora: homens da cidade carregando pesados sacos de estopa os depositavam numa pilha junto a um dos muros e, presumivelmente voltando até a rua, logo retornavam com mais carga, o improvisado depósito crescendo.

Já era praticamente impossível ver homens dentro do santuário, pois não eram normalmente admitidos – as sacerdotisas de Wella deveriam se manter sempre castas e virgens. Que dizer então de homens carregando aqueles sacos estranhos, empilhando-os de forma desajeitada dentro do lugar, sendo que Meroah Jent sempre zelava por tudo limpo e organizado? Kirinak não conseguia entender, e a curiosidade a atacava. Aproveitando-se do fato de já ter adiantado boa parte do molho, resolveu deixar a mistura ao forno e pediu a uma das colegas, de nome Dihna, enquanto se dirigia para fora da cozinha:

- Preciso fazer uma coisa, você pode vigiar o molho para mim um momento?

- Claro! – respondeu a prestativa clériga de pele bronzeada e cabelos negros presos numa trança, sorrindo.

Cruzando os corredores do santuário, logo Kirinak chegou ao jardim. Admirou brevemente as árvores cor-de-ferrugem e os canteiros de flores sempre bem-cuidados, avançando logo depois rumo aos fundos. Andando devagar, como que temerosa, observou mais daqueles homens chegarem com novos sacos, depositando-os na já grande pilha e em seguida voltando à rua, através dos portões da frente, para apanharem mais. Quem coordenava o trabalho daquelas pessoas era justamente a elfa Elya, que, com os cabelos ruivos brilhando como fogo sob o sol matinal, orientava os carregadores com grande simpatia.

- O que está acontecendo? – Kirinak indagou, aproximando-se de sua mentora.

- Oh, logo todas serão informadas, mas... – falou a outra sacerdotisa, alternando seu olhar entre a garota e os homens. – Este ano o Festival de Outono não será realizado nas ruas de Tyrnan, e sim dentro dos muros do santuário. Creio haver espaço suficiente para todos e será uma forma de aproximar mais as pessoas do culto a Wella.

- Está falando sério? – a menina inquiriu, surpresa quanto ao que acabara de ouvir.

- Sim. A idéia foi minha. Houve certo trabalho em conseguir convencer Meroah, mas ela acabou cedendo. Enfim, é isso. E o povo da cidade já está iniciando os preparativos para daqui três meses. Esses homens estão estocando ali os grãos que serão usados nos rituais e banquetes.

Dizendo isso, Elya apontou para a pilha de sacos. Agora fazia sentido. Mas isso não suprimia sua surpresa. O Festival de Outono sendo realizado ali dentro, logo no jardim? Essa era nova! Mas se Elya acreditava ser benéfico às celebrações e à adoração a Wella, então devia ser mesmo. Sendo a única elfa ali, ela era mais velha e experiente que todas as outras clérigas, apesar de sua aparência física ainda ser relativamente jovem. Sábio era confiar em seus julgamentos.

Retornando calmamente até a cozinha, Kirinak passou a ponderar a situação. O Festival de Outono era uma das raras oportunidades que possuía de deixar o interior do santuário e respirar ares de relativa liberdade, porém, ele agora sendo organizado dentro dele, não poderia mais sair. Isso sem dúvida era ruim. Outro ponto a se pensar era que, como o santuário e suas sacerdotisas serviriam de anfitriãs, Jent provavelmente desejaria que aquele festival fosse o mais bem-feito e preparado de todos. Isso significava trabalho redobrado para todas, como para Kirinak na cozinha, e talvez, com todas as clérigas assim ocupadas, mal sobrasse tempo para aproveitar as festividades em si, com toda música e diversão...

Nesse instante, um súbito e ousado pensamento despontou na mente da moça...

Sacerdotisas muito ocupadas, distração, portões abertos para os peregrinos e participantes do festival...

Será que... será que... chegara finalmente o momento propício?

De frente para a panela contendo o molho de cogumelos, Kirinak apanhou de novo a colher de pau. Mexendo-o, passou a desenvolver sua idéia. Se bem estruturada, tornar-se-ia um plano. E de plano converter-se-ia em ação.

Em breve ela não teria mais de usar o pingente de uma deusa que não adorava.

Caleb andara o dia todo. Seus pés doíam, e o resto de seu corpo tentava resistir ao desgaste físico. A extremidade inferior de seu bordão tocava o solo em intervalos quase fixos. Anuk continuava acompanhando-o, sem demonstrar qualquer sinal de inquietação ou impaciência. Era mesmo um fiel companheiro.

A Floresta Negra ficara para trás, ao sul, e o druida percorria agora uma paisagem dominada por pradarias, grama até os joelhos. Um caminho mais fácil, aberto, mas que não constituía o lar ao qual Caleb estava acostumado. No céu, o azul da tarde ganhava os primeiros tons alaranjados do poente. Tinha de chegar a seu destino antes que a noite caísse. De acordo com seus cálculos, ao menos isso conseguiria. Não se importaria em ter de dormir lá.

O local já se desenhara no horizonte há algumas horas, desde que o campo de visão do druida fora desobstruído pela ausência de árvores, e agora chegava cada vez mais perto: o sereno e isolado Monte Keyla. Com sua base cercada de vegetação e seu cume ameno e de fácil escalada, aquela elevação era freqüentemente visitada por Caleb quando ele precisava refletir. Parecia que, no alto dela, seus pensamentos fluíam de forma mais livre e as respostas vinham com maior facilidade. Sem contar que aquele lugar era seu costumeiro ponto de encontro com um velho amigo, talvez o único que possuía fora da floresta...

