WYNLLA – alguns anos antes

- Oh Wynna, deusa da magia, que os teus caminhos nos levem a uma grande aventura. Permiti que meus dons sejam usados com louvor em teu nome...

- Valyria. Estamos prontos.

Valyria ergueu a cabeça de suas preces e observou Dexos, o paladino do grupo, com sua armadura prateada e reluzente. O símbolo de Khalmyr, o deus da justiça, brilhava fortemente em tom dourado impresso em seu peitoral.

- Quem se prontificou para essa missão? – perguntou ela erguendo-se do altar e aproximando-se do homem com a leveza de suas vestes élficas.

- Teremos Rashira como nossa batedora, os irmãos Salvatore como frente de combate, Elic como arqueiro, dois aprendizes da escola arcana e, é claro, você como nossa arma secreta. – riu Dexos na última frase e segurou uma mecha do cabelo ruivo da elfa.

Ela levemente respondeu o sorriso revirando os olhos, mas logo se lembrou de um detalhe.

- Lucinda não vai? Não sou suficiente para substituir uma clériga de Lena.

- É perigoso demais para Lucinda. Não temos como protegê-la.

- Não gosto disso...

- Valyria. – cortou Dexos e segurou o rosto da elfa com cuidado – A missão é perigosa, mas é simples. Vai ficar tudo bem. E Lucinda já fez um bico daqueles quando eu disse que ela não iria, não preciso que você faça também.

As bochechas da elfa coraram levemente e ela desviou o olhar se soltando do paladino. Valyria nunca entendeu porque ela agia tão diferente dos demais elfos. Sua mãe era tão séria e inexpressiva, precisaria um exército de gobblinoides para fazê-la ao menos levantar uma sobrancelha, mas Valyria não. Totalmente contra a natureza élfica, era mais irritável e impulsiva. Sorria até demais para o gosto de alguns como Elic, o arqueiro arcano que sempre os acompanhava, ou corava de menos para o gosto de Dexos.

- Ainda acho pouco inteligente essa formação. Aprendizes sempre trazem problemas e os irmãos Salvatore sempre acabam desobedecendo uma ordem ou duas. Você sabe que eu não gosto quando fazemos as coisas sem pen- Valyria tentou manter o raciocínio do argumento, mas logo se perdeu na sensação dos lábios de Dexos que se afastou em seguida sorrindo e levando-a da sala.

- Vamos Lyri. Não vamos perder mais tempo.

******

Garnel observou o grupo de aventureiros se afastar com certa preocupação. A elfa podia ver o cabelo vermelho de sua filha revoltando-se ao vento forte enquanto seguia ao lado do paladino de Khalmyr, e uma sensação de pesar ocupou seu coração. Os ventos estavam agitados. Os ventos não pareciam amigáveis. Algo estava errado.

- Minha senhora Garnel. – chamou um dos servos. – O conselho de Wynlla irá se reunir agora.

Garnel suspirou levemente e dispensou o servo. Se algo estivesse realmente errado, Valyria teria que resolver sozinha, ponto final. Ao virar-se para a porta, Garnel passou por um dos espelhos do aposento e por um instante seu sangue gelou. Virou-se assustada, mas nada havia lá.

- Wynna, por favor, que isso seja uma de suas peças. – murmurou a elfa. – Por um segundo eu pensei ter visto...

- Visto quem?

O coração da conselheira deu um salto, mas seu corpo se manteve paralisado. Aos poucos girou para observar o dono daquela voz. Cabelos negros, olhos negros, roupas negras. Sim, era ele em pessoa.

- O que faz aqui?

- Não vai nem se despedir de Lyri? Que mãe fria você é. – resmungou o visitante pegando alguns enfeites sobre a mesa e sorrindo com escárnio.

- Não me venha dizer que tipo de mãe eu sou. Eu criei Valyria muito bem. Sozinha e sem a sua ajuda. – respondeu Garnel erguendo o queixo – Ela é uma clériga de Wynna dedicada e uma teurgista magnífica. Não tem nada de você!

- Hu hu hu. Acha mesmo que só porque Lyri se tornou uma elementarista do vento como você, ela não herdou nada de mim? Hu hu hu. Por favor, Garnel, você não costumava fazer piadas.

