20 de novembro de 1713

O reino de Shamayim estava passando por sua maior tormenta, os anjos do Trono discutiam como acabar com a guerra que os impediam de trazer a paz a eles e a humanidade. Irriel, o segundo soldado do Legado de Maraim, insistia em dizer que a guerra seria a forma mais rápida de vitória dos anjos. Mas ele era um dos poucos a pensar assim, do seu lado Merl, anjo da guarda de quarta ordem do legado de Maraim e Lukiel, sexto soldado do Legado, agiam com indiferença, embora também acreditassem no resultado positivo da guerra contra Sheol³.

—Temos que terminar com isso logo — O chefe gritou para centenas de anjos que se reuniam no grande salão de Shamayim.

—Chefe — o anjo mensageiro chegou voando a toda velocidade — Temos um problema.

— Qual é o problema, mensageiro? — Irriel perguntou.

— Parece que Sheol sabia dos nossos planos, acabamos de receber isso — ele levantou um pergaminho com apenas duas linhas escritas — Uma proferia que já foi conjurada — todos os anjos arregalaram os olhos — “E da sétima virgem nascerá o Salvador, que levará a batalha dos tronos ao fim ou ceifará com os perdedores”.

— O que é isso? — o chefe arrancou o pergaminho do mensageiro — E da sétima virgem... Apenas um anjo do alto escalão poderia conjurar uma profecia como essa. Qual de vocês cometeu essa afronta?

Ele olhou para os dez anjos que poderiam conjurar a profecia e parou os olhos brancos em um. Irriel. O soldado que agia por conta própria.

— Fui eu — Irriel deu um passo à frente — Fui convencido pelo Reino de Sheol, os demônios garantiram clemência a mim e a minha família...

— Traidor — o chefe gritou e todos os anjos fizeram coro — Você queimará no fogo eterno.

— Ele merece um julgamento — Merl gritou — Ninguém pode ser condenado sem um julgamento.

Alguém batia no meu rosto com delicadeza. Fiquei zonza, mas abri os olhos.

— Saraí, acorde — era Merl.

— O que foi? Irriel voltou? — perguntei grogue pelo sono.

— Não — ela falou e sentou na minha cama — Eu ouvi você dizendo umas palavras enquanto dormia...

— Eu tive um sonho estranho. Estava em um grande salão e... — falei, mas percebi que aquilo poderia não ser um sonho.

— Não é um sonho. É como uma lembrança não vivida — ela falou.

— Como assim? — perguntei.

— De alguma forma você descobriu o motivo de ser tão importante — ela falou — Seu subconsciente te levou ao dia em que tudo isso começou. Você se lembra das palavras que o mensageiro disse?

— E da sétima virgem nascerá o Salvador... Não me lembro do resto — falei limpando os olhos para espantar o sono.

Que levará a batalha dos tronos ao fim ou ceifará com os perdedores — ela completou — É aí que você entra minha querida.

— Eu sou a sétima virgem? — perguntei assustada com essa pergunta. Merl sorriu.

— Não Saraí — ela suspirou como se preparasse para dizer algo horrível — Você é o Salvador.

Levantei rápido demais e senti aquela tontura de quem faz movimento brusco. Ajoelhei-me no chão e fiquei assim por alguns minutos. Salvador? Eu, Saraí, Salvadora de alguma coisa? Isso só pode ser um sonho, eu vou acordar e tudo voltará ao normal.

— Não é um sonho — Merl disse e percebi que ela poderia ler mentes — Você não deve se assustar.

— Eu... Não... Vou... Ser Salvadora de nada — falei e levantei tonta — O que fizeram com minha vida? Eu só queria casar, ter filhos e ser feliz...

— E você será feliz, mas antes terá que lutar por sua gente. Da mesma forma que luto pela minha.

— Minha gente? Você fala dos humanos? Os mesmos que me maltrataram quando eu era criança? Os mesmos que fazem centenas de maldades todos os dias? Eu não posso fazer isso. Não por eles!

Que tipo de coisa era aquela? Lutar pela humanidade não era meu plano de vida, na verdade se eu pudesse acabar com ela faria sem pensar duas vezes.

— Não pense isso — Merl disse.

— Saia da minha mente, sua... — gritei e minha mãe bateu na porta do meu quarto.

— Filha? Tudo bem aí? Com quem está falando? — mamãe perguntou preocupada.

— Não é nada, mãe. Só estou cantando — menti e ela acreditou.

— Vá dormir querida — ela falou e voltou para o quarto.

Merl estava parada dentro do meu banheiro. Ela saiu de lá e falou com a voz calma:

—Saraí, eu sei que esse destino é difícil, mas essa é a sua missão.

— Eu preciso ficar sozinha — falei — Saia daqui!

Merl se transformou em cachorro e eu abri a porta para que ela saísse do meu quarto.

— Sara, você viu a Vênus? — minha mãe gritou para mim — Ela não está aqui.

— Ela deve ter saído para dar um volta — falei indiferente — Não se preocupe, ela foi criada na rua.

Minha mãe voltou ao seu trabalho. Eu estava montando os vasos de flores para um casamento. Resolvi não ir trabalhar na lanchonete por uns dias, então minha mãe me levou para ajudá-la na floricultura. De alguma forma eu tentava me esconder naquele trabalho chato que era organizar flores em vasos ornamentados, mas eu sabia que eu não podia me esconder daquele destino horrível.

A mãe que eu nunca conheci estava predestinada a gerar uma criança que salvaria o maldito mundo. Eu sou essa criança. Não faço ideia de como decidir, se devo ajudar os anjos. Não sei o que fazer...

— Sara — minha mãe gritou quando eu quebrei um dos vasos do casamento — Esse vaso foi bem caro.

— Desculpe mãe, estou distraída — falei e larguei os vasos.

— O que aconteceu querida? — minha mãe sempre sabia quando eu estava mal. Ela dizia que era a energia do universo que a avisava quando alguém estava na pior. Diana, minha mãe, era uma hippie assumida, ela sempre foi a mais alegre e seguia a filosofia do “paz e amor” com veemência. Meu pai, Jorge, era um eterno careta, trabalhava na mesma empresa há vinte anos e gostava de tudo muito certinho. Quando os conheci, achei-os bem estranhos, mas depois descobri que eles eram tudo que eu precisava.

— Nada de importante — falei desanimada.

— Sabe de uma coisa? Por que você não volta para casa e descansa? Você pode me acompanhar ao casamento mais tarde. O que acha?

— Tudo bem — falei e peguei minha bolsa — Te vejo mais tarde então.

Saí da floricultura e peguei um ônibus até minha casa. Não queria mais sair sozinha por essas ruas perigosas.