Mais algumas horas... Só mais algumas horas e estaria no topo do monte. E aí poderia pensar com clareza.

O que o perturbava era o sonho da noite anterior, a aterradora visão. A mata em chamas, plantas e animais morrendo, os elfos misteriosos e a humana maligna... “É tudo culpa do Macker!”. O que aquilo poderia significar? Quem ou o que seria Macker? Sua casa corria mesmo perigo? Aquilo era realmente uma premonição, o retrato fiel de um acontecimento vindouro?

Estava inclinado a pensar que sim. Já houvera casos de premonição em sua família. Segundo seus pais haviam lhe contado, a visão do futuro através de sonhos era um poder que vários membros do clã Rosengard já haviam manifestado. Nos séculos anteriores, diversos de seus antepassados previram com exatidão o Crepúsculo dos Deuses e outras tragédias climáticas. Dizia-se até que Raoun Rosengard, fundador da linhagem e antigo membro do círculo de druidas Raízes de Wella, havia sonhado com as catástrofes sísmicas na ilha de Knets anos antes de sua ocorrência, em 4590 ACD. Agora era a vez de Caleb apresentar tal dom... ou seria um fardo?

Pois, se ele também ficasse impotente diante do imenso incêndio na floresta como em seu sonho, talvez fosse preferível não ter dele tomado conhecimento prévio. Ao menos seria prudente pensar que, se ele viera a prever aquilo, era porque possuía a capacidade de evitar o pior. Ele tinha de tentar prevenir aquele holocausto. Talvez fosse uma missão que lhe fora dada pela própria Wella, para a glória da natureza.

Envolvido em tais reflexões, Caleb chegou ao cume da elevação, após ter subido através de pequenas trilhas e escarpas. Anuk o seguiu até uma pedra circular, sobre a qual o druida se sentou. Respirando o ar mais rarefeito daquela altitude, passou a olhar em volta de si: o firmamento já assumira uma coloração avermelhada escura, a noite cada vez mais próxima. Bem ao longe, nos confins do horizonte, o matiz negro já predominava, com algumas poucas estrelas se revelando. Ao sul do monte estava a Floresta Negra, seu lar. A leste via-se os Campos da Fortuna, planície fértil em que abundavam fazendas e gerava a maior parte da produção de alimentos de Behatar. Na mesma direção, mais ao longe, divisavam-se com certa dificuldade os muros e torres mais altas da capital do reino, Borenar. Ao norte, predominavam pradarias e algumas pequenas vilas, mais longínquas, enquanto a oeste, semi-oculta pelas árvores da floresta, a cidade de Tyrnan era parcialmente identificável. Mais além se encontrava o litoral, porém não podia ser visualizado àquela distância.

Em seguida o druida baixou a cabeça, fitando os próprios pés. Fechou os olhos. Naquele estado de paz e isolamento, tentou definir um caminho a seguir, uma meta a traçar. Como evitar a fúria do fogo? Como descobrir a verdade sobre as pessoas misteriosas de sua visão e o ainda mais incerto Macker? Quem deveria procurar? Para que lugar se dirigir? Tantas perguntas!

E eis que, em meio à desorientação, ouviu passos atrás de si. Só podia ser seu velho amigo...

Abrindo os olhos e virando-se, o rapaz viu um homem um tanto idoso, de cabelos grisalhos curtos, rosto de contornos e traços bem definidos, rígidos. Junto à boca seca via-se um bigode e pequeno cavanhaque, também cinzentos. O corpo, apesar de desgastado, conservada ainda certa força e músculos, coberto por uma manta suja e rasgada, pés metidos em sandálias improvisadas. Vinha tossindo com intensidade e, quando parava, tornava a tossir após curtos intervalos. Ora ou outra ocultava as mãos, limpando-as nas vestes, para que ninguém visse o sangue que nelas era cuspido.

- Meu companheiro Rabesdin! – saudou Caleb enquanto o recém-chegado se aproximava. – Não o vejo há cerca de um mês!

- Estive ocupado cuidando de meus assuntos, mas acabo sempre retornando para cá... – murmurou o velho, sentando-se ao lado do druida. – Uma amiga insistiu que este local faz bem para minha saúde.

- Conta algo novo? Alguma nova história?

Sim, Rabesdin era alguém repleto de histórias. No passado fora soldado, um combatente honrado, levando Caleb a suspeitar que pertencera a alguma ordem de cavaleiros. Talvez os famosos e agora praticamente extintos Cavaleiros da Luz. Pouco de concreto ele já contara ao jovem, porém, a respeito de seu passado. Fazia questão de sempre ser vago em suas narrativas, além de atribuir a outros atos que provavelmente ele mesmo levara a cabo.

- Hoje é você quem me parece munido de uma nova história, meu caro – afirmou o velho, olhando para a face preocupada de Caleb. – Conte-me, o que houve? O que o aflige?

- Eu tive um sonho muito estranho ontem à noite. E, levando em conta o histórico de premonições que minha família possui, acredito se tratar na verdade de uma visão, de um aviso. Estava na Floresta Negra, quando de repente um incêndio insaciável a tudo dominou. As árvores e animais sucumbiam sem que eu nada de significativo pudesse fazer para salvá-los. E, em meio às chamas, quatro indivíduos surgiram. Duas elfas e um elfo, a mim totalmente desconhecidos e misteriosos. Havia também uma quarta pessoa, uma jovem da raça humana. Dela emanava uma aura forte e maligna. E uma voz surgiu atrás de mim, afirmando que toda aquela desgraça era culpa de Macker. Não sei o que isso pode significar, e é o que me perturba. Sinto apenas que, mais cedo ou mais tarde, irá acontecer!