O visitante virou-se para a elfa e seu sorriso aumentou ao vê-la recuar. Ele aproximou-se até fazê-la encostar-se no espelho e colocou as duas mãos ao lado se sua cabeça, cercando-a.

- Não pense nem por um segundo que Valyria não é minha descendente, Garnel. Você sabe muito bem que os poderes dela não são os de uma simples elfa e eu não sou estúpido. – sussurrou o “elfo” olhando-a nos olhos e Garnel pôde ver as pupilas verticais se estreitarem. - Eu percebi, assim que pus os olhos nela, que você bloqueou parte de seus poderes. Ela já poderia ter se envolvido em trevas a muito tempo se não fosse por isso.

- Não vou permitir que minha filha se deixe envolver com a sua magia negra!

- Hu hu hu. Não cabe a você decidir. – disse ele e se afastou lentamente – Lyri é um predador como eu... é só uma questão de tempo.

- Fique longe dela!!!

- Assim como você ficou longe de mim, Garnel?

- Maldito!

- Hahahahahaha!

A elfa tentou alcançá-lo, mas o corpo do visitante se desfez em névoa negra em segundos deixando-a sozinha no aposento agora frio.

- Valyria... Oh, Wynna, por favor, proteja minha filha... dela mesma.

*******

- Isso não faz sentido, Dexos! Nós estamos aqui para cumprir uma missão que os beneficiará, porque não podemos atravessar pela cidade? – reclamou Valyria ao ver o paladino retornar aos cavalos.

- Não queremos trazer problemas ao povo do vilarejo, Lyri. Se falharmos em prender esses mercenários e eles souberem que o povo nos ajudou, não terá ninguém para protegê-los. – respondeu Dexos montando em seu cavalo.

- Dessa vez tenho que concordar com a ruiva. São bem mal-agradecidos! – murmurou o Salvatore mais novo guardando o machado e acompanhando o grupo.

- Não temos escolha então. Temos que dar a volta. – cortou Rashira antes que Dexos começasse com o sermão de “proteger os indefesos sem esperar recompensa” – Temos duas opções. A trilha ao norte é mais segura, mas vamos levar o dobro do tempo do que se atravessarmos a floresta.

- Ah, por favor, escolham a floresta! Não tivemos nenhuma animação desde que saímos de Wynlla! – resmungou um dos aprendizes.

- Isso é porque tivemos que escolher os caminhos mais seguros por conta de vocês. – respondeu Elic ríspido. O elfo não estava nem um pouco feliz com a presença dos novatos.

O paladino suspirou pesadamente ao ver a cena. Já fazia dias nessa mesma ladainha. Ele observou Valyria por um instante e pôde ver os olhos verdes da elfa, fulminarem os novatos com raiva. Por um segundo, ele mesmo hesitou. Jurava que tinha visto uma sombra negra em seus olhos!

- Dexos? O que houve?

- Hum... nada. Sinto desapontá-los, mas vamos pela trilha.

- Ah não... – murmuraram todos em uníssimo.

*******

- Esse é o meu turno Dexos. Por que está acordado? – perguntou Valyria ao sentir o paladino atrás de si.

- Eu... tenho algo para falar com você. E de qualquer forma, meu turno é o próximo. – respondeu o servo de Khalmyr hesitante.

Valyria olhou-o preocupada. Dexos não costumava hesitar. Geralmente tinha tudo tão teimosamente definido na cabeça que chegava a ser impossível fazê-lo mudar de ideia.

- O que houve?

Ele se encostou à mesma árvore que ela se sentara e apoiou a espada longa ao seu lado. Passou a mão no cabelo castanho uma ou duas vezes e por fim coçou a barba rala de leve. Ele parecia... nervoso.

- No próximo verão ocorrerá o torneio justo entre as ordens de Khalmyr, você sabe. – disse ele e observou Valyria de soslaio. – Eu preciso comparecer.

- Eu sei que precisa. Porque está tão nervoso? Está com medo de perder? – riu a elfa tentando provocá-lo, mas ele apenas balançou a cabeça.

- Lyri... Eu não vou poder voltar para Wynlla depois do torneio. – disse ele de repente, como se soltasse uma bomba e esperasse ela explodir.

Valyria perdeu a respiração por um instante. Ignorou o aperto no coração e manteve a face inexpressiva, de uma forma que teria orgulhado sua mãe.

- Por que não?

