Herança

Capítulo 8


- Bem, aqui estamos nós. Puxa... nem me lembro da última vez em que vim até a casa delas.
- Você eu não sei, mas eu nunca vim. Nunca tive coragem.
- Querido... já faz séculos que vocês dois tem essa rixa. Já não é hora de esquecer isso não?
- Você esqueceria? Quando eu apareci aqui na Terra, lembra-se da bagunça que aconteceu?
- Não foi culpa sua. Elas apenas acharam que você era um ladrão. E tentaram te pegar.
- Sim, e Haruka tomou um belo banho na piscina, e depois ficou suja de Terra. E ainda a fiz escorregar no óleo daquele caminhão tanque... Porque você acha isso tão engraçado?
- Desculpe – ela tentou sufocar as risadas – é que realmente, vocês não começaram muito bem.
- E você ainda as convidou para serem damas de honra no nosso casamento. A propósito... nunca me disse como convenceu Haruka a se vestir de dama. Ela realmente ficou linda... de batom e tudo.
- Foi numa queda de braço. Eu ganhei...
- Lita, me lembre de nunca deixa-la muito nervosa...
- Seu bobo!
Ela o agarrou e o apertou firmemente, a ponto de algumas de suas costelas estalarem, beijando-o com força e paixão de adolescente. Ele prendeu sua língua no beijo, de uma forma que a pegou de surpresa. Ela não conseguia soltar a língua. Mas ela não queria mesmo. Ficaram assim por um minuto, dois, tres... as mãos de ambos passeando e brincando nas costas do outro... um dividindo com o outro a respiração com a companhia amorosa.
- Que tal fazerem isso lá na sua casa?
Nenhum deles demonstrou surpresa ou embaraço. Sohar já sabia que Anne estava na janela, e Lita não estava nem um pouco incomodada. Onde já se viu, ficar incomodada por alguém ver ela amando seu marido? Ficaram mais dez segundos assim e, finalmente, se separaram. Lita sorriu um pouco e usou o seu lenço para limpar a boca dele, toda lambuzada de batom – que ela só usava mesmo quando iam faer alguma visita, ou quando trabalhava no restaurante.
- Anne – disse Sohar – pode deixar a gente entrar? Haruka e Michiru pediram para eu vir até aqui falar com elas.
- E eu vim junto para garantir a fidelidade dele – completou Lita olhando para ele de lado. Mas era apenas uma brincadeira, ela estava na verdade curiosa com o convite delas.
- Não era para garantir que eu ia voltar inteiro? Ainda acho que ela está a fim de descontar tudo o que aprontei com ela.
- A rainha proibiu toda e qualquer luta entre nós, lembra? Fique tranqüilo.
A porta se abriu, e uma estonteante Anne os recebeu. Lita ficou com os olhos arregalados ao vê-la naquela micro saia. Quanto mais ela crescia, menos roupas usava. No entanto, ela sempre conseguia escapar de cruzar o limite da \"pouca vergonha\". Que inveja...
- Acho que você andou fazendo compras – disse Sohar olhando para ela. – está linda mesmo, e muito sedutora... AI!
- Calminha ai meu caro. Pode parar com este olho gordo. Você é casado, sabia?
- Não precisa me beliscar para lembrar. Mas lembre-se de que Anne gosta de ser olhada. Assim como você, quando usa roupas no mesmo estilo.
- Você usa? – perguntou Anne surpresa.
- Apenas em ocasiões bem especiais. Vamos seu casanova. Eu não vou aceitar ser trocada por uma mocinha, se bem que ela já está mesmo no ponto certo de brincar com a cabeça dos meninos. Da mesma forma que Allete...
- Nunca imaginei que vocês fossem tão... modernos assim – disse Anne impressionada – se fosse a Ray, ela já ia me obrigar a vestir algo mais decente.
- Eu aprendi, de uma maneira um tanto forçada – olhou para o seu marido – a não viver a vida ou determinar os gostos dos outros. Ainda assim, eu vou descobrir com quem a Joynah está namorando. Garanto!
- Não viemos aqui para isso – ele não estava disposto a continuar com a conversa, e isso era evidente pelo seu tom de voz.
Lita apenas sorriu. Ele com certeza já sabia quem era o partido de sua filha, e devia tê-lo aprovado, era a única explicação para não ter interesse em lhe contar. Só por isso na verdade, é que ela não vigiava ou pressionava Joynah. Se Sohar confiava nesta pessoa – seja ela quem for – era o bastante para ela.
Por enquanto...
- Onde elas estão? – perguntou para Anne.
- Lá em cima – respondeu ele – com Hotaru.
- Ah é... esqueci...