Rabesdin ouviu o relato calado e muito sério. Conforme o druida se aproximava do final, seus olhos se arregalaram e seus lábios se torceram. Pareceu igualmente aturdido com o teor do presságio. Mas logo a serenidade habitual tornou a dominá-lo. Endireitando o tronco e olhando na direção da Floresta Negra, falou ao amigo:

- Parece-me mesmo algum tipo de premonição e, na minha opinião, se os deuses a concederam a você, é sua tarefa evitar que essa tragédia ocorra.

- Mas como? Não sei quando ou em quais circunstâncias acontecerá, desconheço aquelas pessoas, não faço a mínima idéia de quem seja o tal Macker...

- Eu me pergunto se ela não estará relacionada à coroação de Jetro I como novo rei de Behatar, dentro de pouco mais de seis meses, após o inverno...

Caleb se esquecera completamente de tal fato. Dentro de pouco mais de seis meses, realmente, no primeiro mês da primavera, dedicado a Swordanimus, Jetro I seria coroado na capital Borenar novo rei de Behatar, ou Reino Boreal. Seria o primeiro governante efetivo do continente após o Crepúsculo dos Deuses e o fim da Liga do Norte, já que desde então aquelas terras vinham sendo administradas por uma junta provisória composta por nobres. Sua subida ao trono era vista como emblema de esperança e recomeço ao povo de Behatar, simbolizando um rompimento com o passado de guerras, autoritarismo e perseguições religiosas empreendidos pelos reis anteriores, inaugurando uma nova era de paz, prosperidade e o devido culto aos deuses.

- Eu não consigo compreender a razão de coroarem um novo rei justo no mês de Swordanimus, que era o foco da política expansionista e violenta da Liga do Norte... – murmurou o druida.

O velho, após breve surto de tosse, explicou:

- Eles querem demonstrar um total rompimento com o passado, a ponto de não importar coroarem um rei nessa época. Seria um mês como qualquer outro. Além do que, é o primeiro mês da primavera, após o rígido inverno. Simboliza justamente o recomeço, o retorno da luz e da fertilidade após um período estéril de trevas.

- Se for como você diz, e minha visão tiver algo a ver com essa coroação, então tenho tempo para me preparar e agir. Será que até lá conseguirei definir uma direção?

- Sendo a premonição um dom inerente à sua família, por que não se deixa guiar plenamente por sua intuição? Faça o que ela lhe aconselha.

- Não sei se sou capaz de ouvir a voz de minha intuição...

Rabesdin tossiu novamente, esfregando o sangue surgido em seus dedos sobre a roupa. Caleb sabia que ele era tuberculoso, porém como fora rechaçado com grosseria nas poucas vezes em que tocara no assunto com o antigo soldado, preferia não mais voltar a ele. O idoso apontou então para as cercanias do monte, para a imensidão do continente, e falou:

- Deixe que sua intuição escolha uma dessas direções e, quando se sentir concentrado o bastante nela, simplesmente siga-a. Você não estabelece seus passos sozinhos, caro Caleb Rosengard. Os deuses, principalmente Wella, anseiam por orientar suas ações. E logo você terá outros companheiros mortais que o auxiliarão em sua jornada...

Logo depois, o velho guerreiro se levantou, deu uma leve tossida e, sem dirigir qualquer outra palavra ao druida ou ao menos olhar para trás, começou a descer a elevação. Antes de perdê-lo de vista, Caleb indagou:

- Eu voltarei a ver você?

- Quando menos esperar... – e, dando essa resposta, Rabesdin afastou-se em definitivo.

O jovem, por sua vez, fitou Anuk brevemente e depois tornou a cerrar os olhos. Será que a coroação do tal rei boreal, assunto das pessoas das cidades, estava mesmo relacionado ao terrível presságio envolvendo sua floresta? Rabesdin era um homem sábio. Podia ter mesmo razão. Caberia agora ao druida conseguir guiar-se a partir de sua intuição.

Que Wella o auxiliasse.

Noite em Tyrnan.

Aproximava-se a hora décima após o meio-dia. Era o momento que marcava o início do toque de recolher imposto pelo procurador Chänter à cidade. Tal prática, característica dos últimos anos antes do Crepúsculo dos Deuses, vinha sendo abolida por todo o continente, mas um administrador paranóico e autoritário dificilmente a descartaria. Pelas ruas e muralhas, os soldados a serviço da guarda pública vistoriavam cada canto entre e próximo às construções, munidos de espadas e arcos, prontos para combaterem qualquer possível intruso. Com as estradas repletas de ameaças como salteadores goblinóides e outros monstros errantes, nunca se sabia o que poderia acabar se infiltrando no interior da povoação, colocando em risco seus íntegros habitantes.