- Arton não está bem. Estamos em uma época com poucos guerreiros e menos paladinos ainda. As Ordens de Khalmyr irão precisar de todos os seus servos para manter a paz de agora em diante. – disse ele calmamente, não duvidando nem condenando o dever que possuía e isso irritava Valyria. Obedecer cegamente. Essa era a única coisa que ela odiava nele. – Recebi a carta de convocação há alguns dias, mas já tínhamos aceitado essa missão e eu disse que honraria com a minha palavra. Eles me deram até o torneio para voltar e me apresentar.

O silêncio se espalhou pela clareira fria. Era possível ouvir o crepitar da fogueira quase tão distintamente como o ronco do Salvatore mais velho. Valyria não sabia o que dizer. Havia algo que deveria dizer? Ele não mudaria de ideia, disso ela sabia.

- Valyria... vem comigo. – disse Dexos de repente quebrando o silêncio e deixando-a confusa com as palavras ditas.

- Para o torneio?

- Hum, também... Mas não só para ele. Vem comigo, Lyri... Casa comigo.

Valyria ficou pasma por um segundo. Estava tentando raciocinar toda aquela situação, mas nenhuma frase conexa era formada em sua mente. Ela amava o paladino, era verdade, mas seu amor era tão profundo como um elfo poderia amar. Para aqueles que possuem séculos de vida pela frente, amar um humano era como amar com prazo de validade e isso a assustava bastante.

- Dexos... eu...

- Elic vai me odiar pra sempre se eu levar você, eu sei. Sua mãe vai dizer que é loucura. Que você é uma elfa com um futuro brilhante e eu sou só um humano que provavelmente vai morrer em algum combate, mas... eu te amo Lyri. Quase mais do que amo Khalmyr! Por favor, casa comigo.

O paladino segurou suas mãos de leve e seus olhos se encontraram. O ar de Valyria faltou por um instante e ela se perguntou se seria capaz de não ir com ele. Quando as palavras lhe vieram a mente, ouviu um pequeno barulho ao leste de onde estavam e ambos se preparam para o que viesse. Mas, ao prestar melhor atenção, perceberam dois semblantes encapuzados se afastando do acampamento. Dois semblantes conhecidos.

- Para onde diabos esses dois estão indo? – murmurou a elfa irritada.

- Provavelmente para a caverna no pé da colina.

Dexos e Valyria quase pularam sobre as árvores. A espada do paladino voou em direção ao pescoço do recém chegado, mas foi desviado com o arco em suas mãos.

- Elic! O que deu em você? – perguntou o paladino irritado com o susto.

- Estou fazendo o trabalho de vocês. – cortou ele de mal humor como sempre – De quem é o turno de vigia mesmo?

- É meu. – disse Valyria quase pulando no pescoço do arqueiro. Não gostava nem um pouco de ser repreendida, muito menos por Elic.

- Então devia parar de discutir seu “futuro cor de rosa” e prestar atenção nos moleques. – disse ele com um olhar frio quanto à resposta dela – Eles vieram a viagem inteira murmurando sobre um mapa que ganharam e sobre como ficariam milionários. Essa deve ter sido a verdadeira razão para eles terem perturbado tanto para pegar o caminho pela floresta.

Antes que Dexos pudesse se zangar com as palavras do elfo, seu senso de proteção o alertou quanto aos aprendizes.

- Você devia ter me avisado! Existe uma razão para eu não ter escolhido a trilha da floresta. – reclamou o paladino voltando para o centro do acampamento e acordando os demais. – Rashira, você ainda tem os mapas das trilhas?

- Hu? Ah, sim. – disse ela acordando e pegando o mapa – Mas você mudou de ideia? Nós já conversamos sobre esses perigos.

- O que está havendo? – perguntaram os irmãos Salvatore acordando.

- Os moleques estão dando uma de aventureiros. – murmurou Elic.

- O que?!

- Aqui está. A caverna no pé da colina. Eu estava certo. – disse Dexos apreensivo fazendo Rashira levantar-se de repente e correr até ele.

- Mas essa caverna é...

- Sim. Eles foram direto para um covil de dragoas.

*********

- Você tem certeza que esse mapa é confiável? – murmurou um dos aprendizes nervoso ao desviar de mais um galho.