Era normal ela esquecer disto. Ele podia sentir o poder das sailors. Na verdade, podia sentir o poder de qualquer criatura, e reconhece-lo a distância. Mas era tão raro ele demonstrar isso, que normalmente ela se esquecia do fato.
- Podem ir subindo, eu vou dormir agora. Tenho aula amanhã.
Lita observou a jovem de quatorze anos andar pela sala até o estreito corredor que dava acesso aos quartos da parte de baixo da casa. Ela tinha um andar elegante, quase de modelo. Colocava um pé a frente do outro, o que forçava seu quadril a dobrar de forma reversa, para manter o equilíbrio do corpo – uma maneira educada de rebolar com naturalidade – já fazia tempo que ela tinha tentado ser modelo, quando tinha aprendido aqueles passos e outros truques interessantes.
Seu marido a puxou pela mão em sua cintura em direção as escadas. Lita aproveitou o trajeto para avaliar a ampla sala de estar. Muito bonita. Um piano quase no centro e, ao lado deste, um cavalete de pintura, que sem dúvida devia ser de Michiru. Não dava para ver o quadro que estava sendo pintado ali, pois não havia iluminação suficiente, mas dava para perceber cores brilhantes neste, algo raro para ela, em tempos em que estavam sob possível ataque. Geralmente ela usava cores mais sombrias, para expressar as terríveis premonições que ela tinha.
O carpete da sala era provavelmente fino, mas claro e com desenhos abstratos de cor negra. Os sofás que cercavam a lareira solar também. Muito aconchegante e um tanto vitoriana aquela parte da casa. De uma certa forma, lembrava o dojo que ela freqüentava regularmente, que tentava se manter o mais clássico possível, assim como o templo de Ray. Se não fosse pelo forno solar, ira achar que estava na casa que elas tinham no século XX.
Subiram as escadas largas lado a lado, e, ao chegarem lá em cima, se depararam com uma segunda sala de estar, muito parecida com a primeira, mas esta tinha coisas bem mais modernas. Especialmente duas escrivaninhas com sistemas de computadores avançados, sendo que, em cima destas, estavam aquelas caixas de dados que Anne tinha conseguido trazer da Lua. Havia em uma parede equipamentos de exercícios – devia ser coisa da Haruka – e, um acesso a uma varanda, onde se podia ver, agora, a Lua emoldurada na porta que dava acesso a esta.
Havia uma mesa redonda no centro desta sala, e se parecia um pouco com a mesa que eles tinham no porão, que Orion tinha feito. Sorriu. Aquele devia ser o \"centro de operações\" da família, e aquela devia ser a mesa com os sistemas imbutidos que permitiam que acessassem a base de dados do Castelo de Cristal, da mesma forma que a deles. As paredes estavam recheadas de quadros, com o estilo inconfundível de Michiru, e alguns que provavelmente deviam ser de Anne também – embora ela só tenha pintado uns cinco ou seis. Um deles era de Haruka, segurando então uma Anne com uns cinco anos no colo.
- Olá... – disse a voz de Haruka a direita deles – obrigada por vir, apesar de ser tão tarde.
Lita se afastou um pouco, saindo de trás de seu marido, que deveria estar ocultando a visão dela.
- Oi Haruka, puxa, eu devia ter visitado vocês mais vezes. Sua casa é linda.
- Obrigada, eu não esperava você, Lita. Mas... isso te afeta também, e a todas as sailors.
- Como Assim?
- Acho melhor Hotaru explicar. Hotaru – chamou - Eles chegaram.
Poucos segundos depois, Hotaru e Michiru entravam na sala. Hotaru, ao contrário do que se lembravam, estava usando roupas claras... e... bem justas.
- Deixa eu adivinhar... Anne ajudou a escolher suas roupas.
- E Diana também – disse Michiru balançando a cabeça - Meu Deus... o que vai ser quando elas tiverem dezoito anos...
- Não sei porque vocês estão tão nervosas... elas me convenceram a usar roupas mais claras. Antes eu preferia cores negras, lembram?
- Só que suas roupas antes eram menos... do tipo... bem, como direi?
- \"Estou disponível\" – disse Sohar.
- É... isso mesmo. Estou começando a me sentir velha!
Hotaru riu com gosto da forma como Lita ficou sem graça.
- Por que queriam me ver? E porque não podiam deixar para amanhã?
- Bem... não é do meu feitio encostar alguém contra a parede... mas, o assunto é urgente, e não há motivo real para deixa-los por fora disso. Quando eu voltei para nossa dimensão, não foi apenas porque meu trabalho lá, onde estava presa, terminou. Eu assumi uma nova missão. Encontrar o cristal de diamante, que deve estar incrustado no broche de uma lendária guerreira estelar.