Do lado de fora de Tyrnan, a oeste, a grande estátua da deusa Wella, com os braços abertos e suas vestes esculpidas como se fossem compostas de folhas, era como um gigante de pé adormecido, sua colossal silhueta compondo sinistro vulto durante a noite. Sobre os muros, os vigias revezavam a guarda em turnos, focando-se principalmente nas proximidades dos portões da cidade, numa dobra do segmento sul da muralha. Quem observasse as ruas vazias – sem nenhum transeunte a não ser os sentinelas – e as casas silenciosas da cidade, com apenas o santuário de Wella contendo ainda algumas luzes acesas, diria que o zelo do procurador pela segurança era realmente exagerado, quiçá doentio. Algo, no entanto, ou melhor, alguém, escapava às vistas dos guardas, em sua maioria pouco experientes...

A figura fazia uso das sombras para esconder-se como poucas pessoas conseguiriam. Era só algum vigia distrair os olhos por um mísero instante, voltar-se ao companheiro ao lado para trocar com ele alguma rápida palavra, que o elemento invasor se aproveitava para passar correndo despercebido. Acompanhava a muralha leste pelo lado de fora, ocultando-se em meio às árvores e arbustos disponíveis, rumando em direção ao norte. Não contornou a muralha, porém. Pouco antes da curva, embrenhou-se entre algumas plantas e verificou seu equipamento. Corda, dez metros. A muralha possuía entre seis e oito metros de altura: bastaria. Em silêncio, apanhou o instrumento e, mesmo mal podendo enxergar devido ao breu, efetuou, com movimentos natos, um laço em uma de suas pontas. Testou-o puxando-o com ambas as mãos: firme o suficiente. Erguendo-se de leve atrás dos arbustos, vistoriou o alto do muro: os guardas, em sua marcha padronizada, afastavam-se temporariamente do ponto que desejava utilizar. Aquele era o momento.

Freya, encapuzada e pouco mais que um espectro opaco em meio à noite, deixou o abrigo e atirou o laço da corda sobre a muralha. Só teria uma tentativa, porém confiava em sua destreza. Ela não se desapontou: o arranjo do fio encaixou-se perfeitamente sobre um dos segmentos do beiral recortado do muro, assim erguido para servir de amparo a arqueiros. A jovem puxou a corda: firme, devidamente presa à estrutura de pedra. Agora bastaria subir.

Teria de ser veloz, mas isso não significava perder a calma. Ponderando cada movimento, Freya apoiou as botas na superfície da muralha, tomou impulso para trás e, somando o movimento de forma sincronizada à ascensão de suas mãos na corda, venceu um metro. Praticamente nenhum ruído, graças à sua experiência com escaladas daquele tipo. Para facilitar, os guardas ainda estavam um tanto longe. Mais um pouco e estaria no alto da muralha!

Mais um impulso com os pés, mãos agarrando o sisal do cabo, progresso na subida.

Chegou ao topo.

Recolheu a corda rapidamente, guardando-a de forma discreta sob a capa. Olhou em volta: dois guardas à sua direita, junto à intersecção dos muros, e um mais próximo à esquerda. Nenhum a percebera, felizmente. Depois voltou a cabeça para os telhados das casas logo abaixo: a residência que deveria adentrar se encontrava a três moradias de distância. Não teria de atravessar nenhuma rua, apenas se deslocar com cuidado pelas coberturas, tomando cuidado para não fazer barulho ou causar o desmoronamento das mais frágeis. Se chegara até aquele ponto sem problemas, talvez não viesse a tê-los aquela noite. Observou o céu: constelação do Corvo. A sorte estava mesmo consigo.

Antes que algum vigia retornasse àquele ponto da muralha, Freya saltou sobre o telhado da casa mais próxima, um pequeno sobrado. As telhas e vigas que sustentavam a estrutura pareciam um tanto frágeis, algumas inclusive se despregando e pendendo sobre as cercanias, mas os passos das botas da mercenária eram incrivelmente exatos. Sem contratempos, pulou para outra morada. Logo que caiu de pé sobre a beirada da cobertura, porém, um susto: uma das telhas escorregou sob seu pé direito, indo precipitar-se e se estilhaçar na viela metros abaixo. O som chamou a atenção de um dos soldados no muro próximo. Virando-se na direção do ocorrido, encontrou apenas um felino preto, olhos brilhantes e cauda ondulante, de quatro sobre uma calha próxima ao local de onde se desprendera a lajota. Xingou o animal:

- Malditos gatos!

O bichano, por sua vez, percorreu o mesmo telhado em sentido contrário, rumando para uma casa ao lado... seus pêlos roçando nas pernas de Freya, deitada junto a uma imperfeição do telhado e tendo passado, assim, invisível aos olhos do sentinela. Fora rápida o bastante para rolar sobre as telhas e alojar-se naquele nicho antes que fosse descoberta pelo inimigo. Como se sentia agradecida aos inexperientes construtores daquela cidade! Ainda com o coração aos pulos, a intrusa aguardou mais alguns instantes antes de engatinhar discretamente até a outra borda da cobertura, visando se deslocar para cima da última residência antes de seu objetivo. Foi agora mais discreta: dependurou-se na calha que cercava parte do telhado, um beco escuro e uma queda danosa, caso suas mãos oscilassem, presente logo abaixo de seu corpo suspenso. Freya calculou a distância, tomou impulso, temendo que a outra calha não agüentasse seu peso... e saltou, girando no ar e agarrando com perfeição a superfície metálica do lado oposto.