- Claro que deve ser! Você não viu a cara daquele elfo quando percebeu que o perdeu? Pelo que eu percebi, ele estava querendo vender por um bom dinheiro!

- Não sei Kaleb... Ele era meio... sinistro. Não é comum ver um elfo todo vestido de preto...

- Calado! – sussurrou Kaleb e se agachou em um arbusto próximo. – Lá está. Nossa mina de ouro.

Os dois se prepararam. Em segundos ambos estavam totalmente invisíveis aos olhos humanos. Rapidamente começaram a se esgueirar na caverna escura prestando atenção em qualquer movimento. Vazio.

- Isso está fácil demais... – murmurou o mais novo.

- Melhor pra nós! Veja!

Os olhos dos aprendizes, que nunca haviam antes estado em jornadas sérias ou lucrativas, quase saltaram das órbitas ao verem o brilho dourado iluminado por parcas tochas. Uma pilha de ouro e joias! Um colchão de tibares forrando o chão!

Sem pensar, os dois correram em direção ao tesouro, sem nunca tirar suas magias de insensibilidade é claro, mas esquecendo um pouco de disfarçar o som de seus passos. Logo estavam lá! Estavam milionários!

- Olha SSSalac... – murmurou uma voz arrastada e venenosa fazendo os jovens congelarem numa tentativa de silêncio. – Um presssente do lorde negro.

- Hu hu hu. SSSim... – disse uma segunda na escuridão. – Nossso jantar... Masss... eu pensssei que teriam maisss...

- Vindo... O lorde não mentiu dessssa vez.

*********

- EU DISSE QUE APRENDIZES SÓ TRAZEM PROBLEMAS! – gritou Valyria ao desviar de um arpão lançado em sua direção por uma dragoa magrela.

- Não é hora Lyri!! – respondeu Dexos decepando uma das quatro mulheres serpentes que o cercavam. – Temos que salvá-los!

O grupo estava cercado. Resgate era uma das poucas missões em que Dexos era um péssimo líder! Assim que os gritos dos aprendizes ecoaram pelas cavernas, o paladino jogou fora todo o elemento surpresa desesperado em salvá-los. Logo todos estavam enfrentando três dezenas de dragoas sem quase nenhum planejamento.

Valyria estava furiosa. Não só pela situação, mas também pela reação das dragoas. Elas pareciam preparadas para a chegada deles e muitas haviam se escondido no precipício em frente à caverna. Uma fissura escura e sem fundo que se estendia na base da colina de onde surgiram de repente, pegando-os pelas costas.

Os irmãos Salvatores jogavam-se em um combate corpo a corpo enquanto tentavam manter as dragoas longe de Elic que disparava flechas com habilidade. Rashira e suas adagas quase não se via e Valyria mantinha os poderes dos companheiros ao máximo não podendo se concentrar em atacar pois agora protegia os dois aprendizes a suas costas.

- O QUE, POR WYNNA, VOCÊS TINHAM NA CABEÇA?! – gritou ela com um olhar furioso para os jovens e desmembrando uma dragoa próxima com suas lâminas de vento.

Kaleb e o colega se encolheram ainda mais. Mal tinham conseguido escapar da caverna. Se não fosse pela chegada drástica de Dexos, com certeza estariam em redes agora. Óbvio que estavam agradecidos, mas ainda assim, Kaleb não sabia a quem temia mais, as dragoas ou a fúria da maga da qual jurava que vira os olhos ficarem negros por um segundo.

- A questão é exatamente essa. Eles não têm NADA na cabeça! – disse Elic ao finalmente conseguir se juntar a Valyria e criar um cerco nos aprendizes. Sua calma élfica, diferente de Valyria, só se alterava ao vislumbrar o ódio em seus olhos.

Eles estavam cercados. Valyria nunca se sentira tão presa. Ao ser forçada a proteger esses jovens, ela automaticamente não podia se dar ao luxo de atacar com todas as forças, nem lutar com as armas que a deusa da natureza lhe ofertava. Se não fossem aqueles jovens, o grupo simplesmente poderia lutar, esquivar ou até escapar dali.

“Se não fossem esses fracos, não é?” Valyria virou a cabeça de repente procurando aquela voz. Nada! Mas o que... “Mas então, porque protegê-los?São apenas rebanho, admita.” Valyria tentou afastar o som. Aquela voz... aparentemente ninguém a estava escutando! Devia ser uma espécie de ilusão! “Não. Não é ilusão. Vamos Lyri, querida, admita. Você os odeia por serem fracos. Você não se importaria se morressem agora!”