- Um broche branco – completou Michiru no mesmo tom impessoal – com um desenho do lado de fora que lembra o símbolo do Sol, e, que, Haruka disse ter visto na Lua, ao lado do broche da sailor Terra.
- Mas ele desapareceu quando tentei ver melhor – completou Haruka.
Lita olhou para ele, e notou como ele ficou distante, como se estivesse pensando ou lembrando algo. Ele olhava para frente, mas seus olhos não se fixavam em nada em especial. Era como se ele estivesse em choque. As três o observavam, Haruka de braços cruzados, e Hotaru com as mãos nas costas, olhando para baixo, como se estivesse encabulada de ter tocado no assunto.
- Como sabe sobre isso? – perguntou para ela, com os olhos tão frios que Lita, por alguns instantes, teve a impressão de que era outra pessoa que estava lá, ao seu lado, e não o seu amado, com o qual ela compartilhou sua vida por séculos.
- Um amigo meu me contou – disse ela, que não conseguiu sustentar o seu olhar.
- Ela está certa? – perguntou Michiru – esse broche existe mesmo?
Ele ficou em silêncio por alguns segundos. Parecia estar hesitante para responder. Olhou para a mesa circular que estava na sala e se dirigiu até ela. Pressionou alguns comandos nesta e um holograma surgiu no seu centro, o holograma de um broche branco, com um desenho dourado do símbolo do Sol.
- Esse foi o broche que você viu?
- Sim – respondeu Haruka – exatamente este.
- E quando ele desapareceu?
- Eu não sei exatamente em que momento, mas, quando entrei na sala do cofre que as crianças abriram, eu vi claramente dois broches lá dentro. Um deles brilhou e foi em direção a sua filha. Quando fomos fechar o cofre, notei que o outro tinha desaparecido, e ninguém disse ter visto qualquer coisa.
Lita acompanhou com o olhar seu marido se afastar e sentar no assento de uma das escrivaninhas. Ele ficou coçando o queixo e apertando os lábios, demonstrando uma crescente preocupação. Fechou os olhos em seguida e apertou as suas pálpebras muito firmemente, por um longo tempo. Era estranho ninguém sentir vontade de perguntar algo para ele, todas estavam pacientemente esperando que ele se pronunciasse.
- Porque não me disse isso antes Haruka... – ele estava irritado, balançando a cabeça de um lado para o outro – porque? – abriu os olhos e olhou para ela, inquirindo-a com uma raiva que nunca tinha demonstrado antes – não havia nada disso no relatório que você fez então. Eu estava crente de que o broche ainda estava no cofre.
Todas elas ficaram surpresas com o seu desabafo. Estavam esperando que ele talvez ficasse evasivo, ou fornecesse apenas o mínimo de respostas necessário. Lita nunca quis saber muito sobre o seu passado pois temia que ele talvez fosse um tanto sombrio, considerando como ele era impessoal na época em que se conheceram. Agora contudo, pela primeira vez, ela sentiu que o motivo dele não o mencionar era devido a outra coisa. Ele sempre disse que não esconderia nada dela, mas ela deveria perguntar antes.
- Eu pensei que tinha sido apenas impressão – disse Haruka parando em frente a ele. Curioso, Haruka não estava encarando ele com determinação, parecia quase que pedindo... desculpas?
- O que significa? – perguntou Michiru também se aproximando.
- Simplesmente que, qualquer um que estava na sala naquele momento, pode agora estar carregando o broche como um talismã, unido ao seu cristal de coração puro. Incluindo você Haruka, pois também estava lá.
- Como? – Perguntou Haruka surpresa.
- Como acha que sua espada e o seu espelho ficaram unidos aos seus corações? Um dia, em algum lugar de sua infância, vocês ficaram muito próximas a eles, e eles as escolheram, fundindo-se a sua essência. Até a hora certa de serem libertados. O broche estelar fez a mesma coisa. Uma das que estavam lá foi escolhida, pois tinha a pureza necessária.
- Deve ter sido Diana – comentou Haruka pensativa – é a única que não se tornou sailor.
- Não há nenhuma regra para isso – cortou ele, olhando para o chão – não importa o que você já seja. Pode ser sailor, humano, tartiano, ongivano, até youma. Se você tiver o potencial certo, você é escolhido. O broche se fundiu a um dos que estavam na sala. Quando a fusão estiver completa, ele irá se manifestar.
- Fusão? - perguntou Lita surpresa – como assim?
