“Então vi uma estrela cair do céu na terra. Foi-lhe dada a chave do poço do abismo. Ela abriu o poço do abismo, e dele saiu fumaça como de uma grande fornalha” Apocalipse 9,1-2

PRÓLOGO

13 de dezembro de 1713

O céu escuro e sem estrelas evidenciava a lua vermelha que tomava o horizonte. Toda a terra descoberta e o grande lago refletiam a luz fantasmagórica que vinha do universo. Ali, estirado no meio da terra barrenta, encontrava-se um ser que não era humano. Das suas costas saiam chamas e seus olhos eram brancos e assustadores. Qualquer criatura que se aventurasse a passar ali naquele momento seria devidamente espantada com o horror que emanava do ser no chão. Mas esse ser tinha um nome, Irriel, e por mais que ele não fosse humano, sua natureza o obrigava a viver na terra por toda a eternidade, vivendo o pior dos castigos para um ser celestial. O castigo que só os pecadores pagavam e já era o suficiente. Perder a proteção e o reconhecimento divino era tudo o que um anjo não queria, mas Irriel merecia aquilo, ele merecia padecer no lugar onde ele mesmo ajudou a apodrecer, ele merecia viver com o povo que corrompeu. E ele sabia muito bem disso.

Irriel sentia pela primeira vez em sua existência a dor. Suas costas ardiam com as chamas que consumiam suas majestosas asas e seus olhos estavam, finalmente, tomando uma cor que não fosse o branco, ele parecia mais com um humano a cada momento. Em seu corpo nu começava a surgir símbolos que marcavam um traidor em Shamayim¹, seu antigo lar. Tudo era como em um espetáculo de mágica. Aos poucos as chamas se apagaram e a lua voltava a sua cor habitual. O anjo recém caído estava desmaiado no meio do nada, implorando inconscientemente por clemência divina, mas nem mesmo a bondade do Criador poderia se aplicar a um traidor.

Três dias após a queda, Irriel estava começando a se recuperar. A dor ainda existia, mas não era tão insuportável quanto antes. No céu brilhava o sol que forçou os olhos dele a se acostumarem com a claridade repentina. No lugar onde antes se localizavam as asas, somente o sangue seco se destacava. E em seus braços as marcas de traição estavam nítidas, as marcas que o acompanhariam para sempre. Tentou se levantar, contudo se espatifou no chão. Em Shamayim o uso das pernas não era comum, voar era a forma de locomoção mais fácil e rápida. Tentou de novo e se sentiu como os bebês que ele observava durante suas missões, cambaleando e tropeçando em tudo. No entanto, a única coisa que não fora retirada dele era a capacidade de adaptação, ele sabia se virar muito bem em todos os ambientes.

Nu e sem noção de onde estava o anjo caminhou pela grande clareira à procura de algo ou alguém para pedir ajuda. Foi até o lago e se banhou, limpou todo sangue e fluidos que estavam grudados em sua pele clara. Na outra margem do lago um grande animal saciava a sede, Irriel o observou curioso. Percebeu que ele estava indo embora e decidiu que iria o seguir. Desta forma, poderia encontrar um vilarejo para se abrigar. Caminhou tempo o suficiente para desistir, mas viu que uma aldeia se formava em sua frente. Crianças corriam por todos os lados e mulheres faziam trabalhos domésticos. Ele se aproximou utilizando as últimas forças e caiu nos pés de uma jovem, que o encarava assustadíssima com sua nudez.

O anjo caído Irriel acordou com uma anciã limpando suas costas. Ela retirava algumas folhas de dentro de um pote e depositava na ferida em V. Vez ou outra balbuciava frases sem sentido e repreendia alguns de seus companheiros quando estes adentravam a cabana. A senhora agia com muita cautela e sua aura transmitia certa sabedoria que intrigava qualquer um. Irriel deixou-a terminar o trabalho e tentou se levantar.

— Acalme-se — ela disse com sua voz áspera.

— Quem é você? — ele perguntou cuspindo o idioma que nunca tinha falado.