Respirou fundo, ouvidos atentos aos guardas. Impulsionando o tronco acima, ganhou o novo telhado, rastejando através de seus segmentos mais baixos. As coberturas vizinhas a ocultariam dos vigias na muralha, porém ainda receava aqueles no solo, patrulhando as ruas. Logo visualizou a casa de Just Lerminan: dois andares, arquitetura detalhada, com esculturas adornando as sacadas e beirais. Um pequeno jardim com chafariz enfeitava a seção frontal e, a julgar pelo desenho da residência, deveria possuir um hall com escadas. Luxo simples, proporcional à atividade de comerciante fraudulento exercida por seu dono. As janelas de madeira encontravam-se trancadas por dentro, as portas visíveis aparentando serem feitas de material reforçado. Sim, ele sabia mesmo ser um homem visado e tentava se proteger como podia.

Freya não conseguiria transpor aqueles obstáculos para o interior da morada sem causar barulho. Ao menos chegara até ali sem ser descoberta, o que já era lucro. Ela era uma guerreira, não uma ladra. A furtividade, agora, poderia ficar de lado.

Abaixou-se na beirada do telhado da casa vizinha, um dos joelhos sobre as telhas. Retirou novamente a corda de baixo de sua capa, e desta vez também pegou algo mais. Uma besta, munida de alguns poucos virotes. Cerrando os dentes, a mercenária armou-a, torcendo para que o ruído das molas e engrenagens não despertasse a atenção dos vigias próximos. Nada, por sorte, e ela inclusive ouviu um bocejo. Aqueles soldados eram mesmo patéticos. Se o doentio procurador soubesse contar com indivíduos tão inaptos, talvez já tivesse até enlouquecido...

Com a arma devidamente preparada, Freya, tranqüila, amarrou uma das pontas da corda ao virote engatilhado na besta, efetuando cuidadoso e firme nó. Depois deu uma breve olhada para a munição: ela era forte e consistente o bastante, nunca a deixara na mão. E, considerando a sorte que até então a vinha favorecendo, tudo correria bem. Após passar alguns segundos mirando com a besta na direção do andar superior da casa, utilizando apenas uma mão para tal, a mercenária disparou. Com o outro braço, permaneceu segurando a extremidade oposta da corda. Qual distância deveria separar a suposta janela do quarto do alvo daquele telhado? Sete ou oito metros?

Bingo!

O projétil singrou o ar noturno, indo cravar-se em cheio na superfície de madeira da janela fechada da residência, levando consigo o fio preso a si. Freya puxou o segmento de corda que permanecera em sua outra mão: firme. Em seguida amarrou-o em torno de uma fina chaminé de metal existente sobre o telhado. Pronto. Sua ponte para os aposentos de Lerminan estava concluída.

Bastava agora se pendurar à corda, acima do beco, para chegar à janela que deveria atravessar. Bufando, Freya agarrou o sisal com ambas as mãos, impelindo o corpo para cima para conseguir enlaçar também suas pernas em torno deste. Assim, abraçando o fio por baixo, peito e ventre nele resvalando e sua capa pendendo sobre a viela, passou a se arrastar até a casa do nobre. O trajeto era lento e arriscado, pois ficava muito exposta visualmente aos vigias logo abaixo. No entanto, não se desesperou, mantendo a calma e a confiança... ao menos até ouvir o berro embaixo de si:

- Hei, o que está fazendo aí em cima?

Por sorte já se encontrava no final do caminho. Aproximou-se o suficiente da janela fechada ouvindo os apitos dos guardas, iniciando o alerta. Desprendendo as pernas da corda, manteve-se a ela agarrada somente pelas mãos e, pendurada de pé acima do jardim, impeliu o corpo na direção da janela com o máximo de força que conseguiu... finalmente soltando o cabo.

Como previra, seu peso foi suficiente para empurrar com violência as duas divisórias do obstáculo para o interior do quarto, arrebentando a tranca e por pouco não destruindo também as dobradiças. Colocando-se novamente de pé, Freya, aturdida, examinou o ambiente. Um dormitório, contendo paredes e chão revestidos por ricas peças de tapeçaria originárias de Barbety, a julgar pelos desenhos e tipo de costura. Uma penteadeira com trechos folheados a ouro, ao lado da porta do recinto, continha um espelho opaco que refletia o móvel logo à sua frente: uma cama imperial toda esculpida em madeira nobre, a pessoa nela adormecida sob lençóis e cobertores caríssimos devendo se achar um verdadeiro rei. Lerminan, sem dúvida. Talvez nem fosse preciso confirmar...

Mas era prudente. Caminhando devagar, mesmo com os clamores e passos ameaçadores do lado de fora, Freya aproximou-se da cama, retirando sua fiel adaga do traje. Vagarosamente, inclinou-se sobre o alvo que repousava, arma pronta para ser usada numa mão, enquanto com a outra passava a puxar com cuidado a roupa de cama...

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Súbito, o indivíduo vestindo pijama levantou-se num sobressalto, erguendo o tórax. Cabelos castanhos, bigode, bochechas grandes... Batia perfeitamente com a descrição cedida à mercenária pelos intermediários de Grantz. Com o rosto assustado, a última coisa que Just Lerminan viu em vida foi a face semicoberta por um capuz de uma atraente e fria mulher loira, uma cicatriz em forma de fenda coroando-lhe um dos olhos. Em seguida sentiu uma incrível dor junto ao pescoço, desfalecendo quase imediatamente com líquido quente e rubro a lhe verter sobre as vestes e lençóis, olhar incrédulo... garganta cortada.

Estava feito.