- Não se pode simplesmente passar esse tipo de poder para outra pessoa. Veja a rainha, por exemplo. Demorou anos até que ela atingisse o grau necessário para se fundir ao cristal de prata, o mesmo com a nossa princesa. O cristal de Diamante é muito mais denso e de energia mais concentrada. Ele irá primeiro se adaptar ao escolhido, ou escolhida, e só depois poderá ser usado. Ao contrário dos pingentes e dos Cristais de Prata.
- E como podemos saber quem é o escolhido? Podemos separar o broche do coração puro da pessoa com o talismã de Setsuna?
- Se fizer isso antes da hora, o cristal irá de desintegrar. Não é um simples talismã. Esses cristais são como seres vivos. Não há muito o que fazer agora além de esperar. E pode ser que ele nunca se manifeste. A única que talvez possa descobrir algo seria Anne. Alias, acho que é por isso que vocês não quiseram que ela participasse desta reunião. Deviam estar achando que ela podia ter sido uma das escolhidas para isso, por ter o poder mais destrutivo.
- Bem... isso realmente passou pela minha cabeça – confessou Michiru.
- Querido... está dizendo que qualquer uma das crianças pode ter sido escolhida pelo broche?
- Sim, incluindo Haruka. A única que sei que está fora de suspeitas é Joynah. No passado, tiraram o cristal de seu coração, mas o broche não apareceu.
- É... você me disse. Ainda assim, espere um pouco... Hotaru, porque você está querendo encontrar esse Cristal de Diamante?
- Porque talvez seja nossa única chance contra os generais de Klarta – Hotaru suspirou e olhou com uma certa agonia para ela – Lita, eles são muito mais poderosos do que imagina. Cada um deles tem, no mínimo, metade do poder da sailor Galáxia. O que eu derrotei era o mais fraco deles, e precisei de muita ajuda para isso, muita mesmo. Acho que o único motivo deles estarem aqui, agindo furtivamente é porque não querem que saibam ainda suas reais capacidades. Mas se não há como acelerar este período de fusão – abaixou os olhos, em resignação – teremos que confiar na sorte.
Todos ficaram em silêncio, pensando no que ela tinha dito. Seriam esses generais tão poderosos assim?
- Quem lhe disse que o cristal de diamante era nossa única chance?
- Meu amigo. Torguer.
- Um klartiano?
- Sim – ela ficou curiosa – você o conhece?
- Conheci um Torguer uma vez, já faz muito tempo...
- Na cidade dourada? – perguntou sorrindo para ele.
- Na Terra. Na época em que Serenity fundou o Milênio de Prata na Lua.
- Ele não mencionou você...
- Pode não ser a mesma pessoa, mas acho que você também não lhe perguntou especificamente de mim.
- É, isso é verdade.
- Já falaram isso com a rainha?
- Não Lita – respondeu Michiru – ainda não. Achamos melhor obter a maior quantidade de informações possíveis antes disto.
- E descobrimos que não podemos fazer nada. Só vigiar as crianças para estarmos presentes quando o broche se manifestar.
- Não se esqueça dela – ele apontou com o polegar para Haruka.
- É... ela também – comentou Michiru – mas esta eu irei vigiar pessoalmente, não é mesmo? – e sorriu sedutoramente.
- aham vamos deixar isso para um momento mais particular?
- Bom, acho que não há mais nada a conversar – disse Hotaru cabisbaixa, claramente chateada – desculpe tê-los incomodado.
- Há algo que pode acelerar o processo – disse Sohar quando se levantou.
- O que?
- Perigo. O portador do broche foi escolhido porque tem o potencial para usa-lo, mas talvez nunca surja necessidade para isso. Por outro lado, todos tem poderes, e talvez não precisem do poder do broche, a não ser que estes poderes sejam insuficientes.
- Se elas estiverem em perigo o broche pode se manifestar? – perguntou Haruka.
- Se elas precisarem de algo que não possuam, ou estiverem desesperadas para fazer algo que não possam fazer, pode ser que sua essência entre em sincronia com o broche, e este irá se libertar sozinho do cristal do coração da pessoa.
- O torneio – sorriu Haruka – talvez possamos usar o torneio para...
- Espere um pouco! Está dizendo para colocarmos as crianças deliberadamente em perigo? Isso é loucura! Haruka, pensei que não fosse mais tão fanática.
- Calma Lita, podemos enganar as crianças. Orion pode criar alguma ilusão... ou então...
- O que está pensando?
- Bem Sohar, Afonso tem poderes telecinéticos, certo? Acho que podemos fazer um truque muito interessante no meio do torneio.
Haruka começou a explicar o seu plano, ao qual Lita não gostou muito. Mas como as crianças não estariam em perigo real, talvez até fosse possível. Só que restavam dois problemas: Teriam que falar com os outros pais para que não interferissem, e, também havia a possibilidade de que talvez Haruka fosse a portadora.