- Valyria, cuidado!

O grito de Elic soou segundos antes de um arpão ser lançado sobre ela. Tarde demais para desviar. Valyria se preparou para dor quando sentiu seu corpo ser jogado para o lado e o som de carne rasgada ser ouvido muito próximo. Ao erguer o olhar, ela pode ver o arpão trespassado no tronco do arqueiro.

- Elic, o que você... Vocês dois! Não se afastem!

Valyria amparou o arqueiro com dificuldade, ele precisava de cura e rápido, mas é claro que sua atenção teria que ser desviada pelos dois aprendizes que corriam em direção à fissura, no mínimo com a intenção de saltá-la e fugir.

O resto aconteceu rápido demais. Uma dragoa voou nos aprendizes, um deles tombou com um arpão sobre as costas, o outro escorregou para a fissura beirando a queda. E naquele segundo, a elfa sentiu algo que nunca pensou que sentiria. Satisfação.

Que morram os fracos que não podem se defender sozinhos não é?” Não. “São rebanho.” Não. “Você é rebanho?” NÃO!

A satisfação foi substituída por raiva e logo por ódio quando viu Dexos se jogar na frente do aprendiz pendurado e segurar seu braço com dificuldade dando as costas para a luta. Ele estava indefeso. Indefeso para a dragoa que agora ia em sua direção!

- DEXOS! SOLTE ELE! – gritou Valyria sem poder se conter.

O paladino virou assustado e também irritado com fala da maga. Ele jamais soltaria o rapaz, por Khalmir! Mas então ele viu algo preocupante, os olhos de Valyria emanavam um ódio que ele nunca vira. Negros e revoltados. Ela parecia segurar o cetro em forma de dragão com toda a força que possuía e este, por todos os deuses do Panteão, estava emanando uma energia gigantesca. Uma energia que parecia selar a si mesma.

Mais dragoas surgiram. Rashira gritou. Os Salvatores pararam de rugir. A cabeça de Elic tombou no colo de Valyria. E Dexos...

*******

Valyria podia ouvir o grito de Rashira abafado. Sua consciência voltava aos poucos e mesmo com a visão ainda turva conseguiu ver o altar ao qual a amiga estava presa. Uma pedra larga sem muitos acabamentos em frente a figura de uma estátua sinistra da deusa serpente. Uma oferenda. Iriam sacrificá-las em oferenda.

Olhou ao redor com vã esperança de encontrar os outros companheiros, mas não havia nada ali. Ela sabia. As dragoas só sacrificavam as mulheres.

As mulheres derrotadas você quer dizer.” Valyria ouviu a voz novamente. Só podia estar ficando louca! “Ah Lyri, estou decepcionado. Esperava mais de você. Mas é isso. Você vai virar rebanho de sacrifício.”

- Eu não sou rebanho! Quem é você e o que você quer?! – murmurou ela irritada.

Ah não é? E o que você é afinal? Presa nessas correntes só esperando a sua vez de ser morta? Eu não vi você procurando uma saída. Só seus amiguinhos mortos e, claro, os dois pirralhos. Você é uma fraca derrotada, então morra de uma vez!”

- Eu não sou fraca. Se eu pudesse ter lutado com todas as forças... Se eu não tivesse que proteger ninguém... Se aqueles pirralhos ao menos tivessem... – dizia ela engolindo as palavras na última frase. Não podia dizer aquilo! Dexos nunca a perdoaria!

Se aqueles pirralhos tivessem morrido logo de uma vez, não é?”

- Não, cale a boca.

Se Dexos não fosse um tolo de proteger essas criaturas fracas e inferiores.”

- Não...

“Se ao menos essa sociedade hipócrita parasse de tentar colocar em sua cabeça que é preciso proteger esses insetos quando na verdade eles nunca tiveram, nem nunca terão, chance entre os fortes!”

- ....

“É isso que você pensa não é? Vamos Lyri, admita. É isso que você pensa, é isso que você sente! Que todos esses códigos tolos só lhe tornam mais fraca! Você sabe a verdade.”