Tinha agora apenas de fugir da cidade, o quanto antes. Olhou para trás, procurando sua corda: permanecia suspensa acima do beco, não havendo tempo hábil para retirá-la. Seria melhor deixá-la para trás, Freya conseguiria outra facilmente. E não necessitaria dela em sua fuga: poderia saltar sobre os telhados, alcançar a muralha e dela desaparecer para a Floresta Negra. Jamais a encontrariam.

Pôs-se, assim, em movimento: arrombando outra janela, visualizou as coberturas próximas. O muro norte não estava longe. Tomando fôlego, correu e saltou para o telhado da residência vizinha, também um sobrado. Sua queda, porém, não foi perfeita, torcendo um dos tornozelos ao pousar com os pés sobre uma calha. Uma pontada de dor assolou seu corpo, mas não podia parar.

- Droga! – praguejou.

Seguiu correndo. Das ruas provinham gritos, luzes se acendiam no interior das casas. Pequenos sinos eram badalados no prédio do quartel, convocando todos a caçarem a invasora. Logo alguns projéteis passaram por cima de sua cabeça: flechas. Tinha de sumir rapidamente de vista ou seria transformada numa tábua de tiro ao alvo!

Pulou para outra moradia, e mais outra. A muralha se aproximava. Num movimento rápido, esquivou-se de uma seta que por pouco não se enterrou em seu abdômen. A quantidade delas crescia. Os guardas pareciam ser bons arqueiros, compensando sua letargia em patrulhar a área.

Mais um salto. Muro norte. Vigias se aproximando de ambos os lados, espadas desembainhadas.

Fechando os olhos e contando com a sorte até o momento tão favorável, Freya saltou para fora. Aterrissou num arbusto espinhento, arranhando parte dos braços. Manteve-se abaixada, quieta. Os berros das patrulhas se intensificaram... para, instantes depois, afastarem-se. Os guardas deviam ter perdido o rastro da fugitiva subitamente, ou se ausentaram para averiguar algum indício falso. Conveniente.

Segura, a mercenária deixou o esconderijo, caminhando abaixada junto à muralha. Algumas centenas de metros à frente, com suas árvores grandes compondo verdadeiro labirinto, podia enxergar os primeiros sinais da Floresta Negra. Adentrando aquela mata, poderia regressar à capital sem problema algum. E ainda melhor: seu rosto continuava desconhecido. Missão cumprida...

Se não fosse a repentina e intensa pancada em sua nuca.

O golpe a pegara totalmente de surpresa. Não ouvira ou percebera nada que pudesse indicar a aproximação do incógnito agressor, levando-a a crer se tratar de alguém bem mais ágil e habilidoso do que ela. Sentindo incrível raiva, Freya perdeu rapidamente a visão e, assim que o tato de sua pele percebeu a grama em cima da qual caía, foi privada de sentidos.

Ao final, a sorte a abandonara.

Eram os últimos dias do mês de Wella, e assim, igualmente, derradeiros dias do outono e do ano 21 DCD.

A cidade de Tyrnan mal conseguia comportar dentro de seus muros o enorme número de peregrinos que para ela haviam viajado, tanto que, do lado de fora, principalmente aos pés da majestosa estátua de Wella, aglomeravam-se acampamentos abrigando pessoas oriundas das mais variadas regiões do continente, incluindo as ilhas mais próximas. Ao término do Festival de Outono, toda aquela multidão levantaria suas barracas e retomaria as estradas de volta para casa rapidamente, pois em poucos dias a neve do inverno começaria a cair. Era uma época em que Tyrnan praticamente quadruplicava em população, a semana inteira convertia-se em descanso e uma contagiante alegria, aliada ao sentimento de gratidão à natureza, dominavam a todos.

O cerne das festividades era realizado, naquele ano, nos jardins do santuário de Wella. E, para a jovem Kirinak, a celebração compunha uma mistura rica em cores, sons, aromas e texturas.

Por todo o gramado haviam sido erguidos pavilhões de variados tamanhos, compostos por tendas de pano de tiras coloridas, sempre aos pares de matizes. Vermelho e branco, azul e branco, preto e amarelo... Em cada um deles eram realizadas diferentes atividades. Enquanto o maior abrigava um altar a Wella, diante do qual os peregrinos depositavam oferendas em grãos e trigo à divindade e realizavam suas preces, gratos pela colheita, a maioria oferecia diversão e refeições aos visitantes. Uma criativa barraca disponibilizava um jogo de tiro ao alvo em que, ao invés de dardos, eram utilizadas uvas para se atingir bonecos de palha. Um pavilhão comprido e do qual provinham intensos gritos de torcida servia de palco a uma disputa entre dois competidores munidos de foices para ver quem cortava mais feixes de trigo em menos tempo. Aos amantes do combate, uma tenda adornada com desenhos de espadas e possuindo num letreiro a inscrição “Latife, O Duelista” oferecia um prêmio em dinheiro a quem conseguisse vencer o astuto portador de sabre num confronto: a cada derrota para ele, a quantia a ser ganha subia. Quanto aos locais oferecendo alimentação, extensas mesas recebiam grande quantidade de pessoas que se alternavam saboreando os banquetes compostos por uma incrível variedade de sopas, assados, tortas, bolos e bebidas.

Era fim de tarde. Sentada junto à fonte de pedra existente nos fundos do santuário, Kirinak, após ter adiantado seu trabalho na cozinha e assim recebido algumas horas de descanso, observava a movimentação com um punho sob o queixo. Normalmente estaria eufórica participando das festividades, aproveitando ao máximo cada segundo, porém algo a tornava mais introspectiva e séria do que o normal. A ocasião era outra. Seus pensamentos eram outros...