— Eu sou a Curandeira — a mulher disse com paciência.

— Não necessito de sua ajuda, mulher — ele falou em tom de insulto e levantou. Não demorou muito para que caísse com o rosto no chão.

— Não deve tratar-me assim — ela disse o ajudando a levantar e o colocando na mesa que servia como cama — Você seria um homem morto sem os meus trabalhos.

— Homem? — ele riu da palavra dita — Sou mais do que um homem.

— Você não é desse mundo — ela falou e foi até uma bancada onde um livro estava aberto em uma página — Este livro caiu três dias antes de você aparecer aqui. Sua imagem está nessa página — ela apontou para uma pintura feita de carvão que representava exatamente o rosto do anjo. Abaixo a palavra TRAIDOR era destacada — Quem é você?

— Não sou daqui — respondeu — Eu preciso desse livro. Me entregue e não a matarei.

— Não precisa matar-me — ela falou fechando o livro e o entregando — Pode ficar com ele, aqui diz que é para Irriel. Esse é seu nome?

— Esse é meu nome — ele disse e agarrou o livro. Na contra capa uma mensagem fora deixada, a letra estava tremida e a vibração deixada era de nervosismo e medo.

Irriel,

Vingue-se por seus irmãos

Nunca se esqueça de mim!

Merl

A simples mensagem dizia tudo que ele precisava. Com aquele livro as chances de se vingar eram muito maiores, os conhecimentos registrados ali serviriam para nunca se esquecer do seu novo propósito, se vingar daqueles que o expulsaram de Shamayim. Merl, que era sua grande amiga e aliada, certamente já teria sido executada por tê-lo ajudado. E com seus irmãos não seria diferente. A curandeira pigarreou para chamar atenção.

— Você sabe a gravidade disso tudo? — ela perguntou. Aquela anciã sabia muito mais do que qualquer outro humano, o seu olhar era misterioso.

— O que sabe mulher? — Irriel perguntou.

— Sei que desafiou o Criador, é um amaldiçoado — ela falou —Sua maldição é infinita!

—Preciso de ajuda — ele falou conseguindo se manter em pé pela primeira vez desde que chegou ali — Eu sou inocente. Fui acusado injustamente, eu não fiz o que disseram que fiz...

—O livro diz que você traiu Shamayim — era a primeira vez que Irriel escutava um humano chamando Shamayim pelo verdadeiro nome — Induziu os humanos a pecar e se infiltrou no Trono, onde passou a enviar informações para aquele que não gostamos — ela apertou os olhos.

—Fiz isso para nos proteger — ele argumentou — Não precisamos deles — Irriel apontou para cima.

— Pobre criatura — a mulher disse — Não sabe o que diz.

A Curandeira pegou uma peça de roupa e entregou a ele. Depois deu a volta e parou em frente ao anjo pecador.

— Vista-se e parta daqui. Não precisamos de desgraça — ela suspirou e o encarou nos olhos — Mas antes preciso dizer, sua amiga está viva.

— O quê? — ele perguntou sem entender — Como sabe?

— Está no livro — ela disse e saiu da cabana deixando Irriel sozinho sem saber para onde ir.

Aquele era o livro de Hayim. Tudo que acontecia em Shamayim era transcrito para aquelas páginas automaticamente. Então o que ele devia fazer era esperar algo interessante acontecer para saber como agir. O fato de Merl não ter sido executada o aliviou. Ele abriu o livro e viu que na última página escrita à imagem dela estava pintada, logo abaixo a palavra PERDOADA estava grifada. Mas diferente dos relatos habituais que exibiam os mínimos detalhes, o de Merl só continha a informação de que ela havia sido perdoada. Por que não escreveram o que aconteceu com Merl?

Mas de repente uma frase foi se formando na folha envelhecida:

Enviada para Eretz²

Irriel arregalou os olhos e se assustou com a notícia repentina. Rapidamente ele percebeu que não estava sozinho em Eretz, Merl também estava ali.