Valyria balançou a cabeça tentando afastar aqueles pensamentos. Mas... por quê? Porque afastá-los se ela mesma já os tinha carregado por tanto tempo?! Carregado e escondido. Escondido da sociedade “perfeita”, de bons e honrados aventureiros. Escondido, principalmente, de Dexos.

“Vamos Lyri! Nem mesmo sua deusa a obriga a seguir regras tão tolas! Wynna preza o uso da magia, não para o quê! Não é por isso mesmo que você a segue?! Porque aprecia seu poder sem regras?! Admita!”

- Wynna... minha deusa! – murmurou Valyria fazendo uma prece silenciosa. Era verdade! Tudo que aquela voz dizia era verdade!

As dragoas vieram em sua direção.

“O mundo deve ser dos mais fortes. Aqueles que não podem se defender que sejam tratados como meras presas que são! Essa é sua última chance. Prove que não é fraca.”

- Eu não sou. – disse ela vendo as dragoas a olharem com desprezo e sentindo seu ódio inflar no peito.

“Prove que não está no rebanho!”

- Já disse que não estou! – disse ela aumentando o tom de voz e forçando os braços amarrados de onde longas unhas se afinaram em seus dedos.

“Prove que não é uma presa!!!!”

- EU NÃO SOU! – gritou ela furiosa sentindo caninos longos em seus lábios e seu cenho se enrijecer em puro ódio. A energia ao seu redor emanava violentamente escurecida. Não era seu vento. Era algo completamente diferente! Algo mais poderoso!

As dragoas recuaram incertas quando os pulsos de Valyria arrebentaram as correntes. O ambiente ficou mais escuro, mas os olhos de Valyria só viam em vermelho.

“Então o que você é?”

- Eu sou um predador.

***********

- HAHAHAHAHAHAHAHAHA!

A risada do imenso dragão ecoava por toda a extensão das ruínas do palácio. Ele deitava sobre um colchão gigantesco de moedas de ouro e tibares, joias, armas, mágicas ou não, armaduras e estátuas...

- Ela ficará furiosa quando descobrir que o senhor armou tudo, meu lorde. - disse um rapaz de cabelos longos e negros sentado não muito distante do espelho por onde o dragão observava a jovem - Pensei que a quisesse do nosso lado.

- Essa criança? Não me faça rir ainda mais! – riu o dragão negro ao olhar o jovem que parecia um humano como qualquer outro – Ela não está nem perto de poder se juntar a mim! Não passa de um filhote que saiu do ovo agora. Talvez daqui a um século quem sabe.

- Então por que...

- Porque isso já estava sendo ridículo! – rugiu o dragão – Minha prole tem que respeitar o MEU sangue e ser forte! Não ficar perdendo tempo em bobagens como o amor. Hunf! Se eu permitisse que ela vivesse cercada de purpurina de Khalmir era capaz dela nunca despertar.

- Ou então ela mesma perderia a paciência e explodiria as duas ordens. – riu o jovem com sarcasmo.

- Talvez. Mas enquanto ela andar com aquele selo, as trevas não poderá tomá-la por completo. - disse o dragão pensativo - Garnel foi muito esperta em escondê-lo logo no fetiche de Valyria.

O jovem assistiu a garota ruiva refletida no espelho caminhar lentamente para fora da caverna. Tinha sangue em suas vestes e ela carregava o corpo inerte da humana batedora. Ele podia ver o cetro em forma de dragão brilhar preso a cintura da “elfa” enquanto as feições dracônicas sumiam de seu rosto, assim como as unhas se encurtavam.

- Ela é bonita.

- Oh sim. E vai ficar ainda mais quando abandonar esse corpo frágil.

**********

- Você, dentre todos eles é você que ainda está vivo? – perguntou a elfa entre dentes olhando a figura de Kaleb a algumas dezenas de metros abaixo de si, num rochedo mais largo da fissura.

- POR FAVOR, ME TIRE DAQUI!!! ME AJUDE! – choramingou o aprendiz segurando a perna em um ângulo estranho.

- Onde está o corpo de Dexos? – perguntou ela com frieza olhando a cena ridícula do garoto.

- ELE CAIU. NÃO TEM COMO ESTAR VIVO! AS DRAGOAS LHE TRESPASSARAM O PEITO E O JOGARAM. ASSIM COMO OS OUTROS! POR FAVOR!! EU NÃO QUERO MORRER AQUI! – chorou o rapaz.