Fitou os muros do santuário. Em cima deles, homens armados com espadas se encontravam de guarda. Com o festival ocorrendo no interior do lugar, a sacerdotisa-mor achara prudente contratar alguns homens de Tyrnan para vigiarem os arredores. Sempre existia a possibilidade de um gatuno tentar roubar algum pavilhão. Além disso, após o misterioso assassinato de um nobre da cidade meses antes, o suspeito tendo fugido sem ter sido identificado, existia o perigo de mais algum crime ser cometido ao longo daqueles dias, já que com todas aquelas pessoas ali seria fácil desaparecer em meio à multidão. Melhor seria, realmente, tomar alguma providência para zelar pela segurança dos visitantes e das clérigas, como fora feito.

A questão era que a presença daqueles sentinelas poderia atrapalhar – e por certo atrapalharia – os planos de Kirinak. Havia se esquecido desse detalhe e agora teria de modificar seu esquema prévio para poder lidar com isso...

- Ah, então aí está você!

A exclamação viera da esquerda da distraída jovem. Virando a cabeça, deparou-se com a tranqüila Elya, que se aproximou e sentou-se ao seu lado. Imergindo uma das mãos nas límpidas águas da fonte, a elfa afirmou:

- Pensei que estaria se divertindo com alguma competição ou ao menos provando parte da comida que ajudou a preparar...

- Estou apenas cansada – Kirinak forjou um sorriso.

- Tente se animar, afinal é o último dia de festa.

Elya já ia se levantar para retornar a seus afazeres, quando a garota puxou-a pela túnica. Ponderara muito a respeito de se deveria ou não pedir a ela o que pediria a seguir, mas, franzindo o cenho, acabou falando:

- Você poderia deixar comigo a chave da dispensa? A senhora Jent me encarregou de guardar as sacas de farinha que sobrarem na cozinha hoje à noite.

- Está bem – assentiu a elfa, levando uma mão à cintura e seus dedos retornando com a referida chave neles pendurada, estendendo-a à jovem. – Cuidado para as sacas não furarem, Meroah ficaria uma fera!

Como que invocada pela fala de Elya, a sacerdotisa-mor surgiu caminhando não muito longe da fonte, conduzindo três pessoas através do jardim. A primeira era um homem forte e alto, membros repletos de músculos, pele morena, cabelos compridos negros e barba da mesma cor. Seu porte e semblante fechado geraram temor em Kirinak. Atrás desse colosso vinha um casal de meia-idade, homem e mulher de cabelos curtos e grisalhos, pele clara. Todos vestiam roupas bem simples.

- Elya, a família Launwaine está esperando para receber as bênçãos da colheita para sua fazenda! – avisou Jent, impaciente.

- Oh, me desculpe – disse a elfa um tanto encabulada, erguendo-se. – Até mais tarde, Kirinak.

- Até, Elya – a menina replicou, voltando a apoiar o queixo em seu punho direito.

Sua mentora se afastou com Meroah e as outras pessoas, desaparecendo atrás do prédio do santuário. Kirinak sabia bem que talvez nunca mais voltasse a vê-la...

Por fim levantou-se, suspirando. Tinha muito que fazer ainda.

Veio a noite.

As festividades haviam terminado e os peregrinos deixado os jardins do santuário. Para trás permaneceram apenas os pavilhões, agora vazios, e a sujeira no gramado, tudo a ser desmontado e limpo nos dias subseqüentes, antes que o inverno efetivamente se iniciasse. Nos muros, os guardas contratados por Jent permaneciam de vigia. Talvez alguém ainda tentasse se infiltrar no local com motivações escusas.

No interior do prédio, as sacerdotisas já haviam se recolhido, os corredores estando quietos e as luzes das velas apagadas. Alguém, porém, esgueirava-se por aquele ambiente, passos silenciosos, ainda que desajeitados. A carga que trazia consigo, retirada da dispensa, prejudicava seus movimentos, porém a julgava necessária à sua viagem: corda, bússola gnoma, cabaça, cuias, colher de pau, frigideira, pederneira, isqueiro, ampulheta, itens para curativos, frascos com antídotos para alguns venenos conhecidos, algum alimento... Aquele material com certeza faria falta às sacerdotisas, porém a fugitiva não poderia pensar nisso. Não queria voltar atrás em sua idéia, por nada.

Com a cabeça coberta por um capuz, Kirinak chegou ao jardim, sorrateira. Ao pescoço trazia o colar contendo o emblema da espada. Aproximando-se de um arbusto, colocou junto a seus ramos a chave da dispensa. Cedo ou tarde a encontrariam. Elya ficaria muito desapontada, mas... ela tinha de fazer aquilo!

Observou os muros. Os guardas ainda estavam neles, para seu infortúnio. Cinco ou seis, revezando posições. Um deles, mais próximo de sua localização no solo, embriagava-se com uma caneca de cerveja em pleno trabalho. Se Meroah soubesse disso...

Mas bem... ao menos isso devia prejudicar seus sentidos. Talvez Kirinak houvesse acabado de encontrar o ponto ideal para sua fuga.

Engatinhando entre as plantas e tendas, a jovem clériga apanhou a corda. Numa de suas extremidades amarrara um peso de porta, feito de metal, que também retirara do interior do santuário. Deveria servir. Teria de arremessá-lo até o alto do muro, e então, com a corda fixa, subir rapidamente. Felizmente, Kirinak possuía certa força advinda dos treinos e exercícios que Elya lhe havia proporcionado, em segredo, ao longo dos anos, a pedido da própria garota. Confiando em sua capacidade, arremessou o peso, segurando a outra ponta do fio...