- Então suba. – disse ela, ainda com o corpo de Rashira nos braços.

- O QUE?! EU NÃO POSSO! NÃO COM ESSA PERNA. NÃO TENHO FORÇAS! POR FAVOR, NÃO ME DEIXE AQUI!

Valyria estreitou os olhos em desprezo. O verme nem tentara de mexer. Com uma profunda mágoa no peito, que logo tornara-se raiva, ela sorriu.

- Certo, vou tirá-lo daí com uma condição. – disse ela se aproximando da beirada.

- QUALQUER COISA!

- Leve o corpo de Rashira para descansar com os outros.

- CERTO! ESPERE, O QUE?

Antes mesmo do jovem olhá-la novamente, Valyria lançou o corpo da batedora em sua direção. Em susto, o rapaz tentou segurar o peso, mas tudo que foi capaz com a perna ruim foi desequilibrar-se no rochedo que lhe mantinha a vida.

Kaleb despencou sumindo na escuridão.

- O mundo é para os fortes, moleque insignificante.

Em um último momento, Valyria se ajoelhou na beirada da fissura escura e infinita e rezou. Rezou a Wynna pela morte de seus companheiros. Rezou por sua vida. Rezou pelo caminho que seguiria agora.

Ao abrir os olhos, viu um brilho dourado ao seu lado. Um pequeno emblema que ela conhecia bem. O símbolo de Khalmir. Ela tocou o objeto sujo de sangue com cuidado. Sim, era o broxe de Dexos. Com uma súbita dor no peito Valyria guardou o broxe. Uma lembrança dele. Uma lembrança de como a bondade pode ser mortal.

********

- Valyria, você não pode ficar de luto para sempre. – censurou Garnel ao ver a filha observar o broxe de Khalmir sobre a cama cercada de livros – Não foi sua culpa. Quando você contou do ocorrido a ordem de Dexos enviou guerreiros para destruir o que restava do covil das dragoas e batedores para recuperar os corpos, mas você sabe que foi impossível chegar ao fundo. Não pode vestir preto para sempre!

- Não estou de luto, mamãe. Só passei a gostar do preto. – disse Valyria virando-se para ela e fazendo a conselheira arrepiar-se por um segundo com a semelhança que viu no olhar de sua filha com o dele.

- Não seja ridícula. Preto não combina com você. – disse Garnel com toda a compostura e calma élfica.

- Sério? Eu pensei que estivesse no sangue. – respondeu ela com um soriso petulante.

- Do que está falando? Onde conseguiu esse livro?! Isso é dos registros de Wynnlla! – disse Garnel um pouco alterada o que fez Valyria sorrir em conseguir tirar a calma da mãe.

- Por que nunca me contou sobre ele?

- Não sei do que está falando. – desmentiu Garnel voltando ao rosto estoico.

- Mas é claro que sabe. Eu não lhe contei, mas Elic deixou uma coisa para mim caso morresse. O que sinceramente é estranho, já que elfos vivem tanto. – disse ela calmamente se levantando e passeando pelo quarto exatamente com ele costumava fazer! – Mas foi então que eu entendi porque Dexos se incomodava tanto quando ele estava comigo e... bem, entendi outros segredos também. Não tinha me tocado o quanto ele era... velho.

- Valyria, tudo que fiz foi para o seu bem. – murmurou Garnel cedendo. Já estava claro o que Elic revelara. Não era a toa que ela sempre o mandara ficar de olho na filha e ele sabia o porquê.

- Claro. Me esconder que não sou uma elfa. Que sou um dragão.

- Meio-dragão.

- Certo... meio. Nem um, nem outro.

- Mas isso não muda nada. Você continua sendo a mesma! – disse a conselheira se aproximando da filha e logo foi interrompida pela batida na porta.

Garnel estava sendo convocada para o conselho e logo se despediu da filha, mesmo estando receosa. Assim que se retirou, uma enorme águia negra pousou na janela de Valyria. Ela trazia um estranho animal entre as garras e passou a devorá-lo avidamente. A moça agora totalmente vestida de preto exceto pelo elo prateado de Wynna andou até ela e coçou-lhe a cabeça limpando o sangue que escorreu de seu bico.

- A mesma é? Hu hu hu.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.