O objeto metálico voou pela noite, subindo... e, para surpresa da fugitiva, por pouco não passou por cima do muro, indo parar na rua. Ela tinha mais força do que pensava! O peso se fixou numa fresta de um dos beirais, firme o bastante para que Kirinak conseguisse escalar. O barulho do ferro se chocando com as pedras, no entanto, ecoou pelos arredores, chamando a atenção dos guardas, incluindo aquele que bebia.

- Hic! O que foi isso?

Trôpego, derramando cerveja da caneca conforme andava, o vigia chegou mais perto de onde pousara o peso com a corda... Não percebendo que, do lado de dentro do santuário, uma garota usando capuz, mordendo os lábios, forçava os pés contra o muro tentando ascender o mais rápido que podia. Saltava, empurrava, agarrava... E, com muito custo, conseguiu chegar ao topo, no momento em que o homem bêbado, de costas para si, examinava abaixado o peso preso ao cabo recém-utilizado.

- Hum, que artimanha será esta? – indagou ao vento, em tom alegre.

Em silêncio, Kirinak botou os pés sobre o muro e tentou se deslocar com o mínimo possível de som. Lá embaixo, do outro lado, já podia ver a rua, com a promessa de liberdade e de abandono total daquela vida odiosa que levava...

- Hei, você aí, pare! – bradou uma outra voz, mais distante.

Outro guarda a descobrira. E, em meio à confusão, o vigia beberrão voltou-se para trás, deparando-se de súbito com a menina encapuzada pálida como cera.

- Q-que isso? – gritou, assustado.

- Calma, calma, eu só... – oscilou Kirinak, trêmula, erguendo as duas mãos como para se proteger.

- Você, espere...

Atrapalhado devido ao álcool que lhe subira à cabeça, o sentinela tentou avançar sobre a jovem, para agarrá-la pelos braços, mas pisou em falso, perdendo o equilíbrio. Para piorar a situação, Kirinak tentou ao mesmo tempo esquivar-se do adversário e saltar do muro e, com o movimento desajeitado do outro, acabou nele esbarrando, empurrando-o...

Ela assistiu com horror à queda do homem rumo às pedras da rua, este soltando um berro abafado antes de colidir de costas com o solo, o som de suas costelas se partindo e a cabeça se espatifando, com uma poça de sangue se formando ao redor da nuca, fixando-se para sempre na mente da sacerdotisa renegada.

- Caiu, o Jereky caiu! – um outro vigia gritou.

- Aquela garota o empurrou, ela o matou! – sentenciou alguém que presenciara o ocorrido mais de perto.

Não, fora um acidente! Aturdida, Kirinak focou-se em apanhar de volta sua corda. Tentou puxar o peso de metal preso na fresta do muro, mas não pôde retirá-lo, estava emperrado. Olhando de novo para o lado de fora em meio aos brados dos vigias e às luzes que se acendiam no santuário, a clériga então viu que poderia utilizar aquilo a seu favor. Puxando de forma veloz parte da corda ainda pendendo sobre o jardim, passou-a por cima do topo do muro e, agarrando-a, saltou em direção à rua. Após dois metros de queda, parou no ar, pendurada pelo cabo. Puxou-o mais: desceu mais dois metros. Já era uma altura segura. Soltou o fio e aterrissou de pé sobre o calçamento da via. Perto de si, o corpo do guarda que caíra do muro não se mexia – Kirinak evitou olhar para ele. Ofegante, desatou a correr, lágrimas nos olhos. Queria deixar tudo para trás, desaparecer da vista de todos...

E, adentrando um sombrio beco, foi tragada pela escuridão.

Sul. Ele rumava para o sul.

Com uma trouxa de tecido presa à ponta superior de seu bordão, Caleb Rosengard iniciava sua viagem pela Floresta Negra, dirigindo-se ao sul. Anuk o acompanhava, como sempre. Não se importaria de viajar durante os rigorosos meses do inverno: haveria sempre algum abrigo disponível a quem procurasse.

Rabesdin dissera ao druida para seguir sua intuição, e por conta disso treinara o ato de ouvir as mais distantes e espectrais vozes em sua mente durante todo o outono. Passara semanas meditando isolado, pedindo iluminação a Wella e aos demais deuses. Até que, dias antes, ouvira uma voz misteriosa, como que trazida pelo vento, sussurrar-lhe a palavra “sul”. Era o sinal que tanto aguardara. Imediatamente prepara-se para viajar até o sul de Behatar. Talvez encontrasse as respostas pelas quais tanto ansiava.

Súbito, Caleb sentiu uma pontada gélida sobre seu nariz. Interrompendo a marcha e levando cuidadosamente um dos dedos até o local, constatou que um pequenino ponto branco caíra sobre si. O primeiro floco de neve. O inverno, cujo arauto era Northar, tocava sua trombeta. O ciclo da natureza, manifestado nas estações, seguia adiante.

- Vamos Anuk, temos um longo caminho pela frente...

O lobo se apressou e logo a dupla desapareceu por entre os pinheiros, que eram aos poucos tingidos na cor alva...

“Sábio é aquele que desafia os obstáculos

e segue acima de tudo o ímpeto de seu

próprio coração”

–Tyrar de Bashein, aprox. 1560 ACD.